Professores da Federal do Ceará exigem revogação do honoris causaa empresário negacionista: “Manobra espúria”; vídeo e nota
Tempo de leitura: 8 minDa Redação
Em 15 de março, o médico psiquiatra e professor Valton de Miranda Leitão protestou no Viomundo: “Conduta de Beto Studart, com arma na mão, não condiz com título de doutor honoris causa; empobrece a Universidade Federal do Ceará”.
Em 23 de março, foi a vez destes três professores da própria UFC fazerem o mesmo:
— Angelo Brayner, adjunto do Curso de Ciência da Computação
— Newton de Menezes Albuquerque, Faculdade de Direito
— Bruno Rocha, do Departamento de Bioquímica e Biologia Molecular da UFC e presidente da ADUFC – Sindicato dos Docentes das Universidades Federais do Estado do Ceará
Finalmente, dois meses após o escândalo estourar, o sindicato (ADUFC) resolveu agir.
Em assembleia geral presencial, realizada em 4 de maio, os docentes repudiaram a outorga do prêmio e pediram a sua revogação.
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Presente, a professora Irenísia Oliveira, vice-presidente da ADUFC, leu a moção de repúdio do GT História do Movimento Docente e Formação Política Sindical.
“Qual a contribuição do homenageado no campo das Ciências, das Letras, das Artes ou da Cultura em geral? Uma Universidade se faz também em honra à sua tradição e aos ritos acadêmicos. Não é possível aceitar em silêncio ou nos omitirmos diante desta outorga”, atentou, denunciando também a exclusão dos estudantes nos conselhos da UFC.
Resultado: a assembleia geral da ADUFC aprovou a revogação do título.
Abaixo a íntegra da moção de repúdio, na qual os docentes exigem a revogação do título de doutor honoris ao empresário Beto Studart
Honoris Causa, expressão latina, significa literalmente “por causa da honra”.
Nossa reflexão de partida se baseia nos fundamentos para a concessão de um título de Doutor Honoris Causa.
O título, portanto, pretende distinguir alguém por suas realizações em dado campo do conhecimento, das artes, da cultura, em favor da humanidade.
Segundo a norma vigente na Universidade Federal do Ceará, “Doutor Honoris Causa é o título honorífico atribuído a eminentes personalidades, de projeção nacional ou internacional (…) que tenham contribuído, de modo notável, para o progresso das Ciências, das Letras ou Artes ou da Cultura em geral e aos que tenham beneficiado de forma excepcional à humanidade ou ao país (…).”
No dia 23 de fevereiro de 2022, o Conselho Universitário (CONSUNI) da Universidade Federal do Ceará aprovou a concessão do título de Doutor Honoris Causa ao empresário José Alberto Vieira Studart Gomes. Não apenas não há motivos para conceder, como há motivos para não conceder.
A outorga do referido título deve ser embasada nos critérios institucionalmente definidos. Qual a contribuição do homenageado no campo das Ciências, das Letras, das Artes ou da Cultura em geral?
Uma Universidade se faz também em honra à sua tradição e aos ritos acadêmicos. Não é possível aceitar em silêncio ou nos omitirmos diante desta outorga. De igual modo, não admitimos que nossa Universidade seja toldada por objetivos espúrios à natureza e à cultura universitárias.
O que deve interpelar nossa consciência histórica neste fato é também a preservação da missão e da memória da nossa Universidade, e o que significa este Título para quem outorga e para quem é agraciado.
A honraria não pode se configurar como uma benesse privada. Ressalte-se a incomensurável distância entre a trajetória do agraciado e os altos valores inscritos na construção de uma universidade pública, democrática e socialmente justa.
No atual contexto, a escolha em questão está ancorada no conservadorismo, o que é fartamente demonstrado e aprofundado, em discurso inaceitável, por ele proferido em vídeo que circularia nas redes sociais dias depois da concessão do título, de reforço à violência e suposta autodefesa de burgueses encastelados, ansiando por violências e porões de ditaduras.
O silêncio e a omissão nos acumpliciam. O título de “Doutor Honoris Causa” escapa completamente ao escopo do homenageado.
A exposição de motivos apresentada na reunião do CONSUNI se centra na figura do “empreendedor” que acumulou capital.
No caso, o portfólio empresarial indica incursões no setor de agrotóxicos – ali denominado “defensivos agrícolas” –, no setor de tecnologia de saúde, da construção civil e incorporação imobiliária. Exalta-se também sua presença nos organismos dirigentes e de política empresarial.
