Leitor do Viomundo, sobre Bolsonaro: Gerson, também tenho pavor do que vem pela frente

Tempo de leitura: 3 min

Videoclipe  do álbum The Wall, de Pinkk Floyd e Roger Waters, lançado em 1979

por Edgar Rocha* 

Nasci em 1972.  Desde meus cinco anos de idade, vejo minha família militando.

Me lembro do terror que vivíamos, mesmo estando distantes do centro da participação política.

Foram seminaristas “suicidados”, militantes desaparecidos, autoritarismo nas escolas (aquela coisa de ordem unida, hastear bandeira, cantar o hino nacional, e temer, temer, temer).

Alunos apanhavam, eram expulsos, sobretudo se fossem pobres. Todo mundo tinha que tomar cuidado com o que falava em sala de aula.

Canalhas de todo tipo posavam de senhores da ordem e dos costumes.

Certa vez, levei um aperto de minha família: levei pra escola um livro pra ler nas horas vagas.

Achei bonito, porque tinha um porquinho segurando uma taça de champanhe,

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Eu estava na terceira série, mesmo assim meu professor não perdoou: “Isto é coisa de comunista!”

Chamou meus pais e eu passei o ano copiando o “Caminho Suave” [cartilha] nas horas vagas pra ter o que fazer e não virar marginal.

O livro era A Revolução dos Bichos, de George Orwell.  Minhas irmãs ficaram apavoradas, coitadas.

Não tenho nenhuma saudade de nada disto. Nem das dificuldades, da carestia, do desemprego, das humilhações, dos medos, da discriminação por ser pobre.

Lamento profundamente que, nas periferias, a repressão com “R” maiúsculo nunca tenha deixado de existir.

Reclamo disso feito pobre no Datena.

Não me conformo com o fato de a tortura, o medo, a criminalização dos mais pobres – tudo aquilo que mais eu desejaria ver combatido – jamais tenham sido alvo da combatividade de uma esquerda que se identifica muito mais com classe média do que com os mais pobres.

Fiz uma ironia dia desses, e ela ainda me vem à cabeça quando me irrito com minhas frustrações. É como disse o Mujica. A política é cíclica. Há períodos em que o pobre apanha e períodos em que a classe média também apanha.

Enquanto houver tolerância à dor alheia, vamos continuar neste ciclo.

Esta conciliação política jamais foi prioritária. Este seria o verdadeiro pacto pela democracia e pela governabilidade.

Na minha opinião, chamar os mais pobres para  denunciar a truculência contra a classe média letrada e se esquecer de defender o Estado de Direito para todos acaba confundindo a cabeça das pessoas, sobretudo daquelas que estão em situação mais frágil.

Aí, não dá para dizer que o povo não sabe votar.

Está difícil chegar a um favelado e dizer para ele não votar no Bolsonaro.

Tudo o que as pessoas querem é parar de apanhar, pelo menos de um dos lados.

Pensando como um refém do PCC numa comunidade dominada, o desespero não deixa outra opção senão tentar anular o inimigo mais próximo.

Sei que é um equívoco. Sei que a polícia não vai matar sua galinha dos ovos de ouro.

Mas, fazer o quê, se a esquerda não moveu uma palha para enfrentar o problema?

Ao contrário, tentou cooptar as “lideranças comunitárias” que comandam esses locais.

Isso ocorreu, sim! E não aceito que venham dizer que é mentira! Não, no caso da zona Leste de São Paulo.

Eu mesmo fico tão surpreso com a ambiguidade daqueles que elaboram ideologicamente essa “estratégia” que me atrevo a dizer que um dia, no futuro, muita coisa estranha terá de ser esclarecida para o real entendimento de certos fatos históricos.

Mas, só quem sofre com os resultados dessa situação pode se preocupar em entender. Os que controlam o jogo político nem querem tocar no assunto.

Os que não são atingidos pela repressão ininterrupta nos cantões e quebradas também nem estão nem aí. Eles podem se dar o luxo de serem “pragmáticos”, indiferentes, de trilharem os atalhos que só eles conhecem para chegada ao poder.

Ao Gerson Carneiro, o qual admiro desde sua primeira postagem, só posso dizer que também tenho pavor do que vem pela frente.

Só me ressinto de ser tão acostumado com o medo que já não sei o quanto poderá piorar nas periferias. Nem quero pensar muito, por ora para não entrar em pânico.

Edgar Rocha é leitor do Viomundo. Este texto foi publicado originalmente como comentário ao texto de Gerson Carneiro, publicado aqui.

ROGER WATERS, PERDOE O BRASIL! 

