por Emiliano José, em CartaCapital
Tenho, volta e meia, escrito sobre a Comissão da Verdade. Pelejado contra o espectro do pijamato, que não se conforma com o fato, sequer, de se pretender o resgate de nossa memória histórica. E as vozes espectrais, nesses momentos, saem dos porões, emergem dos subterrâneos, e pretendem buscar argumentos que justifiquem a ditadura. Isso aconteceu recentemente, quando escrevi um artigo para o jornal A Tarde, de Salvador, sobre os militares e a democracia. Não há ditadura justificável. Todas elas, vistam a roupa que vestirem, pretendem substituir o povo, acreditam-se, cada uma a seu modo, detentoras da verdade, portadoras do saber, e acostumam-se com essa condição até que a população, de uma forma ou de outra, as substituam por formas democráticas de governar.
Foi o que ocorreu com a ditadura no Brasil. Não vamos nos esquecer: foram 21 anos de terror, de arbítrio, de tortura, de subtração de quaisquer traços do Estado de Direito, de supressão completa das liberdades, desaparecimento de pessoas. Como não lembrar disso tudo? Como não resgatar a verdade? Como não tomar conhecimento dos crimes cometidos pelo Estado brasileiro? Como não nominar os criminosos, ao menos isso? Achei extraordinário que jovens tenham se articulado, nos últimos dias, para começar a revelar alguns torturadores que desfilam pelas ruas do Brasil como se fossem pacatos cidadãos e cumpridores da lei.
É curioso como esses torturadores se relacionam com os fatos históricos. É como se fosse possível apagar o que fizeram, pura e simplesmente. Não deve ser muito agradável a filhos, netos, esposa, quem seja do círculo mais íntimo, surpreender-se com o monstro com quem moram e convivem, aquele que parecera até ali um pacato cidadão. Como? Meu pai, você foi mesmo um torturador? Meu avô, você tirava sangue das pessoas? Não, eu só interroguei, será a provável resposta. Ou eu só anotava. Não, eu só prendia. Sei lá o que responderão.
Talvez seja o único preço que venham a pagar – a revelação da verdade. É só o que pretende a Comissão da Verdade, a rigor. E afinal, o STF, contrariando tudo que o Direito Internacional preconiza, resolveu anistiar os torturadores, deixar de considerar os crimes de tortura, seqüestro, desaparecimentos de pessoas como imprescritíveis.
A bem da verdade, nós não demos os passos que outros países deram. Muitas nações que viveram experiências de ditaduras, semelhantes à nossa, avançaram muito mais. A presidenta Dilma, quando chancelou a Lei da Comissão da Verdade disse, com propriedade, que cada País tem sua própria história, sua dinâmica, sua evolução característica. É verdade.
O Brasil é uma nação complexa, e os processos históricos raramente são abruptos. Reclamam mais tempo, e muita vezes o que chamaria de direitos da impaciência não são atendidos, ao menos não o são prontamente. Em todo caso, não custa lembrar que na Argentina, a Enguia – como era chamado o general Videla – está preso e ficará na cadeia até o fim de seus dias, que não está longe pois ele já ultrapassou há bom tempo a casa dos 80 anos. Junto com ele, há vários outros assassinos, torturadores cruéis, que também estão atrás das grades. Isso também aconteceu no Uruguai, como foi possível, também, ver o cruel Pinochet amargar prisão no Chile, para lembrar alguns exemplos.
No Brasil, não é disso que se trata. Ao menos não o é até que haja alguma modificação da decisão do STF, do meu ângulo, uma decisão absurda, que contraria, como já dito, o Direito Internacional, e os mais elementares princípios dos direitos humanos. Se houve um Tribunal de Nuremberg, por que não haver justiça em relação aos torturadores brasileiros? Lembro-me de haver lido um livreto, de Davi Nasser, denominado “Falta alguém em Nuremberg”, referindo-se a Fillinto Muller, o comandante das torturas no Estado Novo, um dos supliciadores do respeitado, extraordinário revolucionário Carlos Marighella. Faltam muitos em Nuremberg. O que dizer de um Carlos Alberto Brilhante Ustra, desfilando País afora, como se não tivesse supliciado covardemente tantos brasileiros e brasileiras? Faltam muitos em Nuremberg.
