Jair de Souza: Banco Central independente é crime contra o povo
Tempo de leitura: 5 minBanco Central independente é crime contra o povo
Por Jair de Souza*
Em fevereiro de 2021, pouco antes de a Câmara dos Deputados aprovar a proposta do governo bolsonarista para efetivar legalmente a autonomia do Banco Central, eu publiquei aqui mesmo neste espaço um artigo que buscava alertar a todos acerca da gravidade do crime contra os interesses populares que estava prestes a ser consumado.
Agora, passado pouco mais de um mês da posse do governo democrático-popular que pôs fim ao regime do nazismo bolsonarista, estamos constatando a triste comprovação da correção das preocupantes observações levantadas naquele momento.
Um Banco Central independente, sob o comando de um representante do capital financeiro indicado pelo anterior governo nazista bolsonarista, parece estar determinado a infernizar a vida das novas autoridades eleitas, que tiveram a ousadia de pôr fim ao plano de perpetuação da aliança militar-financeira agrupada em torno do bolsonarismo.
Mas, não apenas o nazismo bolsonarista se dedica à defesa da proposta de que o Banco Central funcione à revelia das autoridades eleitas pela população.
A maioria dos articulistas liberais da mídia corporativa também encampa essa ideia. O argumento mais comum a que recorrem é o de que, assim, se estaria impedindo sua utilização para fins políticos.
Em outras palavras, procura-se ressaltar a importância positiva de manter o BC funcionando dentro de estritos parâmetros técnicos.
Nesta etapa da história em que estamos, já não deveria ser necessário dizer o que vou expressar à continuação, mas não há como evitá-lo: Não há nada mais político e concernente aos interesses de toda a sociedade do que o funcionamento do Banco Central.
E quanto mais quiserem apresentá-lo como um instrumento meramente técnico e imparcial, mais se evidencia que ele estará sendo usado politicamente. E, neste caso, no pior sentido em que a política pode ser utilizada: para a manipulação e o engano dos incautos.
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Com o objetivo de possibilitar que mesmo aqueles que não são versados em economia possam entender o cerne da questão envolvendo a determinação da taxa de juros numa sociedade e o papel de classe exercido por um Banco Central, vamos apresentar e analisar alguns exemplos teóricos hipotéticos que poderão permitir a avaliação de quem ganha e quem perde com a manipulação da taxa de juros.
Para facilitar nossa compreensão e raciocínio, vamos imaginar que temos um país com as seguintes características:
- 100.000 agentes econômicos, dos quais 90.000 são trabalhadores assalariados e 10.000, empresários empregadores;
- O valor total do capital investido em atividades produtivas é de R$ 1.000.000.000,00;
- A taxa média de lucro é de 10% do capital investido;
- A repartição dos rendimentos entre trabalhadores e empresários se dá na base de 50% para cada classe.
Como resultado dos dados recém mencionados, obtemos o seguinte panorama:
- Renda total gerada: R$ 1.100.000.000,00 (1.000.000.000,00 x 1,10)
- Participação média por classe nos rendimentos:
Trabalhadores: R$ 6.111,11 (550.000.000,00/90.000)
Empresários: R$ 55.000,00 (550.000.000,00/10.000)
Como resultado dos dados recém mencionados, obtemos o seguinte panorama:
- Renda total gerada: R$ 1.100.000.000,00 (1.000.000.000,00 x 1,10)
- Participação média por classe nos rendimentos:
Trabalhadores: R$ 6.111,11 (550.000.000,00/90.000)
Empresários: R$ 55.000,00 (550.000.000,00/10.000)
Suponhamos agora que, mantendo-se a mesma participação percentual das classes na apropriação dos rendimentos da produção, o BC entra em cena e decide elevar a taxa de juros para 13,5%.
Logicamente, isto vai servir como forte estímulo para que alguns empresários decidam retirar recursos até então investidos na produção para aplicá-los na ciranda financeira.
