Heleno Corrêa: Certo, torto e errado

Tempo de leitura: 7 min

Mais novos médicos nacionais, médicos estrangeiros e corporação médica no Brasil. O Certo, o torto e o errado.

por Heleno R Corrêa Filho, no blog do Cebes

Chegou a notícia de que o Conselho Federal de Medicina Brasileiro anuncia a reprovação de 95% dos médicos formados em faculdades latino-americanas que tentam revalidar seus diplomas no Brasil. A maioria são brasileiros e filhos de brasileiros, sendo muitos deles filhos de médicos(as) brasileiros(as).

Junto chegou a notícia de que o Governo da Presidenta Dilma por intermédio do Ministro Aloísio Mercadante planeja aumentar mais 2.415 novas vagas em cursos de medicina instalados no Brasil.

São dois movimentos irritantes de um confronto declarado entre a corporação profissional médica e a Saúde Pública do Brasil onde o(s) governo(s) federal(ais) se comporta(m) mal. A corporação médica também voltou a se comportar mal.

Falemos primeiro do governo sob um ângulo que certamente não agrada muito quem é governo, mas que a imprensa do PIG aborda contando a história pelo contrário, responsabilizando indevidamente o governo de coalizão liderado pelo PT.

Desde o Governo demotucano (1994-2002) que as faculdades de Medicina vêm sendo aumentadas em processo geométrico e durante o governo Lula-Dilma continuaram aumentando de modo aritmético (2003-2012). A filosofia de mercado neoliberal diz que educação é ‘commodity’ e deve ser livremente criada, exportada e vendida.

Para isso o processo de criar faculdades PRIVADAS novas de Medicina acompanhou a redução da capacidade formadora das faculdades públicas. As faculdades públicas se voltaram para a política suicida e subserviente à CAPES, lideradas pelas corporações profissionais e científicas, embarcando no produtivismo acadêmico que vem liquidando a qualidade do ensino médico de graduação.

Tanto o governo demotucano quanto o governo PT-PMDB e base aliada promoveram ou cederam à abertura de novas vagas de graduação em medicina em condições inconvenientes para a qualidade da formação de novos médicos. Isso ocorre porque a “base aliada” de hoje é a mesma dos governos anteriores, composta por congressistas interessados na abertura de novas escolas privadas e que geralmente negam recursos novos para as escolas públicas.

Nas escolas públicas de medicina só se tornou possível “produzir” publicando mais relatos de pesquisa com a retirada de horas de ensino. Os professores passaram a participar de um quadro de recursos humanos reduzido e mal pago. Fazem pesquisa com pouco ou nenhum financiamento e buscam dinheiro extra de preferência no mercado privado. O CNPq e outras agências de financiamento prosseguiram a tradição de pagar mal os projetos de pesquisa. O pesquisador-professor diz que precisa de 100 mil para uma pesquisa e “ganha” 80mil. É pegar ou largar. Os outros 20 mil saem do bolso ou do mercado privado. A obrigação de pesquisar e publicar sem apoio financeiro e de infraestrutura vem matando o ensino médico de graduação nas faculdades públicas.

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Nas faculdades privadas o processo de decomposição do ensino vem de longa data. Existem cursos médicos com mensalidades de 4 a 6 mil reais onde os professores que completam cursos de doutorado são imediatamente demitidos para não ganharem salário maior. As faculdades privadas de medicina “enganam” o MEC credenciando corpos docentes com doutores e pesquisadores e assim que a comissão da CAPES vai embora os demitem. Quem não é doutor não obtém financiamento de pesquisa. As maiores faculdades privadas de medicina mantêm um núcleo reduzido de doutores pesquisadores para mera demonstração caso recebam visitas de inspeção governamental. Seus quadros docentes de pesquisa são “para Inglês ver”.

Falemos agora da corporação Médica, que desde os anos 1990 vem se encaminhando para a direita, defendendo ocasionalmente princípios da Saúde Pública e aderindo na maior parte do tempo às políticas de mercado, aos congressos médicos financiados por vendedores de fármacos e equipamentos, às viagens e subsídios privados em conflitos de interesse.

Durante os últimos vinte anos os Conselhos Federal e Regionais de Medicina e a Associação Médica Brasileira e suas filiadas estaduais resistiram fortemente contra a revalidação de diplomas de médicos formados no estrangeiro. Desencadearam também um movimento pela revalidação dos diplomas nacionais em um “exame de ordem” do tipo realizado pela Ordem dos Advogados do Brasil. Esse exame dos advogados reprova 90% dos candidatos, a maioria deles formados em faculdades privadas que não têm ensino qualificado.