Mas qual a sua contribuição às Ciências, às Letras, às Artes e à Cultura em geral? A UFC irá premiar a “cultura” atrasada e truculenta do uso da “peixeira” como arma e da mitificação da liderança fascista, unidos na mesma figura?
Esse é o “local” pelo “universal” que certo empresariado cearense tem a oferecer e a universidade pública irá distinguir, apresentando como exemplar?
Não seria, ao contrário, missão da nossa universidade condenar tal anticultura e pensar como seria possível civilizar minimamente esses bárbaros endinheirados?
A repercussão institucional do fato – no portal da UFC – é, em si, uma contraprova factual, no mínimo, dos descaminhos da democracia universitária sob a intervenção bolsonarista.
A ata da reunião do dia 23 de fevereiro de 2022 realizada por meio de plataforma virtual evidencia o destaque de alguns pontos. A matéria é incluída em pauta na abertura da reunião por solicitação do presidente do Conselho, o que indica seu desapreço pelo próprio Conselho e seus ritos.
Não se pode coonestar este modo sorrateiro de inclusão de matéria de tal envergadura. Parece que o presidente do Conselho encontra inspiração no modo como os títulos honoríficos têm sido deslustrados (distribuídos a granel e em proveito familiar) nestes tempos de degradação das instituições da República. Ali, havia um currículo pronto e um voto posto à leitura.
O presidente do Conselho propôs a apreciação da matéria logo no início da sessão, argumentando que o conselheiro relator “precisaria se ausentar o quanto antes por motivos pessoais”.
Ora, nossos representantes no Conselho Superior da UFC devem se munir, previamente, dos conteúdos em pauta para bem exercer seu papel de representação colegiada, em escuta recíproca à comunidade ali representada.
O conselheiro relator do processo – representante da comunidade na Área Empresarial e integrante do CONSUNI desde 2019 – destaca (?) “a personalidade, o trabalho e as relações humanas do homenageado se mostrarem configuradores do perfil requerido pela academia para que ele seja dignatário do título”.
Alguns minutos de vídeo dias depois escancarou o contrário.
O voto do relator – conforme se lê na citada ata – apresenta o perfil do agraciado com o mesmo tom laudatório veiculado nas redes corporativas do empresário e muito se assemelha a uma exposição de motivos a embasar (com restrições) uma minuta de acordo entre partes, acenando aos conselheiros com possíveis convênios ou protocolos entre a Universidade e setores empresariais, amalgamando os chavões da inovação e do empreendedorismo.
Tais chamarizes não cabem no molde honorífico do título em questão. Tampouco se pode aceitar que o voto do relator possa concluir que a concessão do título de Doutor Honoris Causa ao empresário “enaltece ainda mais o acervo de seus membros honorários em cujo rol estão assentadas personalidades e reconhecidos destaques no âmbito do Ceará, do Brasil e do exterior”.
Foram 27 votos a favor e 2 abstenções, num CONSUNI que tem 52 assentos, mas não tem representação de estudantes nem de técnico-administrativos, num CONSUNI que foi esvaziado e segregado com a finalidade de gerar maiorias artificiais, sem prejuízo de outras manobras como inclusões repentinas de pauta em reuniões realizadas já habitualmente sob tensão e assédio.
Aqui, é nosso dever institucional situar com propriedade determinados fatos de domínio público.
O empresário homenageado processou judicialmente a Profª. Raquel Maria Rigotto e uma mestranda em Saúde Pública da UFC, participantes com outros professores da UFC e um pesquisador da Fundacentro, de um estudo na empresa Agripec (indústria química de defensivos agrícolas, posteriormente vendida à australiana Nufarm).
O estudo fora solicitado pelo Ministério Público à UFC, cuja Reitoria expediu Portaria designando equipe para realizá-lo.
O objetivo era investigar os impactos da contaminação atmosférica gerada pela citada empresa, produtora de agrotóxicos, sobre a saúde das pessoas que viviam nas comunidades vizinhas.
Os resultados da pesquisa comprovaram a correlação entre alguns dos poluentes emitidos com os sinais e sintomas referidos pela população atingida.
Entre outras irregularidades, identificou-se que o sistema de exaustão e lavagem de gases era desligado durante a noite, para economizar energia elétrica, deixando assim os poluentes à mercê do vento.