Mas, insista-se, não é disso que se trata. Trata-se, com a Comissão da Verdade, de resgatar nossa memória, de não permitir que nada seja jogado para debaixo do tapete, tenho insistido nisso, e não pretendo parar porque julgo de minha responsabilidade histórica, militante, fazer isso. Experimentei pau-de-arara, choque elétrico, afogamento, sei como agiram os torturadores. Passei quatro anos numa prisão, como milhares de outros brasileiros. Fui companheiro de tantos que morreram ao longo do caminho, e a lembrança deles, os sonhos que plantaram, nos convidam a não permitir que nada daqueles sonhos e daquela luta sejam relegados ao esquecimento e que nenhum crime daquele tempo seja ignorado. No mínimo isso: revelar a verdade, entregá-la por inteiro ao povo brasileiro.
Eu me impressiono, e sei que volto a um assunto sobre o qual já escrevi aqui, mas não custa repetir, com o fato de que os representantes do pijamato ainda queiram falar em dois lados. Só houve um lado sob massacre, apenas um. Só houve uma ditadura, e ditadura dispensa adjetivação. Ela nunca tem nada a ver com democracia, com decisão do povo.
Se houve resistência, e houve, aconteceu por conta do legítimo direito de se opor ao arbítrio, direito consagrado internacionalmente, e que vem, se quisermos, desde tempos imemoriais, e que está assinalado historicamente até na Constituição americana, cuja nação nasceu graças à resistência armada. Pobre do povo que não é capaz de resistir ao arbítrio, às ditaduras, que não é capaz de lutar pelas liberdades.
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Navegar é preciso, viver não é preciso. Sob ditaduras, lutar é preciso, viver não é preciso. Ou, para garantir a vida e as liberdades, impõe-se arriscar tudo – e nós, milhares de jovens, sobretudo, jogamos nossas vidas para enfrentar o monstro armado, que sufocou inteiramente as liberdades por mais de duas décadas.
E aí fomos presos. E aí fomos mortos. E aí fomos seqüestrados. E aí tivemos nossos corpos sangrados, dilacerados. E aí vimos nossas crianças desamparadas, muitas delas também torturadas. Vimos mulheres sendo afrontadas de todo modo, inclusive sexualmente. Vimos militantes serem empalados. Vimos tantos se exilarem. Vimos tantos se suicidarem, não suportando o volume de sofrimentos que lhes era imposto. A ditadura foi o terror que sufocava as liberdades. Só havia esse lado.
E quando saíamos da tortura, os que sobreviviam, éramos submetidos a simulacros de julgamento, e passávamos anos da prisão. Como dois lados? Só houve um que cometeu crimes. Nossas reações, nossa luta pela liberdade e contra a ditadura, estavam amparadas no direito à resistência, consagrado ao longo da história. E, além disso, a ditadura nos impôs punições absurdas, draconianas. Só falta que pretendam, como alguns argumentam, que paguemos novamente, embora, como já dito, não tivéssemos cometido crime algum já que estávamos exercitando um legítimo direito.
A Comissão da Verdade será um momento forte de nossa história. Esclarecedor. Virá à luz uma grande parte das atrocidades da ditadura. Quem tem medo da verdade? Nossa verdade está a nu – é a verdade da resistência. Não temos nada a esconder. Nos orgulhamos por ter resistido, por ter alumiado a escuridão, por tentar demonstrar que havia caminhos para derrotar a ditadura, por mostrar que mais cedo ou mais tarde ela seria batida pela força do nosso povo. Pagamos com sangue. Tantos dos nossos foram mortos, e sempre mortos covardemente porque o torturador, olhado pelo ângulo moral, é um covarde. Não é um soldado em combate. É um ser desprezível que massacra outro sem que este possa se defender.
É esse covarde que agora o Levante da Juventude está mostrando para a sociedade brasileira, desnudando-o. Insisto: não temos nada a esconder. Trata-se, agora, de revelar o lado da ditadura. Mostrar a verdade. Como diria Gramsci, o revolucionário não precisa mais do que da verdade. É ela que virá à tona com a implantação da Comissão Nacional da Verdade, cujos integrantes deverão ser nomeados, esperamos, nos próximos dias. Que venha, com toda sua força histórica. Para resgatar a memória dos que tombaram, dos que lutaram, e para revelar a verdadeira face dos 21 anos de ditadura.
Emiliano José é jornalista, escritor e deputado federal (PT/BA).