Como a formação de novos médicos tem seguido a mesma política de abrir faculdades novas para contentar caciques políticos regionais acabará sendo necessário o exame de ordem. O governo federal não tem condições operacionais de atestar a qualidade do ensino de graduação em centenas de escolas. A redução de quadros de carreira governamental é a tônica do estado neoliberal e não tem sido revertida em épocas de superávit primário nos gastos públicos. É impossível vigiar, qualificar e comparar a qualidade do ensino e da formação de novos médicos abrindo escolas e novas vagas sem controle. Criar exames-catraca é mais fácil que qualificar instituições. Quem controlará as catracas? Os donos de hospitais? Os médicos representantes de patrões donos de planos de saúde? Os donos de faculdades privadas de medicina? Os ‘Chief Executive Officers’ (CEOs) das companhias que vendem medicamentos e equipamentos? Aqueles que pensam como um velho político baiano aliado da ditadura que dizia que “médicos são como o sal que é branco, barato e tem em qualquer lugar”? Os editores do submundo jornalístico ligado ao crime?

A corporação médica fica do lado da imprensa do “PIG” contra o governo aproveitando-se de momentos em que diz defender o SUS para defender seus interesses corporativos. Fica em cima do muro e tira casquinhas quando pode e quando convém de ambos os lados afirmando defender a Saúde Pública. Resiste de maneira fraca contra a abertura indiscriminada de novas vagas em cursos médicos de graduação sem hospitais escola, sem centros de saúde e sem

laboratórios de ensino. Posiciona-se contrária (!) ao movimento federal de valorizar médicos que vão trabalhar no interior e na periferia das cidades quando voltam para se inscrever em exames de candidatura a cursos de residência médica. Defende o mercado privado reduzido para a corporação médica lançando contra as outras profissões de saúde o projeto discriminatório denominado “Lei do Ato Médico”. Mobiliza-se timidamente quando o governo ameaça congelar salários de médicos de carreira com a MP568 que tramita no congresso.

Entre defender o certo, o torto e o errado a atuação política da corporação médica tem a sua história recente marcada pela defesa do mercado privado contra o SUS e contra as carreiras médicas de estado, pela adesão à política neoliberal de remuneração por procedimentos, pela revolta meio faz-de-conta e tardia contra as seguradoras e os planos de saúde, e pelo ódio aos médicos formados em CUBA.

No Brasil os médicos formados em Cuba são considerados ruins pela corporação médica porque vão para lá estudantes indicados pelos movimentos populares do MST, Via Campesina, partidos políticos de esquerda, e alguns estudantes livres que cruzam o oceano por conta do próprio sonho de liberdade encantados pela ilha que resiste aos EUA. O governo dos EUA tenta desde 1959 recolonizar a Ilha e transformar o país de novo em bordel com o bloqueio econômico indecente. Médicos formados em Cuba são um verdadeiro terror para os defensores da medicina do capital. Os nossos órgãos corporativos preferem os formados na Bolívia ou Paraguai contra qualquer médico formado em Cuba.

A corporação médica vem ignorando a realidade do MERCOSUL que nos obrigará a compartilhar exames e regras de validação profissional com Argentina, Chile, Peru, Equador, e também Colômbia e Venezuela. Há certamente bons médicos formados na Bolívia e no Paraguai se comparados com faculdades de medicina das periferias de nossas metrópoles. Os médicos formados na Argentina, Uruguai e Chile não ficam nada a dever em relação aos outros. Se a Venezuela exportasse médicos e não os tivesse que importar de Cuba também seria um terror. Médicos Chavistas no Brasil nem pensar.

Os exames de validação de diplomas estrangeiros no Brasil não seguem regras comparáveis às dos ‘Board Examinations’ estadunidenses. A Inglaterra e os EUA importam médicos do mundo inteiro e detêm a tecnologia de triagem e formação aperfeiçoada para exames de qualificação para o exercício profissional. A comunidade europeia também tem regras para isso e médicos da Índia, Paquistão, países do Sudeste Asiático, África e da América Latina atendem de modo competente nos sistemas de saúde dos países centrais. Cuba forma e exporta médicos para o mundo inteiro tendo feito disso arma diplomática e política no relacionamento sul-sul com países não alinhados aos EUA.