Tais resultados foram apresentados em uma Aula Aberta do Programa de Pós-Graduação em Saúde Pública.
A empresa considerou o fato como causa de prejuízo à sua imagem pública – razão arguída para procedimento judicial iniciado contra a equipe de pesquisa.
O processo não prosseguiu, em razão das credenciais da equipe de pesquisa, da Universidade e da massiva reação de organizações da sociedade, entidades ambientais, movimentos sociais, que interpuseram relevantes elementos ao debate desvelando os níveis de (ir)responsabilidade social e ambiental, de violência e desrespeito à autonomia da livre pesquisa científica e da Universidade pública.
Este fato apenas já seria suficiente para que jamais a UFC cogitasse a concessão de qualquer título a tal empresário.
As redes aí estão também para difundir as manifestações do agraciado repletas dos velhos cantos de sereia da “inovação” e do “empreendorismo”, de par com rasgos verbais desabridos ou de baixo calão e vídeos de notável grosseria como o da faca-homenagem.
Em evento corporativo, em setembro de 2019, ele expende seu ponto de vista em apoio às políticas genocidas dos povos originários e a matéria em jornal local assim reproduz: “índio não quer mais viver debaixo de árvore. O índio quer casa, o índio quer carro, estrada. O índio quer internet”.
Tal ponto de vista logo se reconhece como de total alinhamento às políticas de destruição do bioma amazônico, contrariando a demarcação das reservas indígenas e zonas de conservação ambiental no País.
Dirigimos nosso apelo à Comunidade Universitária, às entidades representativas de estudantes e técnico-administrativos, diante da gravidade do fato, para nos somarmos em nossa justa reivindicação: a revogação da concessão do título de Doutor Honoris Causa concedida ao empresário em questão.
Nosso apelo é também em defesa das prerrogativas do CONSUNI, que tem sido repetidamente atacado, manipulado com manobras e prejudicado em sua liberdade e autonomia de decisão. Um fato sobremodo escandaloso é a expulsão dos estudantes do conselho pelo interventor.
A despeito do reconhecimento jurídico sobre a legalidade e legitimidade de eleições estudantis, sua representação não tem assento no CONSUNIi; e seguem alijados das decisões colegiadas da Universidade Federal do Ceará.
A UFC, por seu Conselho Superior, deve se ater em considerar os feitos e realizações do homenageado nos campos definidos em norma específica.
Não é sua tarefa atribuir qualidades ou desempenhos a quem não os tem. Ao fazê-lo, A UFC se apequena, podendo a homenagem se converter em mera promoção do homenageado. A atuação do citado empresário frente aos organismos de representação empresarial – supostamente tornando a interação ou o diálogo com a UFC mais efetivo – não é nem pode ser confundida com contribuição notável às Ciências, Letras, Artes ou Cultura.
Assim pensamos porque almejamos na Universidade cumprir o primado da Educação. Não existe prática educativa sem ética. Assim, nosso postulado além de uma crítica interna, baseada na serena lealdade universitária, deseja também denunciar o molde autoritário do presidente do Conselho, ele mesmo sem legitimidade democrática em nossa comunidade e sem nenhum destaque acadêmico ou social além do capital que amealhou.
Nossa esperança e nosso desejo é que tais períodos nefastos passarão e as iniciativas de recusa ao autoritarismo ficarão gravadas nos anais da história da UFC.
É preciso pelejar pela ampliação dos espaços de democracia em nossa universidade. E aqui enfatizamos a nossa indignação e o nosso protesto, quando há tantos outros nomes merecedores desse título honorífico, que em muito engrandeceriam a nossa UFC.
Em nosso retrato de Universidade, a moldura é democrática. Sabemos que a concessão deste Título, como outras iniciativas deste jaez, não seriam aprovadas pela comunidade universitária em caso de uma consulta ampla e democrática.
Exercitando a qualidade e a virtude da coerência com nossos princípios, só nos restam o repúdio veemente à outorga do título de Doutor Honoris Causa ao referido empresário pela Universidade Federal do Ceará e a reivindicação de que a concessão, aprovada por meio do esvaziamento do CONSUNI e por uma manobra espúria com a pauta da reunião, seja reconsiderada e cancelada o mais brevemente possível.
Assembleia Geral da ADUFC reunida no dia 4 de maio de 2022 e
GT de História do Movimento Docente e Formação Política Sindical
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Comentários
Ivan Monte
Essa vergonha tem que ser reparada!
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