Sendo modestos em nossas expectativas, vamos imaginar que tão somente 10% dos recursos totais se deslocam para o campo da especulação. Teremos, assim, o seguinte quadro:
- Valor investido em atividades produtivas com juros de 10%: R$ 900.000.000,00;
- Resultado total obtido na produção: R$ 990.000.000,00 (900.000.000,00 x 1,1)
- Montante aplicado no circuito financeiro na base de 13,5% de juros: R$ 100.000.000,00;
- Resultado total da aplicação financeira: R$ 113.500.000,00 (100.000.000,00 x 1,135)
- Renda média por classe na renda total gerada:
Trabalhadores: R$ 5.500,00 (495.000.000,00/90.000)
Empresários: R$ 60.850,00 [(495.000.000,00 + 113.500.000,00)/10.000]
Como os exemplos vistos deixam evidente, com a elevação da taxa de juros, os empresários obtêm uma elevação significativa de seus rendimentos, ao passo que os trabalhadores sofrem uma drástica perda.
Em outras palavras, em lugar de crescer usando seus recursos para criar novas riquezas (com todas as implicações daí advindas), o empresariado aumenta sua participação nos rendimentos com a mera especulação no mercado financeiro.
Mas, alerto aos mais sensíveis, não se preocupem, a intenção desses exemplos não era assustar ninguém.
Na verdade, a realidade é muitíssimo pior do que as hipóteses apresentadas podem dar a entender. Vamos tentar explicar o porque disso nas próximas linhas.
Primeiramente, nunca deveríamos nos esquecer que a circulação do dinheiro por si só é incapaz de gerar qualquer riqueza. Um capital só pode gerar um acréscimo real de riquezas se for empregado em alguma atividade realmente produtiva.
Quando um empresário toma um empréstimo e usa o dinheiro conseguido para criar uma nova fábrica ou expandir a já existente, ele vai poder aumentar o volume de riquezas da sociedade e, em consequência, todos tendem a ganhar com sua atuação.
Porém, se alguém coloca seu dinheiro a juros em um banco, que o reempresta a outro cliente cobrando taxas mais elevadas e este, por sua vez, procede de igual maneira, nenhum acréscimo de riqueza terá havido ali. Os ganhos neste caso só serão aparentes e numéricos, nunca reais.
Na verdade, quando a fração do capital destinada às atividades produtivas é diminuída em benefício da especulação financeira, há efetivamente uma deterioração das condições de vida do conjunto da sociedade.
Além do mais, fomos muito pouco realistas nas hipóteses apresentadas ao supor que a participação relativa entre trabalhadores e empresários nos rendimentos gerados se manteriam inalterados quando da diminuição do volume de recursos dedicado às atividades produtivas.
Por lógica, nessas condições, costuma ocorrer uma acentuada queda no percentual do bolo que cabe aos trabalhadores. E não é difícil entender as razões para que assim seja.
Quando o dinheiro sai da produção para dirigir-se à especulação financeira, muito menos mão de obra vai ser necessária para tocar a diminuída máquina produtiva.
Em consequência, muitos trabalhadores ficarão desempregados. Com o aumento do desemprego, o nível dos salários tende a baixar significativamente.
A diminuição na oferta de postos de trabalho redunda em maior concorrência entre os trabalhadores e, com isso, salários menores para os que conseguem arrumar emprego.
Por outro lado, para aqueles que vivem do rentismo, a possibilidade de controlar a taxa de juros é sempre uma ferramenta de inestimável valor. Os que detêm esse poder podem aumentar sua participação na renda total através do aumento da espoliação dos demais.
Embora o montante de riquezas existentes venha a se reduzir, a violenta elevação da expropriação das maiorias possibilita que os grupos que controlam o rentismo melhorem sua participação em relação ao restante da sociedade.
É por isso que as classes dominantes demonstram ter tanto interesse em que o Banco Central seja um órgão independente.
É claro que o que eles entendem por independente, na realidade, quer dizer “alheio ao controle das maiorias populares da nação e inteiramente submisso aos desígnios do grande capital”.
Dar as diretrizes para o funcionamento do Banco Central não é algo que possa ser indiferente para as maiorias populares. A produção e o emprego dependem de decisões tomadas pelas autoridades que dirigem o Banco Central.
Que mais ou menos recursos sejam destinados para a construção de moradias para o povo necessitado, ou usados para garantir que os banqueiros possam se tornar ainda muito mais poderosos, são alternativas que dependem de quem controla o funcionamento dessa instituição.