O Brasil vem desenvolvendo técnicas de validação de competências médicas reconhecidas internacionalmente. Hoje não se avalia um médico apenas por respostas a provas escritas. Avaliar um novo médico em provas com perguntas tipo pegadinha de múltipla escolha é de uma incompetência descomunal. A avaliação atual pode ser e já é bem feita por exames com pacientes atores que simulam doenças em consultas padronizadas nas quais os médicos devem saber conversar e principalmente saber OUVIR, devem saber lavar as mãos antes de examinar e diagnosticar e exigem modalidades de tratamento compatíveis com a organização do SUS e com a cultura dos pacientes. Essas técnicas estão bem desenvolvidas e podem ser utilizadas para os futuros ‘exames-de-ordem’ que são realidade inevitável, inclusive para a consolidação das regras de certificação internacional do MERCOSUL.

O nosso problema não é se vamos fazer exames de certificação. Nosso problema é quem fará esses exames. Na ausência de um órgão governamental centralizador os órgãos da corporação médica atual não estão qualificados de nenhuma maneira para sua autorregulação. Estes órgãos seguem atualmente os padrões neoliberais de mercado. As forças de mercado agem contra o interesse da saúde pública e contra o interesse do povo.

Por isso só é boa a notícia de que serão abertas vagas novas em escolas médicas públicas se vier junto um reforço para as escolas públicas sucateadas. Os professores das Universidades Federais estão em greve justamente pela falta desse apoio. Quanto a maior ou menor número de vagas nas escolas privadas o governo deve também balizar o aumento e não deve financiar nem permitir a ampliação indiscriminada segundo desejos “do mercado”. O conflito entre o interesse dos grandes donos de escolas médicas e a corporação profissional médica é muito sutil e às vezes inexistente. Se não houver governo para mediar o povo sai perdendo nas duas pontas.

Pior ainda é a notícia de que a corporação médica consegue elaborar um exame que reprova a totalidade de médicos formados no exterior. Não existe nenhuma vitória nisso. São duas medidas antípodas polares que não se complementam para responder às necessidades brasileiras de formação de novos profissionais médicos. O Governo Federal tem que responder com qualificação das universidades públicas. A corporação médica tem que agir pensando no Brasil e não na reserva de mercado.

Heleno R. Corrêa Filho é médico sanitarista-epidemiologista.

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Comentários

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Ligia Bahia: A “idosofobia” e os planos de saúde « Viomundo – O que você não vê na mídia

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O_Brasileiro

Gostaria que fizessem um estudo para sabermos se os médicos cubanos, assim como os oriundos de faculdades de países sul-americanos realmente trabalham mais no serviço público brasileiro do que no sistema privado.
FACILITAR a revalidação de diplomas de brasileiros que não foram aprovados em vestibulares no Brasil, sem exigir garantias de que prestarão assistência pública, seria mais um dos estímulos à incompetência, dos quais o país já está cheio.
Por outro lado, revalidar diplomas de médicos acima da média, capazes de contribuir para o desenvolvimento da Medicina do país seria um gesto nobre, mesmo estando os médicos brasileiros entre os mais capazes do mundo em quase todas as áreas.

Renato Moraes

É no mínimo uma inverdade dizer que Conselho Federal de Medicina Brasileiro reprovou 95% dos médicos formados em faculdades latino-americanas que tentam revalidar seus diplomas no Brasil – QUEM REPROVOU FOI O REVALIDA, EXAME FEITO PELO MEC, ORGÃO GOVENAMENTAL. PREZADO HELENO NÃO TORÇA A VERDADE.

Governo admite erro na MP que reajusta salário dos médicos dos serviços federais « Viomundo – O que você não vê na mídia

[…]  Leia também: Heleno Corrêa: Certo, torto e errado […]

