![](https://www.viomundo.com.br/wp-content/uploads/2025/02/imagem-do-whatsapp-de-2025-02-04-as-12.16.33-c2ff137f-800x600.jpg)
Por Pedro Carvalhaes*
Prezado Milton, se me permite a ousadia, também querido e admirado Bituca,
Causou tremenda indignação aos inúmeros fãs da sua arte de incomensuável valor o veto à sua presença na área principal do Grammy 2025, no qual, em pé de igualdade, você e sua talentosa parceira, a cantora norte-americana Esperanza Spalding, concorriam juntos ao prêmio de “Melhor Álbum Vocal de Jazz” pelo primoroso disco Milton + Esperanza.
Mais do que desrespeito à sua longa e marcante trajetória, esse ultraje representou também afronta cultural ao Brasil, à América Latina e aos brilhantes artistas nacionais e internacionais que, em suas carreiras, tiveram o privilégio de se associarem a você nos palcos, nos estúdios, nas mesas de bar e nos “bailes da vida”, enfim.
![](https://www.viomundo.com.br/wp-content/uploads/2025/02/miltonn-2-scaled-e1738893797280.jpg)
Em 13 de novembro de 2022, Milton Nascimento realizou no Mineirão o último show de sua carreira; o espetáculo marcou também o encerramento da turnê de “A última sessão de música” Foto: Reprodução
Teria a organização do prêmio se esquecido que você, com seus mais de 30 álbuns, já foi premiado pelo próprio Grammy, por exemplo, em 1998 pelo disco Nascimento, vencedor na categoria “Melhor Álbum de Música Mundial”? Ou quando, em 2000, Crooner se consagrou na edição latina como “Melhor Álbum Pop Contemporâneo”?
Teria faltado ao cerimonial do Grammy a informação de que o disco Clube da Esquina, que você assina com Lô Borges, foi recentemente eleito pela revista norte-americana Paste Magazine um dos dez melhores álbuns de todos os tempos?
A canalhice da organização do Grammy afrontou o próprio espírito daquela edição, que, em salutar contestação ao protofascismo que transformou a “América” de Luther King na de Trump, premiou artistas cujas carreiras e obras constituem verdadeiros libelos da luta das e pelas minorias transformadas nos bodes expiatórios dos camisas negras (ou bonés vermelhos) estadunidenses.
(Como a colombiana Shakira, vencedora de “Melhor Álbum Latino”, que dedicou seu prêmio aos imigrantes vivendo nos EUA. Ou a performática Lady Gaga, ídolo LGBTQIAPN+, que louvou a comunidade trans ao vencer na categoria de “Melhor Performance Pop de Duo ou Grupo”. Ou, ainda, Beyoncé, ícone pop negra que venceu não apenas o prêmio de “Melhor Álbum”, como também o de “Melhor Álbum Country”, numa espécie de desforra pela apropriação cultural do estilo, de forte origem afro-americana, pela branquitude em muito apoiadora do presidente estadunidense e de seu projeto populista, chauvinista e excludente).
A justificativa apresentada pelo Grammy de que ficariam nas mesas principais apenas os artistas que apareceriam na transmissão resvala em vários preconceitos, que mostram que Los Angeles talvez não esteja tão distante ideologicamente do que se tornou Washington.
Apoie o VIOMUNDO
Que razões explicariam a ausência de desejo de mostrar à audiência do Grammy um indicado do seu quilate?
Além do preconceito quanto à sua nacionalidade brasileira, diria que você foi vítima também do etarismo de um evento que, buscando a audiência e o engajamento de jovens nas redes, resolveu esconder tudo aquilo que fugisse à ideia de juventude, como se as novas gerações não devessem conhecer a sua obra, tão atemporal quanto universal e sofisticada.
Diria também que a atitude do Grammy foi repleta de capacitismo, não só pela ideia de escondê-lo nas arquibancadas, ignorando sua dificuldade em subir e descer escadas, como também pela de considerar que alguém com seus problemas motores poderia quebrar a imagem eugenista de um salão de artistas no auge do vigor físico.
Será que submeteriam a esse insensível e desrespeitoso tratamento medalhões estadunidenses como Ray Charles, Aretha Franklin e Tony Bennett, se estivessem vivos e indicados naquela cerimônia, como você?