Apoiar a permanência do Banco Central como instituição independente e estritamente técnica é como acreditar que possa haver plenas condições para o exercício da democracia entre as raposas e as galinhas. As raposas vão todas estar sempre favoráveis. E as galinhas?
*Jair de Souza é economista formado pela UFRJ; mestre em linguística também pela UFRJ
Leia também:
Comentários
Zé Maria
Excerto
“Para aqueles que vivem do rentismo [‘dinheiro a juro’],
a possibilidade de controlar a taxa de juros é sempre
uma ferramenta de inestimável valor.
Os que detêm esse poder podem aumentar sua
participação na renda total através do aumento
da espoliação dos demais.”
.
.
Foi assim que o Trio Falcatrua da 3G Capital / AMBEV / Americanas *
incluíram seus Nomes no Topo da Lista de Bilionários da Forbes braZil **.
*(https://pt.wikipedia.org/wiki/3G_Capital)
**(https://forbes.com.br/bilionarios-2022/2022/12/lista-forbes-de-bilionarios-brasileiros)
.
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Zé Maria
Detalhe
Antigamente, os que viviam de ‘Dinheiro a Juro’
eram popularmente conhecidos como AGIOTAS.
Até que um dia a Maior Matriz Capitalista Mundial
alterou o nome para BANCO, incorporando-o ao
Sistema Financeiro Governamental, oficializando
a AGIOTAGEM e transformando o AGIOTA Privado
em “Investidor”.
.
Zé Maria
Adendo
Atualmente, as Cortes Superiores do Poder Judiciário Brasileiro
julgam constitucional a AGIOTAGEM, tecnicamente chamada
de USURA, isto é, a Cobrança Taxas de Juros Exorbitantes
fixadas pelos BANCOS que arrancam até o Último Fio de Cabelo
do Tomador de Empréstimo, auferindo LUCROS Astronômicos.
No caso da Taxa Básica de Juros, a SELIC, é Fixada por um Banco
Oficial Denominado Banco Central do braZil, a qual é utilizada
para remunerar os Empréstimos tomados no Mercado Financeiro
pelo Estado Brasileiro, incorporando-os à Dívida Pública da União.
Assim, são os AGIOTAS, ou seja, os USURÁRIOS do Mercado que
emprestam ‘Dinheiro a Juro’ à União Federal, sendo conhecidos,
portanto, como Credores da Dívida Pública Federal.
Por conseguinte, é no mínimo curioso nesse Sistema de Dívida
que o próprio Banco Central Oficial seja o principal responsável
por determinar uma Taxa de Juros Altíssima, a Maior do Mundo,
a serem Pagos aos Credores, AGIOTAS, USURÁRIOS da Nação.
.
Zé Maria
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“Noções Básicas Sobre Juros e o Combate Histórico à Usura”
Resumo
Este artigo esboça e examina conceitos, classificações e noções fundamentais
relativas aos juros.
A noção de principal, o conceito de juros, taxa de juros e critérios para seu cálculo,
juros simples, juros compostos, juros remuneratórios e moratórios, juros legais e
convencionais, usura, capitalização e anatocismo.
Postas essas noções, aponta referências históricas da luta da humanidade contra
a exploração por juros exorbitantes, identificando disposições contrarias à usura
nas mais remotas codificações, a exemplo do Código de Manu, Código de Hamurabi,
Lei das XII Tábuas, Bíblia e Alcorão. Por fim, colige demais referências históricas
relacionadas às juros, sintetizando sua regulamentação no Brasil, e concluindo
serem os juros exorbitantes historicamente combatidos, desde as mais remotas
civilizações.
Por Martsung F.C.R. Alencar, na Revista Jus Navegandi, Ano 11, Nº 1000, 2006.
I. O Conceito de Juros
[…]
II. Taxa de Juros e Critérios para o Cálculo dos Juros
[…]
III. Classificação dos juros
[…]
IV. Breve Histórico da Legislação Anti-Usura
O Direito, no decorrer dos tempos, variou, desde a proibição dos pactos nesse
sentido, passando por tentativas de controle com estabelecimento de taxas
máximas, conhecendo ainda, sob a batuta dos fisiocratas e liberais do século
XVIII, período de liberação, ausentes quaisquer limitações às taxas, na conhecida
máxima do “Laissez-faire, laissez passer, ne pas trop gouverner”, e retornando
historicamente para uma “liberdade vigiada”, típica do modelo preconizado na
constituição Weimariana, batizado de “welfare State”, em que se permite a
estipulação dos juros, porém, atraindo atuação do Estado que intervém e
disponibiliza mecanismos jurídicos para coibir eventuais abusos.
