Joanna Burigo: O assassinato coletivo em Campinas foi perpetrado por misógino

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Ato realizado em junho de 2016  contra a cultura do estupro. Foto: Tânia Rêgo/Agência Brasil/Fotos Públicas

Em 2017, precisamos ouvir (de verdade) as feministas

Como era de se esperar, o ano novo começou com o gosto amargo e o mal estar do enorme porre político-social que foi 2016

por Joanna Burigo, em CartaCapital, 04/01/2017 

Um pouco antes das festas de final de ano foi bastante circulada, pelas redes sociais, a imagem de um tweet que convocava feministas a arruinarem as ceias familiares com nossas opiniões.

Houve quem tenha utilizado o meme de forma séria, genuinamente desejando coragem para as amigas.

Houve quem o tenha compartilhado sarcasticamente, no melhor estilo “se não for para incomodar nem vou”.

E também houve quem tenha questionado sua validade, declarando que a última coisa que queriam era estragar as festas em família.

O debate na internet por vezes lembra aquela canção popular imortalizada pelo Trio Irakitan, A Velha a Fiar, na qual sempre há uma pessoa ou animal tentando incomodar outra pessoa ou animal, enquanto a velha segue fiando sem pestanejar.

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Logicamente não há nada de errado no afã de criticar ou problematizar certas questões (afinal os feminismos se constituem precisamente disso), tampouco viso aqui culpabilizar as redes que, apesar das bolhas algorítmicas, têm valor precisamente por possibilitarem que muitas vozes oriundas de grupos histórica e sistematicamente excluídos encontrem vazão.

Tudo na internet é problematizado à exaustão, e para seguir navegando as redes, o espírito precisa se assemelhar ao da velha da música, que fia sem parar apesar do acúmulo de chateações geradas por outrem.

O debate acerca de certos assuntos e perspectivas, para algumas pessoas, pode parecer amolação – mas para quem os propõe tê-los é uma questão de sobrevivência.

Cabe continuar não apenas fiando, mas prestando atenção no que é dito, para que seja então possível pensar a respeito de colocações que podem parecer alheias, mas que podem significar risco de morte.

Mas minha intenção não é discorrer sobre a internet, e sim sobre a falta de escuta e reflexão que pode ser percebida em conversas que acontecem não somente ali, mas também offline.

O que pretendo argumentar é que como feministas, quer estejamos ou não propositadamente dispostas a desestabilizar a tradição machista, o fazemos simplesmente ao termos a coragem de expressar nossas perspectivas, ainda que nossa intenção seja pacífica.

Chacina de Campinas

Foi Djamila Ribeiro quem disse que são aqueles que mais precisam escutar os argumentos de quem aponta opressão sistêmica os que menos querem ouvir sobre o assunto.

Na virada do ano o País foi chocado com notícias sobre a Chacina de Campinas, e tão logo feministas começaram a apontar o óbvio, os ataques a nós começaram.

O assassinato coletivo foi não apenas cometido, mas planejado a partir da perspectiva misógina de seu perpetrador.

O que aconteceu foi um feminicídio, e esta interpretação sobre o fato não constitui o falacioso “mimimi” feminista: ela é facilmente verificável ao analisarmos o conteúdo da carta póstuma do assassino, cuja descrição da ex-esposa é claramente misógina.

Os números também sustentam essa afirmação: a cada onze minutos uma mulher é estuprada no Brasil, que também é o quinto país do mundo onde mais se matam mulheres de acordo com Mapa da Violência 2015, e o campeão mundial de assassinatos de travestis e transexuais segundo pesquisa ONG Transgender Europe.

Não é leviano utilizar esta tragédia para sustentar o argumento de que os pontos de vista feministas – os mesmos que causam tanta comoção a ponto de “arruinarem” encontros familiares – são silenciados justamente por serem desconfortáveis.

Cada vez que uma feminista resiste e se expressa de forma contrária aos comentários e atitudes machistas embutidas do cotidiano – seja em família, no trabalho ou nas redes sociais – ela vai enfrentar fortes reações de silenciamento.

Sem a abertura para falar, e sem que exista possibilidade de escuta por parte daqueles cujas vidas não estão em risco por conta do próprio gênero, jamais teremos a possibilidade de reverter o quadro de violência e morte que assombra as vidas de todas nós.

Os canais formais não protegem as mulheres. A mídia é muito rápida em questionar o passado e o caráter de mulheres que denunciam seus agressores.

Quando expomos nossa vulnerabilidade, somos acusadas de estar fazendo drama. Não é que não estejamos falando, trabalhando ou fazendo campanhas de conscientização. É que onde sobra machismo, falta escuta.

Em um artigo publicado no site Justificando nesta terça 3, Roberto Tardelli convida os homens a discutirem masculinidade, contemplando ações machistas comezinhas, que podem passar despercebidas para eles, mas que – sabemos, e temos evidência de sobra para sustentar essa afirmação – resultam em violência e morte.

É absolutamente crucial que mais e mais homens comecem a ouvir o que dizem as feministas, pois temos acesso e produzimos os estudos que apontam que o machismo constitutivo é bastante inconsciente para quem dele não sofre.

É preciso tomar responsabilidade, e compreender o próprio machismo é um passo importante para remediar este mal.

Homens tendem a ouvir outros homens, e historicamente vêm nos acusando de loucas, histéricas e dramáticas simplesmente por se recusarem a assimilar o que não querem ouvir.

Machismo – e também racismo, xenofobia, homofobia e elitismo – não são características fisiológicas, nem (necessariamente) falhas de caráter, mas sim sistemas sociais de poder e dominação.

O fato de que existem mulheres machistas, por exemplo, não anula o fato de que o machismo é constitutivo de nossa sociedade – pelo contrário, evidencia ainda mais o caráter estrutural deste fenômeno social.

Não é preciso ser discípulo do Jece Valadão para ser machista. Para ser machista basta cometer ações machistas. Ninguém está imune. Apontar machismos – em conversas e ações – não significa uma tentativa de silenciar, totalitarizar ou dominar ninguém.

Apontar machismos cotidianos, ainda que seja para nossos amigos e familiares, é apontar para as ações que contribuem para e fomentam a existência de violências pautadas na inequidade de gênero.

Pular na defensiva antes mesmo de assimilar o recado denota imaturidade e soberba. Escutar é tomar responsabilidade, e pensar é, antes de tudo, pensar-se.

Falar é uma ação, e é uma ação poderosa para aquelas cujo silenciamento pode resultar em morte. Meu desejo para todas as mulheres nesse novo ano é que tenham coragem para revelar até mesmo a mais mundana das ações machistas, ainda que isso cause desconforto em entes queridos.

Está mais do que na hora dessa ressaca moral bater em quem se esbalda no o porre da injustiça.

Joanna Burigo é  fundadora da Casa da Mãe Joanna e mestre em Gênero, Mídia e Cultura.

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