Patricia Rivero: 600 reais valem mais do que a morte de 114 mil brasileiros pela covid? E daí?!

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Fotos: Amazônia Real e reprodução

A VIDA VALE 600 REAIS? E DAÍ?

Por Patricia Rivero, especial para o Viomundo

”E daí?”, “vamos tocar a vida pra frente”, “vida que segue”, não é assim que reage o poder com apoio da maioria que o elegeu?

“E daí” é a expressão mais significativa para descrever um povo entregue à morte.

Se sempre foram suportáveis as mais de 30 mil mortes anuais de população jovem, negra, pobre das periferias e favelas, por que agora alguém iria se importar, não é mesmo?

“Está havendo um massacre e ninguém se importa”, me chamou a atenção o meu amigo Pablo Dreyfus, com o qual pesquisamos sobre armas de fogo e mortes violentas durante anos.

Talvez com a esperança de que algum dia alguém se interessasse.

Em 2003, junto com a equipe do desarmamento do Viva Rio e o ISER, conseguimos  aprovação do Estatuto de Desarmamento.

Milhares de vidas foram poupadas nos anos seguintes à sua aprovação.

Mas, como as políticas de segurança não avançavam, a população seguia morrendo. “E daí?”

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Eram sempre os mesmos: pretos, pobres, favelados, jovens, homens,  como detectávamos, eu e muitos pesquisadores que estudavam  o perfil das vítimas de violência no Brasil.

Durante a campanha do desarmamento, da qual participei, percebi que prevalecia entre as classes médias uma indiferença abissal em relação a essas populações consideradas subalternas.

O discurso era moral: “vagabundo tem que morrer mesmo”.

Mas “vagabundo” não era o criminoso em si, já que criminosos havia em todos os setores sociais.

O argumento desses setores em defesa do porte de armas era o discurso incisivo da “liberdade individual”.

Graças a ela, teríamos o direito a portar armas, e matar, se assim fosse necessário.

Não interessavam as evidências científicas produzidas por inúmeros pesquisadores ao redor do mundo e também pela nossa equipe, mostrando que arma de fogo em casa aumentava a probabilidade de morte por acidente.

Por exemplo, portar arma de fogo aumentava a probabilidade de morte em brigas interpessoais.

Não protegia na eventualidade de invasão de domicílio já que o criminoso estaria mais preparado para atirar antes da vítima poder se defender…

Enfim, uma comprovação de que o conhecimento produzido cientificamente sobre o assunto não tinha o menor valor. Emergia com força, de forma muito clara, a figura do “cidadão de bem”.

Depois, o discurso moral se ampliou. Vieram  a Lava-jato, o Batman e o Robin para defender Gotham City. E aqueles que defendiam  “bandido bom é bandido morto” apoiaram a saída da esquerda do poder.

O argumento era que a esquerda era “corrupta”, enquanto “o cidadão de bem” barraria a corrupção que era “exclusiva” da esquerda, representada na figura do PT.

Esse debate passou longe das vítimas, que ainda se importavam com a violência nos seus territórios, com embates entre polícia e tráfico que cobravam milhares de vidas inocentes por ano.

Mas ninguém se interessava, e a esquerda não soube resolver.

Qual era a saída para essa população?

Acreditar no além era um caminho. E os mercadores da fé souberam perceber, convertendo a desesperança em aceitação de uma salvação possível, no autocontrole, na disciplina, no cumprimento do dízimo.

Os pastores estiveram perto, produzindo ilusão, mostrando caminhos morais. No lugar da fé, nada havia a não ser consumo e morte.

Ao discurso moral-religioso, juntou-se o “moralista” da classe média sempre na corda bamba do ascenso, desejosa de se distanciar do pobre, e com medo de cair do seu lugar arduamente conquistado e favorecido pelas políticas distributivas de setores democráticos e também de “esquerda”, acredite se quiser…

Essa classe média sim, naquela época, viajava a Miami, e trazia em média cinco malas grandes cheias de produtos comprados nos outlets.