Glória

Heleno, sugiro que você leia a pesquisa feita pelo CFM sobre a demografia médica no Brasil, segundo a qual o maior problema do Brasil está na distribuição de médicos no terrítório, que é maior nas capitais e na desigualdade de oferta de médicos pelos setores público e privado, sendo em geral maior no setor privado, exceto no RJ, SP e Vitória. Mesmo no RJ onde há grande número de hospitais públicos, o atendimento oferecido não é adequado pois carecemos de um PSF em várias comunidades, não dspomos de postos de atendimento ambulatorial em número adequado na rede, a população é atendida em emergências que sempre vivem lotadas, além do município de RJ suprir toda a região metropolitana. O sistema é desorganizado. Os governos do RJ investem há anos somente em atendimento de Emergência, mas o setor permanece desestruturado. Além disso,os salários são muito baixos e por isso as vagas não são preenchidas, Basta ver o edital dos concursos (nenhum oferece 14 mil reais). Mesmo no setor privado, a qualidade do atendimento vem caindo devido à demanda crescente e o médico está mais uma vez sendo engolido pelo sistema com remuneração precária pelas consultas e vínculo empregatício também precário. O setor privado contrata firmas médicas para não pagar direitos trabalhistas e se esquivar do ônus em questões judiciais. Quanto às universidades, deveriam haver mais controle sobre o número de vagas oferecidas e a qualidade dos cursos. As universidades federais que apresentam o melhor desempenho no ENADE de um modo geral estão abandonadas. O HUCFF/UFRJ tem sofrido com a falta de financiamento pelo MEC e com a carência de pessoal, pois não há concursos públicos. Enquanto isso o PROUNI promove isenção fiscal nas faculdades particulares. O governo federal não pretende aumentar a aplicação de recursos na saúde, vide a votação da Emenda 29. Os atuais governos federal, estaduais e municipais se encondem atrás da bandeira da falta de médicos para criar soluções demagógicas como a abertura de vagas em universidades e a facilitação da entrada de médicos estrangeiros. O discurso do governo federal é tão contraditório que ao mesmo tempo que faz essas propostas demagógicas, tenta emplacar no congresso uma MP que corta os vencimentos dos médicos federais em 50%. Sou médica há 22 anos e tenho vivido a decadência do HUCFF/UFRJ. Isso é um fato em todos os HUs no país. Os Hospitais Universitários e os hospitais federais que atuam como instituições de ensino são responsáveis pela formação e qualificação de milhares de médicos através dos programas de residência. Se a intenção do governo é promover a migração de médicos para o interior, deve para isso fazer um planejamento decente. Como disse o ministro Mercadante, tem que ter estrutura, laboratório, leitos etc. Já existe um programa de pontos na residência para quem trabalhar em PSF, mas lembremos que esses médicos também precisam ser treinados e qualificados para trabalhar em Medicina de Família. Os jovens médicos já são obrigados a trancar a matrícula da residência para servir às forças armadas. O governo deveria abandonar as falsas bandeiras e sentar à mesa com os médicos brasileiros para estudar soluções, programas de estímulo para a interiorização, etc. Já não basta o governo botar a culpa sempre nos médicos e a população acreditar que isso é verdade?

    Heleno R Corrêa Filho

    Subscrevo seus comentários com ressalvas para a necessidade da gestão. O Ministro da Saúde fala isso e fica parecendo truque político. Gestão pode ser entendida de múltiplas formas. Pode-se decidir privatizar ou publicizar a assistência à saúde. Em qualquer das duas direções existirá gestão. A minha direção é pública pela Saúde Pública e existe um bom movimento nesse sentido adotado pelo Conselho Federal de Medicina no sentido da criação da carreira pública de médico no estado. Essa carreira já existiu e foi extinta pelo ditador João Batista Figueiredo, que pediu para que nós o esquecêssemos.
    No caso particular da proposta de recriar a carreira de estado dos médicos o CFM está mais adiantado que o Governo. Interessante não? É uma no cravo e outra na ferradura, como um pêndulo. Se nós empurrarmos podem decidir a favor do povo. Att. Heleno.

Marcelo de Matos

Li o artigo e gostei. A questão do dinheiro é relativa. Claro que seria ótimo se houvesse mais verba para pesquisa, se o SUS pagasse melhor aos médicos. Esse não parece ser o maior problema da saúde pública. Em uma pesquisa do Ibope sobre os dez países em que os médicos tratam melhor os pacientes o Brasil aparece em 20º lugar. Isso ainda diz pouco sobre nossos hospitais públicos. Nós que não somos da área vemos o caos pela TV. No DF, onde a saúde pública é caótica, o governo oferece salários de até R$ 14.000,00 e os candidatos não preenchem nem 50% das vagas do concurso. As condições dos hospitais são tão caóticas que salário algum atrai os médicos. Vão ter de vencer a resistência contra médicos cubanos e contratá-los. O problema da saúde, para darmos uma tucanada, é de gestão. O dinheiro da CPMF não resolveria, nem o do pré-sal resolverá. Saúde e educação necessitam de gestão. Não é só aumentar salários e verbas para pesquisa. Na educação será necessário restaurar a disciplina; na saúde eu nem sei o que é possível fazer.

    Heleno Rodrigues Corrêa Filho

    Concordo. Foi exatamente essa pesquisa e a divulgação do Censo que eu li. As soluções são complexas e de parte a parte não há espaço para conceder. O governo e os médicos não tem se comportado nessa direção de concertação recíproca. Não há culpados e também não há inocentes. Em resumo tens razão.

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