Roger Waters, vaiado em São Paulo por colocar Jair Bolsonaro numa lista de líderes fascistas, é filho de Eric Waters; um tenente que morreu na Itália, lutando contra o fascismo.
Vaiar as manifestações políticas de alguém com uma história como a dele é desrespeito e ignorância. Hoje, tentamos vencer esse desconhecimento num vídeo que também pretende ser um pedido de desculpas, em nome (da parte consciente) do Brasil.

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Comentários

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Márcio Muniz

Edgar, seu texto me tocou profundamente. Nascemos no mesmo ano e passamos por coisas parecidas na infância. Meu avô era comunista e fazia reuniões com outros militantes em casa (sempre à noite, escondidos). Tínhamos um medo absurdo da polícia (especialmente qdo passavam à noite com aquelas lanternas potentes iluminando as fachadas das casas; apagávamos as luzes e baixávamos o volume da TV nesses momentos). Também fui chamado às falas na escola qdo, como meu avô, chamei um coleguinha de camarada. O medo fez parte de minha infância e nunca pensei que fosse sentir o mesmo hoje, já com a barba grisalha e 46 anos vividos. Compartilho de seus pensamentos e de suas impressões sobre os governos progressistas que tivemos e cultivo a esperança de que consigamos abrir os olhos daqueles que nos cercam a tempo de evitar um novo mergulho naquela noite sem fim que vivemos nos anos de chumbo.

    Edgar Rocha

    É o que eu também espero, colega. Estas memórias precisam ser resgatadas por todos que vivenciaram o período ditatorial. Por incrível que pareça, é a nossa geração que está se derretendo de ódio e contaminando toda a sociedade. São pessoas com memória distorcida ou sublimada por afetos mesquinhos que nos fazem esquecer episódios desagradáveis. A mente humana é manipulável. Troca-se a democracia por um saudosismo superficial. Saudades das figurinhas no chiclete, das brincadeiras de rua, da tubaína, do Balão Mágico e outras “prioridades” não justificam o esquecimento de tudo que havia de ruim e a negação do que nos escapou aos olhos enquanto vivíamos frivolidades. A geração dos tiozinhos deve isto a garotada que vem por aí. Talvez, a imaturidade destas pessoas – sobretudo os homens – de nossa geração seja mesmo, efeito colateral da alienação e falta de liberdades, como sugere o excelente link feito pela Conceição Lemes entre o que lembramos e o vídeo do Pink Floyd (coisa do nosso tempo também). Somos nós, os quarentões de hoje, os mesmos meninos caindo no moedor de carne ou virando tijolinhos no muro. Chegou a hora de amadurecer, ou virar bolsominiom pro resto da vida. A escolha de nossa geração poderá definir/destruir o último sopro de esperança desta geração já abandonada pelo estado e entregue à violência e ao teatro da ordem pública. Bateremos os últimos pregos nos caixões de nossos filhos? Por um gole de Gini (aquele refrigerante de limão)???
    Abraços.

Edgar Rocha

Sra. Conceição, meus parabéns. Linda sacada. Fiquei honrado e o mérito é todo teu. Muito obrigado.
Sempre me lembro deste vídeo do Pink Floyd quando falo de certas experiências em minha vida estudantil. E olha que o ano era 1981! O Brasil já passava por um processo de “transição democrática”. O que nos mostra que democracia não se faz com decreto nem por aclamação. Leva tempo pra se sedimentar. E, como o conservadorismo resiste!!!
Receio que no tocante a educação, ele nunca acabou de fato. Apenas se acobertou. Basta ver a reação de certos profissionais de educação diante de projetos como o “Escola sem partido” ou da luta dos secundaristas contra a reestruturação da educação em São Paulo.
Seja em bolsões de conservadorismo rasgado, seja pela contaminação ideológica subliminar dos programas educacionais, a principal face do autoritarismo (o qual eu não apresentei no texto acima por desatenção) é a exclusão. Apesar de muitas vezes as demandas serem atendidas, a qualidade da educação e a dissuasão do jovem à busca de sua educação formal são alguns dos estratagemas que hoje garantem a “fábrica de tijolos” que amplia os muros erguidos pelo sistema.
Mudando de assunto, talvez seja mesmo a educação desumana oferecida aos mais abastados que justifique as reações ao show do Roger Waters. O Brasil formou fascistas por debaixo dos panos, sem que houvesse resistência. Muita coisa tem de ser revista. Mais do que lutar, precisamos saber exatamente pelo que lutar.

Mais uma vez, parabéns e obrigado!

Gerson Carneiro

Edgar,

Você me emocionou.
Muito obrigado.
Sigamos na labuta.
Hasta la victoria!

    Edgar Rocha

    A recíproca é válida. Força aí, também, Gerson! Você deve entender perfeitamente meu ponto de vista. Sei disto desde suas viagens ao Haiti. Estas sim, me emocionaram e me influenciaram.
    Esquenta (muito) não. Vai passar. É o purgatório, colega.

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