Também reclamava se encontrasse um nordestino pobre no aeroporto, quem sabe o porteiro do seu prédio, que naqueles tempos podia viajar de avião.

“O aeroporto virou rodoviária” gemia, com o nariz em pé.

Essa classe média tinha medo de cair na pobreza novamente, e isso acentuou-se com a crise econômica iminente, de 2013 em diante.

Aquela crise internacional que tinha assolado os países ricos e centrais desde 2008 acabara respingando também no alegre Brasil, deixando um rastro sombrio de medo, violência e desemprego.

Sobre esse período muitas análises e reflexões serão necessárias, pois foi ali que as sementes do ódio, sempre presentes nos subterrâneos, germinaram com força.

Ódio, frustração, medo, todos esses sentimentos, válidos perante a realidade, iam sendo canalizados para o discurso moralista anticorrupção.

Aqui um parêntese. A corrupção sempre esteve presente, e pairava sobre o imaginário brasileiro como algo que era constitutivo do poder, mas também estava presente nos mais mínimos comportamentos.

A linha divisória entre a “malandragem” e o “jeitinho” que tinham caráter poético e musical, cantados pelo samba e a bossa nova, agora se tornava um arame farpado, que dividia os bons dos maus.

O que tinha sido associado ao “doce balanço do mar”, ao “cantinho e o violão”, foi trocado pelo refrão de “que país é esse?”, repetido à exaustão por hordas vestidas de verde-amarelo fazendo coreografia na Avenida Paulista, em São Paulo, ou montadas em carros de som na Avenida Atlântica, em Copacabana, no Rio de Janeiro,

Os “cidadãos de bem”, segundo indicam pesquisas da época, se manifestavam, batiam panelas, apoiavam o retorno da ditadura militar, tudo em defesa da moral.

Eles, sim, eram verdadeiros representantes da moralidade.

Contra quem? Os imorais, os corruptos.

E quem eram os corruptos? O primeiro na lista era o PT, a esquerda e o PT.

Essa esquerda “degenerada” que defendia gays, pobres e negros (portanto, com certeza “vagabundos”), o poder das mulheres (portanto, “destruição da família tradicional”).

Depois, corruptos também seriam os políticos em geral, as instituições democráticas, o congresso, o Supremo Tribunal Federal, a justiça, exceto os procuradores da Lava-Jato e o juiz representante dela.

Desse contexto sombrio emerge uma figura esquecida, a figura que melhor representa a expressão “e daí?”.

Tido como incorruptível, másculo, defensor da família e bons costumes, da ditadura militar e seus torturadores. Ele, o inominável, era a representação dos anseios morais dessa classe média decadente.

Mas também foi o escolhido pelo mercado financeiro para governar o Brasil. Sim, junto dele estava a grande promessa desse mercado, o super ministro da Economia, ansioso por implementar no país o liberalismo mais acentuado e arcaico que se pudesse aplicar. Estado mínimo junto do estado policial.

Hoje, sobre o representante da força, da moral, da fé e das bons costumes recaem claras evidências de corrupção e proximidade com grupos criminosos de milícia, além do aberto autoritarismo e desprezo pela democracia.

Mas, “e daí”, quem se importa  já com isso?

Quem se importa com os mais de 114 mil mortos (em 22 de agosto) pela COVID-19, “e daí”, se sempre morreram milhares por ano e ninguém se importou.

Menos ainda importam, quando morrem os mesmos: pretos, pobres, periféricos, jovens e agora idosos também.

A popularidade do líder inominável cresceu. Será que os R$ 600 de auxílio emergencial são responsáveis por isso?

Talvez, parcialmente. Ou a real responsabilidade está no “e daí?”.

Patricia Rivero, doutora em Sociologia, ex-pesquisadora do Iser, professora e pesquisadora do Núcleo de Estudos de Políticas Públicas em Direitos Humanos,da UFRJ

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