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Comentários
Leticia
Eu pensei mil vezes em escrever esse comentário, mas vou faze-lo. Minha mae trabalhou com uma mulher a muito tempo (que já se encontra morta) que “perdeu” um namorado, que teoricamente “sumiu” na ditadura; mexendo nos livros que temos em casa, encontrei um bem velho e assinado “Fernando Ferreira, 1966” era dele… Do Fernando Borges de Paula Ferreira, confirmei quando encontrei o nome dele na lista de desaparecidos e ele é o único Fernando que possui “Ferreira” no nome, fiquei muito emocionada, muito mesmo, encontrei o nome dos pais mas nada relacionada a eles. O que me deixou um pouco “assim” é que estou prestando vestibular para universidade de São Paulo, o mesmo curso que ele fazia (Ciências Sociais)… Precisa dizer isto…
pagina12
a verdade já foi esclarecida como nos filmes de bang-bang:— os comunistas eram os bandidos e os militares os mocinhos. Ainda bem que o final foi feliz!
Patroks
Faz-me rir os argumentos que se utilizam para arranhar a memória de quem ainda pregava o nacionalismo de forma ampla, é fácil falar mal da ''ditadura'' com tantas Olgas andando pela rua pregando o comunismo, penso que algumas pessoas realmente desejam transformar o meu Brasil em uma pátria aos moldes de Stálin e companhia, se antigamente se idolatrava um líder, agradeça por não idolatrar um louco até hoje (Coréia do Norte e seus líderes eternos), claro que com uma guerrilheira no poder quem sou eu pra falar algo, não sou a favor do Nazismo e das atrocidades que cometeram e muito menos de qualquer forma preconceituosa de erradicação humana, mas ainda me coloco em posição de defesa em relação ao que evitamos, uma onda vermelha em direção ao nosso país em tempos que o mundo estava dividido, se reclamas dos porões da ditadura, imagine-se nos Gulags Soviéticos, ambos não estavam certos, mas muita gente por aí que pregava o ateísmo como modo obrigatório de vida e que se matava padres como porcos (alô Franco, muito obrigado por derrotá-los), me enoja ver a esquerdalha fazendo birra até hoje por conta de torturas e perseguições, quando eles mesmo idolatravam ídolos vermelhos que faziam o mesmo com outras pessoas, e me dá mais azia ainda ver que esse assunto ainda está em palta, enquanto o PT faz farra com nosso dinheiro público na nossa frente e somos levados a pão e circo como crianças tenho vergonha da situação que nossa nação está enfrentando, nosso plenário infestado de ratos, eu não diria que falta alguém em Nuremberg, e sim que falta alguém no exílio, viva Getúlio, viva o meu Brasil!
beattrice
É imperativo que a Comissão da Verdade desnude não apenas a história e a biografia execrável dos torturadores mas também dos seus financiadores.
Diversas empresas alemãs ainda ativas convivem com o fato desmascarado de que finaciaram o regime nazista, os tribunais de guerra na Alemanha julgaram não somente militares, ao contrário do que muitos supõem, julgaram inclusive magistrados, promotores e juristas que apoiaram e emprestaram endosso jurídico às atrocidades cometidas.
A comissão da verdade não pode se apequenar, e não pode salvar aparencias de pessoas jurídicas ou de pessoas físicas em quaisquer segmentos.
Em tempo,
a comissão deveria dedicar algo do seu tempo a um caso emblemático
que explica claramente como de lá prá cá passaram a serem feitos "negócios de estado" no BR,
o caso PANAIR, cuja falência foi decretada de modo ilegal e fraudulento
para bloquear economicamente desafetos e favorecer amigos.
nando
O que nos entristece é o fato da deputada federal, Sandra Rosado, filha da oligarquia Rasado ser hoje uma pseudo socialista.Ela e sua familia defenderam com unhas e dentes os golpista de 64.Perseguiram,demitiram e fizeram tudo de acordo com a cartilha da ditadura.Hoje, pra nossa tristeza ela é amiga da mãe do governar de Pernabuco.
Horridus Bendegó
Ontem, no CQC da Band, constragedoras imagens de velhinhos dormindo durante a "comemoração" do Golpe e outros sendo entrevistados e ameaçando com mais ditadura.
Um chegou a prevê-la para breve, inclusive.
Mais pareceu uma sintonia de decrepitude!
augustinho
Alem de um bom deputado, emiliano tem duas outras qualidades.
Senso adequado de observaçao, detalhamento e ponderaçao apropriados.
E escreve com um estilo bonito e agradavel.
Nossas homenagens a esse baiano arretado.
Fabio_Passos
A direita que fez a ditadura e promoveu a tortura tem medo da verdade.
A impunidade dos torturadores deixa o Brasil como um Estado pária.
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