Arnoldo Wald (1994, p. 120-121) faz oportuna síntese histórica, que parte da
antiguidade, passa pela Igreja da Idade Média, pelo liberalismo clássico, até
apontar, mais recentemente, a necessidade de limitação percebida já no que
se convencionar nominar Welfare State, ou estado de bem estar, com retorno
da interferência estatal para assegurar uma observância, ainda que mínima
dos direitos sociais:
“Os juros surgiram, entre os povos da antigüidade, como uma compensação
pelo uso do capital alheio.
A cobrança dos juros, condenada pelos Concílios de acordo com a doutrina
da Igreja, não foi admitida na maioria das legislações européias anteriores
à Revolução Francesa.
Em reação, inspirando-se na lição de Calvino, os autores protestantes,
de um lado, e os economistas e filósofos franceses do século XVIII, liderados
por Montesquieu, por outro lado, consideraram cabível a compensação pela
utilização do capital alheio, desde que estabelecida em bases moderadas
e não configurando a usura.
Os fisiocratas entendiam que o Estado não devia interferir nas relações
comerciais entre os indivíduos, fixando o princípio do ‘Laissez-faire, laissez passer,
ne pas trop gouverner’, e assim, numerosas legislações do século XIX e algumas
do início do século XX não fixaram limites máximos para os juros.
O Estado moderno, na sua feição social, inspirada na Constituição de Weimar,
afirmou todavia sua intervenção ampla tanto no plano econômico como no
campo social, só admitindo a cobrança de juros até determinado teto e
combatendo todas as formas de agiotagem e de usura, considerando-as
até como figuras típicas de direito penal.
Aprofundando nossa verificação histórica, interessante notarmos que os
fragmentos das mais antigas legislações trazem referências ao histórico
repúdio à usura, a exemplo dos Códigos de Hamurabi, de Manu, da Lei
das XII tábuas, do Alcorão e da Bíblia Sagrada (desde o Antigo Testamento).
Vejamos:
1) “O Código de Hamurabi” [ Cerca de 1.772 a.C. (antiga Mesopotâmia) ]
Vejamos esse trecho que trata, especificamente, da usura, já estabelecendo
sanção para a ganância que se possa evidenciar, quando do empréstimo a juros
(VIEIRA, 1994, p. 22-23):
“Capítulo VII, Empréstimos e Juros
Art. O. Se um mercador emprestou a juros grãos ou prata e não recebeu o capital,
mas, recebeu os juros do grão ou da prata, e, ou não descontou o grão ou prata
que recebeu e não redigiu um novo contrato ou adicionou os juros ao capital,
esse mercador restituirá em dobro todo grão ou prata que tomou.
Art. P. Se um mercador emprestou a juros grão ou prata e quando emprestou
a juros ele deu a prata em peso pequeno ou grão em medida pequena e quando
o recebeu ele quis receber a prata em peso grande ou grão em medida grande,
esse mercador perderá tudo quanto houver emprestado.”
Aqui se estabelece interessante pena para quem faz cobrança indevida,
não abatendo os valores já recebidos, qual seja, a restituição em dobro.
Tal idosa disposição guarda clara correlação com a atual dicção dos
arts. 940 do Código Civil [2002] e 42 do Código de Defesa do Consumidor [CDC]:
“Código Civil
Art. 940 – Aquele que demandar por dívida já paga, no todo ou em parte, sem ressalvar as quantias recebidas, ou pedir mais do que for devido, ficará obrigado a pagar ao devedor, no primeiro caso, o dobro do que houver cobrado e, no segundo, o equivalente do que dele exigir, salvo se houver prescrição.”
“CDC
Art. 42 – …
[…]
Parágrafo único – O consumidor cobrado em quantia indevida tem direito
à repetição do indébito por valor igual ao dobro do que pagou em excesso,
acrescido de correção monetária e juros legais, salvo hipótese de engano
justificável.”
