Mário Maestri: A execução extrajudicial de Sílvio Almeida

Tempo de leitura: 7 min
Foto: Anastasia Latunova

A execução extrajudicial de Sílvio Almeida

A denúncia foi patrocinada por uma ONG de raiz estadunidense, o que é paradoxal, devido à autoridade e status oficial e público da ministra da Igualdade Racial

Por Mário Maestri*, em A Terra é Redonda

A Editora Record anunciou a suspensão da publicação de um novo livro programado de Sílvio Almeida e de uma segunda edição de Racismo estrutural, a badalada Bíblia laica do identitarismo negro, que elevou, num vapt-vupt, o autor ateórico antirracista magno no Brasil e, a seguir, a ministro de Estado dos Direitos Humanos e da Cidadania do Brasil, do quarto governo petista. [FSP, 5/11/2024.]

Racismo estrutural, de 2019, é pedra angular da proposta do racismo como parte da estrutura da produção e reprodução da exploração social no Brasil, desde a Descoberta até hoje.

Ou seja, integrante e imprescindível à lógica da exploração, no nosso passado e presente. “O racismo fornece o sentido, a lógica e a tecnologia para a reprodução das fontes de desigualdade e violência que moldam a vida social contemporânea.” [SILVIO: 2019, 15.]

Desde sempre

A formulação “racismo estrutural”, de uma sociedade brasileira movida pela exploração de “negros” por “brancos”, desde que Cabral pôs os pés em praia brasílica, passou a ser axioma defendido diuturnamente pela grande mídia e abraçado, em um piscar de olhos, pela Academia, por multidões de intelectuais e pelas mais poderosas instituições públicas do país. Tornou-se no que chamamos de verdade evidente.

A tese de Sílvio Almeida alavancou o seu sucesso fulgurante e o de uma multidão de personagens, negros e brancos, que surfaram a onda do racismo estrutural, elucubração importada diretamente desde os EUA, como sempre, e mal traduzida para o Brasil.

Proposta político-ideológica lançada, apoiada e promovida por facções determinantes interessadas do grande capital imperialista e globalista, como já é habitual, desde há muito. [WANDERSON, 2019; MAESTRI, 2022.]

Em um sentido geral, o “racismo estrutural” faz parte da vaga wokista-identitária impulsionada fortemente pelo Partido Democrata, desde que, ao abraçar a deslocalização industrial estadunidense, com destaque para a Era Bill Clinton [1993 a 2001], trocou a classe operária manufatureira, como base eleitoral, pela classe média impulsionada pela globalização, através da defesa de direitos identitários-individualistas exacerbados.

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O wokismo-identitarismo seria a nova revolução da pós-modernidade. Política que contribuiu para a derrota de Hillary Clinton, em 2016, e para a recente maré avassaladora trumpista.

Limpando a barra do capital

Não simpatizo com o livro, com a tese e com o autor em questão.

Após a publicação de Racismo estrutural, apresentei em forma sintética as razões que acredito impugnarem a defesa rústica e furada do “racismo” como elemento estrutural da produção e reprodução da exploração no Brasil.

Narrativa que absolve, no passado e no presente, a responsabilização das classes dominantes, do grande capital e da grande propriedade como estrutura da opressão social. Proposta que o identitarismo enterra sob a retórica da opressão racial estrutural.

A proposta do “racismo estrutural” é apoiada comumente por desavisados informados e desinformados que a confundem com a afirmação, correta, de que o “racismo anti-negro” seja tradição arraigada profundamente em nossa cultura, com indiscutíveis sequelas.

No Brasil, ele é cultura patológica de extensão superada apenas pela homofobia masculina, disseminada tendencialmente em toda a nossa sociedade, sem exceções – homens, e mulheres de todas as coras e segmentos sociais.

Lamento não me ter pronunciado em forma mais enfática, por outros o terem feito com maior informação, contra o que já foi sugerido como uma “operação” que levou à deposição do ex-ministro, através da sua execração extrajudicial, em setembro passado. [MAESTRI, 8/09/2024.]

Tudo, após a denúncia, ainda hoje vaga, feita por sua companheira de ministério, de “importunações sexuais”, que, segundo ela, teria se arrastado por bem mais do que um ano.

Presunção de inocência

Proposta de “importunação” abraçada em forma explícita e dura pelo presidente da República e pela midiática primeira-dama.

E, logo, seguida de uma enxurrada de denúncias solidárias, sobre sucessos passados, no estilo do #metoo ianque. A denúncia foi patrocinada por um ONG de raiz estadunidense, o que é paradoxal, devido à autoridade e status oficial e público da ministra da Igualdade Racial.

