Túlio Muniz: “Produção de inexistência” de Moro é tradição brasileira
Tempo de leitura: 2 minPós-fascismo e produção de inexistência
por Túlio Muniz*
A intenção de Sérgio Moro de destruir provas de investigação da PF – contida pelo próprio potencial de escândalo – vem de longa tradição do legalismo brasileiro para “produção de inexistência”*.
Mecanismo semelhante foi utilizado por Rui Barbosa quando, em 1890, com a ‘boa intenção’ de eliminar uma ‘mancha na História brasileira’ ordenou a queima de documentos referentes à escravidão.
Ao mesmo tempo, Rui Barbosa privou pessoas de conhecerem a própria trajetória e, quem sabe, usar dos documentos destruídos para reivindicarem alguma compensação (que os ex-escravos nunca tiveram), e destruiu fontes de pesquisa para o futuro – eram livros aduaneiros com matrículas de escravos e registros de impostos que incidiram sobre as transações, dados preciosos para pesquisas de Economia, Sociologia, História, Antropologia.
Moro repetiria Barbosa: destruindo provas que poderiam vir a ser útil à defesa dos próprios acusados de produzi-las (os tais ‘hackers de Araraquara’), e também ao supostos alvos das mesmas.
Rui Barbosa também ocupou a função similar à de Moro, foi o primeiro dos ministros da Fazenda da República.
Para não soar como anacronismo, justiça seja feita: Rui Barbosa, em que pese o ato de queima de documentos, era abolicionista e movido por um positivismo humanista. Moro, não.
Ele defende a manutenção de um regime autoritário, pós-fascista, que rende tributo à longeva inquisição brasileira que determina: “se há demónios e assombrações entre nós, vamos queima-los”, sejam indígenas, negros, pobres, loucos, prostitutas, adversários políticos.
Atiça a chama sempre acessa nos quartéis, cujos episódio mais notório recente, e nunca elucidado de todo, foi a queima de papéis na base da Aeronáutica em Salvador, em 2004.
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Esse pós-fascismo tem raízes no protofascismo nacional de Plínio Salgado nos anos de 1930, cujo Partido Integralista buscou, em vão, apoio do Partido Nazista alemão.
Não o obteve por contar com pessoas negras nas suas fileiras, o que era completamente incompatível com a ideologia nazista ariana, da eugenia racial.
Aliás, seria interessante aprofundar, noutro momento, essa característica do Integralismo, para compreender como é possível, hoje, a postura de gente como Hélio “Negão” Lopes (deputado federal/RJ), Fernando Holiday (vereador em São Paulo) e Douglas Garcia (deputado estadual/SP), todos negros e apoiadores incondicionais de Bolsonaro.
Mal comparando, mas nem tanto, a “produção de inexistência” se repetiu na decisão do STF, de 2010, de validar de vez a Lei da Anistia, por 7 votos a 2.
O STF abafou ainda mais o debate desde sempre necessário na sociedade brasileira: aprofundar o conhecimento acerca dos crimes da Ditadura, responsabilizar e punir seus agentes, coibir manifestações de apoio a seus atos.
Tivesse ocorrido assim, hoje Moro não se sentiria tão à vontade no regime pós-fascista que busca se legitimar, determinando o que deve ou não ser investigado e conhecido, quem deve ou não ser banido do país, quem será encarcerado perpetuamente, quem vive e quem deve ser eliminado pelo Estado – seja em ação direta ou por omissão deste.
E dificilmente teria chegado ao poder uma triste e perigosa figura como a de Jair Bolsonaro.
*Agradeço a Roberto Mendes pelo contato, através sua tese de doutorado, com o conceito de “produção social de inexistência”, de Norma Valêncio – ver aqui.
*Túlio Muniz é jornalista, historiador e doutor em Sociologia/Universidade de Coimbra.
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