Impossível não se lembrar do método nazista usado em filmes propagandistas, que escondiam todo aquele que destoasse do padrão do ariano forte, classicamente belo, jovem e saudável (o que inclusive motivou o artifício de gravarem à noite as suas manifestações, com suas fileiras iluminadas só por tochas, de modo a disfarçar a verdadeira e nada apolínea imagem da maioria dos partidários hitleristas).
Enfim, o veto à sua presença, um lendário e veterano artista brasileiro-latino-americano, negro, que ganhou o mundo cantando de modo original os ritmos e os sons de sua aldeia (mas, parafraseando Tolstói, de modo, repito, universal), foi também a desvalorização de todas as identidades que compõem sua música, tão moderna quanto ancestral.
Sua voz telúrica já foi apelidada de “a voz de Deus”; melhor seria chamá-la de “a voz dos deuses”, pois você é um artista múltiplo e heterogêneo em suas referências musicais.
Sua altiva atitude de não adentrar na cerimônia em Los Angeles, mesmo tendo para lá embarcado, apesar das suas dificuldades de locomoção, fez-me lembrar de uma outra atitude igualmente altiva na África dos seus antepassados, que, ao contrário da organização do Grammy, sabia valorizar os seus griôs, que, como sabe, são os indivíduos responsáveis por transmitir aos mais jovens as histórias, conhecimentos, canções e mitos de seus povos.
A rainha Njinga, que entre os séculos 16 e 17 reinou no que hoje é Angola, foi chamada à Luanda para tratativas de paz, após uma longa e corajosa resistência aos colonizadores portugueses.
No palácio das autoridades metropolitanas, ela foi instada a se sentar no chão, enquanto os europeus refestelavam-se em confortáveis poltronas.
Sem fazer-se de rogada, Njinga sentou-se nas costas de uma criada que se agachou, encarando de igual para igual seus interlocutores brancos.
Daqui a alguns séculos, tal qual a história de Njinga, que obras dos artistas presentes na cerimônia do último Grammy serão lembradas, afinal?
No caso da sua, que reitero ser atemporal, tenho a mais absoluta certeza de que será, independentemente de você não ter sido convidado para as mesas principais.
É nas costas dessa trajetória que você se senta à mesa do cenário musical mundial e encara, no mínimo, de igual para igual, qualquer um dos artistas presentes naquele Grammy.
Ironicamente, a afronta que se viu em Los Angeles fez confirmar sua genialidade e antevisão artísticas, especialmente em versos da canção Para Lennon e McCartney:
Por que vocês não sabem
Do lixo ocidental?
Não precisam mais temer
Não precisam da solidão
Todo dia é dia de viver
Por que você não verá
Meu lado ocidental?
Não precisa medo, não
Não precisa da timidez
Todo dia é dia de viver
Eu sou da América do Sul
Sei, vocês não vão saber
Mas agora sou cowboy
Sou do ouro, eu sou vocês
Sou o mundo, sou Minas Gerais
Sim, Bituca, mesmo que eles não saibam ou finjam não saber, você é de Minas, é do mundo, um gigante genial para todos nós.
Definitivamente, se nesse lamentável episódio há algum “lixo ocidental”, diria que são aqueles que ignoram a sua arte e o seu significado na história da música mundial e do próprio Grammy.
Em tempo. Complementando este desagravo, assistirei com muito gosto ao documentário “Milton Bituca Nascimento”, distribuído pela Gullane+, que estreará nos cinemas em 20 de março.
É para rememorar sua carreira e conhecer também os bastidores de sua derradeira turnê, na qual você, sentado numa espécie de trono, foi tratado pelo público como o rei e a divindade artística e cultural que é e sempre será.
Milton Nascimento e Wagner Tiso apresentando Para Lennon e McCartney, na Suíça, em 1981.
Trailer do documentário Milton Bituca Universal
*Pedro Carvalhaes, graduado em Direito pela UFMG, é roteirista.
*Este texto não representa obrigatoriamente a opinião do Viomundo.
Leia também
A homenagem do grupo Mulheres na Luta à vida e militância de Dona Marisa Letícia
Comentários
Nenhum comentário ainda, seja o primeiro!
Deixe seu comentário