E mais, quanto aos juros abusivos, ao referir-se àquele que emprestou em peso
ou medida pequena e quis receber em peso ou medida grande, aqui presumida
a idéia de tentar locupletar-se, por vantagem desproporcional, do alheio;
o Código de Hamurabi impõe a perda de todo o capital emprestado.
2) “O Código de Manu” [ Entre Séculos II a.C. e II d.C. (Índia Brâmane)]
Essa antiga codificação também já se referia a empréstimo com juros, vejamos (VIEIRA, 1994, p. 66-67):
“Art. 138. Um mutuante de dinheiro, se ele tem um penhor, deve receber,
além de seu capital, o juro fixado por Vasistha, isto é, a octogésima parte
de cem por mês ou em um quarto.
Art. 139. Ou então, se ele não tem penhor, que ele tome dois por cento ao mês,
se lembrando do dever dos homens de bem; porque, tomando dois por cento,
ele não é culpado de ganhos ilícitos.
[…]
Art. 150. Um juro que ultrapassa a taxa legal e que se afasta da regra precedente,
não é válido; os sábios o chamam processo usuário; o mutuante não deve
receber no máximo senão cinco por cento.
Art. 151. Que um mutuante por um mês ou por dois ou por três, a um certo juro,
não receba o mesmo juro além do ano, nem nenhum juro desaprovado, nem
juro de juro, por convenção anterior, nem um juro mensal que acabe por exceder
o capital, nem um juro extorquido de um devedor em um momento de aflição,
nem os lucros exorbitantes de um penhor, cujo gozo está no lugar do juro.”
Muito clara a idéia de nulidade das estipulações de juros usurários, bem como
a intenção de traçar limites aos juros, estabelecendo parâmetros para legalidade
das taxas cobradas, e afastando os abusos.
O código inclusive diferenciava a dívida garantida por penhor da que não gozasse
de tal garantia, sendo justos juros maiores para esta em detrimento daquela;
aqui vemos a idéia de juros para cobertura dos riscos, sendo variáveis
proporcionalmente vinculadas.
Os parâmetros para afastar abuso, como que o mutuante não receba juros
desaprovado, ou juro de juro (anatocismo), nem um juro que acabe por exceder
o capital, nem um juro extorquido de um devedor em momento de aflição,
permanecem perfeitamente autuais, sendo tais as mesmas idéias que informam
nossa legislação de combate à usura.
E sobre a possibilidade de revisão contratual, para muitos uma inovação das
codificações atuais, esse secular código já proclamava (VIEIRA, 1994, p. 68,69):
“Art. 161. Todo contrato feito por uma pessoa ébria ou louca ou doente, ou
inteiramente dependente, por um menor, por um velho ou por uma pessoa
que não tem autorização, é de nenhum efeito.
Art. 162. O compromisso tomado por uma pessoa de fazer uma coisa, ainda que
seja confirmada por provas, não é válido, se é incompatível com as leis
estabelecidas e os costumes imemoriais.”
Ressalte-se que a idéia de anulação de negócio jurídico defeituoso,
seja no elemento subjetivo, quanto aos contraentes, seja quanto ao objeto,
ou ainda quanto à forma da avença, tem, portanto, raízes históricas bastante
remotas.
E os juros ilegalmente fixados são clara contaminação do objeto do contrato
de financiamento.
3) “A Lei das XII Tábuas” [ 753 a.C. (Roma Antiga: “Lex Duodecim Tabularum”) ]
Aqui também encontramos remissão expressa aos juros e tentativa de regular
sua cobrança (VIEIRA, 1994, p. 155-157):
“Tábua VIII – dos Delitos
Os juros de dinheiro não podem exceder de uma onça, isto é, 1/12 do capital
por ano (‘unciariu foenus’), o que dá 8 1/3 por cento por ano;
se se calcula sobre o ano solar de 12 meses, segundo o calendário já introduzido
por ‘Numa’ (a pena contra o usuário que ultrapassa o limite é do quádruplo).”
Ou seja, a Lei das XII Tábuas não só estabeleceu limites expressos aos juros,
como ainda, deles tratou em tábua dedicada aos delitos.