Operação que parece ter-se desenvolvido na esteira da procura da substituição de Sílvio Almeida, prontamente realizada, por uma nova ministra, petista e mulher, indicada nas mais altas esferas, que não simpatizariam com o defenestrado.

Para se materializar, a magnitude da deposição teria exigido a singular truculência da tratamento dado à denúncia, abraçada pela administração presidencial, sem o respeito constitucional à presunção da inocência, até comprovação em contrário.

Tudo feito contra um ministro pra lá de negro, o que, não me sai da cabeça, pode ter contado contra ele.

Como já propus, há “um forte desequilíbrio racial entre a denunciante e o denunciado. Dizer que ambos são igualmente negros é uma enorme sandice. Será que não houve, também, resquício racista inconsciente nessa operação” que resultou no “arrasamento moral e pessoal de Sílvio Almeida? Se ele não fosse tão preto como é, teria sido tratado de igual modo?”

“Dois negros/duas medidas/se claro/tem saída/escuro/porta proibida/. (CUTI, Colorismo.) [MAESTRI, 8/09/2024.]

Negro preto dança por primeiro

As recentes manifestações de “Terreiros e entidades de matriz africana”, de raízes populares, contra a gestão de Anielle Franco, pouco divulgada pela grande imprensa, reforçam a impressão de um confronto com vieses políticos, de classe e, mesmo, racial, pouco explorados e pouco compreendidos, subjacentes à comumente execução extrajudicial de Sílvio Almeida.

Após três meses dos fatos, o público não foi informado suficientemente, pela denunciante, sobre quais teriam sido as importunações que ela sofreu, por longuíssimos meses, apesar de mulher de força funcional e pública indiscutível, como ministra e irmã de Marielle Franco, a saudosa combativa e corajosa líder comunitária.

As importunações propostas, até agora, foram elogios inconvenientes, sussurros eróticos, um toque físico e, segundo parece, não muito mais.

Há desculpa para importunações, mesmo pequenas, se ocorreram? Nenhuma.

A importunação contra mulheres, em diferentes graus, é um comportamento bastante comum na comunidade masculina brasileira, para ficarmos entre nossas fronteiras.

Machismo geral

Dificilmente encontrar uma mulher que não tenha passado por essa experiência, não raro, diversas vezes. Entre as que consultei, não encontrei nenhuma.

Para não falar dos milhões de mulheres que sofrem essa agonia nas fábricas, nos escritórios, nas universidades, nos ônibus, nas ruas, em uma época em que câmaras de segurança registram inapelavelmente tais atos.

Tratam-se de práticas comumente seminaturalizadas, que devem ser combatidas e reprimidas, em todas as suas expressões, das mais leves às mais graves.

Entretanto, a repressão deve corresponder à gravidade do ato, após sua comprovação. Para isso, temos, na Justiça, o princípio da “dosimetria da pena”.

Se não houver relação entre o ato e o castigo, a punição se transforma em uma violência, agravada por ser realizada à sombra do poder do Estado.

Pena, eventualmente, mais grave do que a ofensa eventualmente praticada.

Negrão tarado

Caso no qual parece se enquadrar Sílvio Almeida, massacrado moralmente para todos os tempos.

Quando comentei o problema com uma colega universitária, ela defendeu, brincando, a punição, sem muito mimimi, do “negrão tarado”.

Há uma diferença enorme, de qualidade, que não pode ser obliterada, entre um estupro e uma proposta importuna ou insistente.

Como há entre uma frase de sentido racista em uma discussão e a agressão física de um policial contra um cidadão, por ser ele negro.

Uma injúria racial não se aproxima, jamais, de um linchamento do tipo estadunidense. O que alguns juízes no Brasil estão esquecendo.

Sílvio Almeida foi acusado e castigado, em forma definitiva, com tamanha violência, que, agora, torna-se imperiosa a comprovação de sua culpabilidade e condenação, pela Justiça, para justificar uma execução que antecedeu o processo e sua conclusão.

Se não ocorrer uma condenação pesada, exemplar, os execrados serão todos os que participaram desses sucessos ocorridos nos mais altos patamares da nossa administração pública.

Fahrenheit 451

É contexto de necessidade de culpabilização necessária, seja ou não seja Sílvio Almeida culpado, que se noticiou a esdrúxula ação da suspensão da edição de seus livros, parte do movimento de cancelamento de Sílvio Almeida que, apesar da legalidade jurídica do ato, fere os pressupostos de um regime real de acesso democrático à informação.