Isso é mais que suficiente para percebemos a valoração dada à usura e
ao traço de indesejabilidade que já maculava tal prática.
Ainda na Lei das XII Tábuas, oportuno o apontado por Jayme Altavila
(2001, p. 106), que ilustra ainda mais a repulsa da referida codificação
à usura:
“E o código não tinha a menor consideração com a agiotagem, ou com o agiota,
que abominava explicitamente, quando afirmava:
‘Improbum foenus exercentibus et usurarum illicite exigentibus, infamiae
macula irroganda est’ (Cod. L. 2, t. 12, fr. 20).
Aos que exercem a agiotagem desonesta e que exigem ilicitamente juros
de juros, deve ser lançada a mácula de infâmia.
4) “Torá” [ Código de Leis Judaicas; Pentateuco da Bíblia Cristã (1300-1250 a.C.) ]
No Livro Sagrado Cristão [Velho Testamento] mais seguido do planeta,
não foi outro o trato conferido aos juros, que não a limitação e repulsa à usura,
tal como já o observamos em relação às codificações anteriormente citadas.
Vejamos alguns versículos:
“A teu irmão não emprestarás à usura,
nem à usura de dinheiro,
nem à usura de comida,
nem à usura de qualquer coisa
que se empresta à usura.”
(Deuteronômio, 23, v. 19)
“Ao estranho emprestarás à usura,
porém a teu irmão não emprestarás
à usura.
(Deuteronômio, 23, v. 20)
Examinado com cautela essas passagens, percebemos que a Bíblia está
se referindo à usura como sinônimo de juros, e vedando, portanto,
a cobrança destes aos irmãos (não apenas irmãos na acepção estrita
de família que adotamos hoje, mas irmãos no sentido de co-cidadãos,
membros de um mesmo povo).
E a passagem traduzida, como se permitindo usura ao estranho, não deve
receber literal interpretação, pois na expressão usura aqui referida (fruto de
sucessivas traduções) está implícita a idéia de juros, remuneração pelo uso
do capital, mas não de usura como cobrança de juros abusivos (compreensão
técnica do termo); estes, mesmo aos estranhos, pelo interpretação sistemática
do texto Sagrado em comento, eram também proibidos.
5) “Alcorão” [ “القرآن”, “al-Qurʾān” (transliterado do Árabe) = “A Recitação” (Século VI) ]
(https://pt.euronews.com/2015/07/22/descoberto-alcorao-contemporaneo-de-maome)
Como consignou Vieira (1994, p. 155), o árabe distingue a usura daquilo que
chama ‘riba’, que quer dizer aumento ou vantagem, isto é, uma compensação
justa de um empréstimo.
A usura, porém, não é somente uma infração penal, como um grave pecado
perante o Alcorão, que registra estes preceitos (VIEIRA, 1994, p. 156-157):
“Capítulo II, v. 276 – ‘Deus permitiu a venda, proibiu a usura.
Aqueles que voltarem para a usura serão entregues ao fogo,
onde ficarão eternamente’.
Capítulo III, v. 125 – ‘Ó crentes! Não vos deis à usura, elevando a quantia ao dobro
e sempre ao dobro’.
[…]
Capítulo XXX, v. 38 – ‘O dinheiro que dais a juros para o aumentardes com
o bem dos outros, não aumentará perante Deus’.”
Nesse contexto, interessante anotar uma das “máximas de sabedoria do Islã”,
no clássico “Kitab al halal wa al-haram”, de Algazali (HANANIA, 1994, p. 10):
“Disse o Profeta:
‘Um dirham proveniente da usura é mais grave aos olhos de Deus [Alá]
que trinta adultérios cometidos entre os muçulmanos’.”
Aqui se ilustra, muito bem, a repulsa do Islã à usura.
6) “Demais Referencias Históricas”
Vejamos referências coligidas no parecer do então Consultor-Geral da República,
o advogado Saulo Ramos, reproduzido na ADIn 4-7/DF [*]:
“A angústia brasileira contra os juros altos é idêntica à de todos os povos,
em todos os tempos.
Aristóteles afirmava que ‘pecunia nom parit pecuniam’, e Jesus Cristo,
segundo Lucas, pregava: ‘mutum date, nihil sperantes’:
‘Em Atenas a taxa de juros era de 12% ao ano;
na China habitualmente cobrava-se 12%,
elevando-se a taxa, se o empréstimo era
a longo prazo, podendo atingir até 30%;
em Roma a taxa era de 12%, mas efetuavam-se
empréstimos até 48%;
na Idade Média os lombardos e judeus cobravam
a taxa de 20%.
Henrique VIII, na Inglaterra, em 1546, proibiu
taxa superior a 10%; mas nas colônias inglesas,
notadamente na Índia, cobrava-se até de 60%.
A Doutrina da Igreja Católica opôs-se à cobrança
de juros.
Pensadores e filósofos esposaram a teoria de que
não era lícito cobrar-se um preço pela utilização
de moeda, valendo-se notar a tese de Aristóteles
que ‘a moeda, ao contrário dos seres vivos,
não se reproduz’…”
(‘in’ ‘Repertório da Enciclopédia do Direito Brasileiro’,p.296, vol.30)
[*] STF – Ação Direta de Inconstitucionalidade (Adin) n.º 4-7 – DF
https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=266153
Íntegra:
https://jus.com.br/artigos/8158/nocoes-basicas-sobre-juros-e-o-combate-historico-a-usura
Leia também:
“Limitação aos Juros em Nível Constitucional, no Pré e Pós EC nº 40/2003”
I. A Redação do Original art. 192, § 3.º, CF/88,
e a EC 40/2003
A CF/88, em seu título VII, capítulo IV, que trata do Sistema Financeiro Nacional, pelo menos antes da recente alteração introduzida pela EC 40 de 30 de maio de 2003, havia estabelecido em seu artigo 192, § 3.º os alicerces dos denominados “juros reais”, limitando-os objetivamente, na seguinte dicção:
“Art.192. – O sistema financeiro nacional, estruturado de forma a promover o desenvolvimento equilibrado do País e a servir os interesses da coletividade, será regulado em lei complementar que disporá, inclusive, sobre:
[ …]
§ 3º. As taxas de juros reais, nelas incluídas comissões e quaisquer outras remunerações direta ou indiretamente referidas à concessão de crédito, não poderão ser superiores a doze por cento ao ano; a cobrança acima deste limite será conceituada como crime de usura, punido, em todas as suas modalidades, nos termos que a lei determinar.”
(https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm)
Já a EC 40/2003, publicada no DOU de 30 de maio de 2003,
que altera completamente [literalmente riscando] o art. 192
da Constituição Federal, excluindo todos os seus incisos e
parágrafos, entre os quais o § 3º, em que se balizava a
limitação aos juros …
II. A Auto-Aplicabilidade do art. 192, § 3.º,
aos Contratos Anteriores à EC n. º 40/2003
(Sinopse da Doutrina e Jurisprudência)
Íntegra:
https://jus.com.br/artigos/8575/limitacao-aos-juros-em-nivel-constitucional-no-pre-e-pos-ec-n-40-2003
.
Zé Maria
.
Como visto acima, “a Redação Original do Parágrafo 3º do Artigo 192
da Constituição Federal de 1988, em seu título VII, capítulo IV, que
trata do Sistema Financeiro Nacional, estabeleceu “os alicerces dos
denominados ‘juros reais’, limitando-os objetivamente”, a 12% a.a.
(DOZE POR CENTO AO ANO); “a cobrança ACIMA DESTE LIMITE será
conceituada como CRIME de USURA, punido, em todas as suas
modalidades, nos termos que a lei determinar.” (Art 192, §3º, CF88).
No ‘Fim da História’, a Hegemonia Neoliberal no Parlamento do Brasil
simplesmente revogou o Dispositivo Constitucional Original que
Limitava a Taxa de Juros no País a no Máximo 12% ao Ano, liberando
a AGIOTAGEM/USURA no País aos Agentes Financeiros do Mercado.
.
José Espare
A argumentação e os exemplos apresentados mostram que as decisões tomadas pelo Banco Central afetam diretamente a situação de vida da população como um todo. Sendo assim, entendo que é mais do que justo que o Banco Central esteja sempre sob o comando de quem pode falar em nome do povo. Eu sei que o presidente da República depende da votação popular para chegar ao cargo. E quem elege a direção do Banco Central? É também o povo?
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