Procedimento que nos traz à memória tristes tempos do passado. Iniciativas, como esta, que estão se tornando comuns em nosso país, por parte das ditas autoridades públicas, sob a escusa de reprimir fake news, excessos da liberdade de pronunciamento e por aí vai.

A produção bibliográfica, de qualquer natureza, ao ser concluída, autonomiza-se de seu autor. Passa a ser parte, não importando sua qualidade moral e científica intrínseca, do acervo geral do conhecimento humano. Ela deve ser mantida à margem da censura sob escusas variadas, sobretudo, as morais, lançadas aos seus autores.

Escravistas, racistas e antissemitas

José de Alencar era um escravista empedernido que militou pela manutenção da escravidão. Monteiro Lobato foi racista de carteirinha. Seu romance O presidente negro: choque de raças, de 1926, é genocidiário. Defende, para a preservação da “pureza ariana” estadunidense, a extinção total da população negra.[MAESTRI, 16/03/2011.]

Em 1933, em plena ascensão do nazi-fascismo, Gilberto Freyre escreveu, em Casa -grande e senzala, páginas de um anti-semitismo atroz.

“Técnicos da usura, tais se tornaram os judeus em quase toda parte por um processo de especialização quase biológica que lhes parece ter aguçado o perfil no de ave de rapina, a mímica em constantes gestos de aquisição e de posse, as mãos em garras incapazes de semear e de criar”. [FREYRE, p.377.]

Essas e outras obras não devem e não podem ser proibidas ou retocadas devido a seus conteúdos discutíveis. E, logicamente, muito menos, pelos atos dos autores, mesmo quando indivíduos socialmente tóxicos.

Extremando, Hitler teria merecido a pena capital, se não se tivesse suicidado. Mas não há razão para proibir a publicação de Minha luta.

Bom mocismo identitário

As obras de Sílvio Almeida foram reprovadas publicamente, material e simbolicamente, no exame sectário do wokismo cultural e identitário feminista, devido, até onde sabemos, a um comportamento indevido do autor para com uma mulher, ainda não comprovado.

Confirmação pela Justiça que, repetimos, não pode estender a eventual punição à sua produção cultural.

Nos Estados Unidos, o wokismo cultural já impugna habitualmente obras pelo conteúdo e pelo caráter dos autores.

Cancelam-se cineastas, ficcionistas, poetas, historiadores, pintores brancos por abordarem, mesmo em um viés progressista, um tema negro. [Le monde, 9/11/2024.]

E não se pense que isso é coisa apenas dos Esteites. Por aqui, já se faz coisa semelhante, há muito.

A poesia do grande Castro Alves, por ele ser branco, já tem sido acusada de beirar ao racismo. Assusta pensar no que vai sofrer a produção literária e científica brasileira se esse furor moralista e racializante passar na peneira identitária os nossos intelectuais do passado e do presente. [1]

*Mário Maestri é historiador. Autor, entre outros livros, de Filhos de Cã, filhos do cão. O trabalhador escravizado na historiografia brasileira (FCM Editora).

Referências

ALMEIDA, Sílvio. O racismo estrutural. São Paulo : Sueli Carneiro ; Pólen, 2019.

FREYRE, Gilberto. Casa-grande & senzala: formação da família brasileira sobre [sic] o regime da economia patriarcal. 47. ed. rev. São Paulo: Global, 2003.

MAESTRI, Mário. Monteiro Lobato. O presidente negro pintou-se de branco e alisou o cabelo. Correio da Cidadania, 16/03/2011.

MAESTRI, Mário. A questão negra: a Fundação Ford e a Guerra Fria. A Terra é Redonda, 27;12/2022.

MAESTRI, Mário. Sílvio Almeida – nada justificaRevista A Comuna, 8/09/2024.

WANDERSON Chaves. A questão negra: a Fundação Ford e a Guerra Fria (1950-1970). Curitiba, Apris, 2019.

Nota

[1]Agradecemos a leitura da advogada Marina Maestri.

*Este texto não representa obrigatoriamente a opinião do Viomundo.

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Comentários

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Elias Bello

Monteiro Lobato era um racista.

Não daria essa literatura para uma criança.

Elias Bello

Prendam-se os homens.

Zé Maria

Da Série: “Quando a Infâmia Adquire Caráter Identitário”.

Zinda Vasconcellos

Este caso foi de uma VIOLÊNCIA absoluta. É pena ver isso num governo petista.

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