A jihad como espetáculo
Os assassinatos na redação do Charlie Hebdo têm pouco a ver com um islamismo arcaico ou com um conflito entre Oriente e Ocidente. São a expressão plenamente moderna de relações sociais mediadas por imagens.
por Gabriel Zacarias*, de Paris
Desde o ataque ao semanário Charlie Hebdo na última a quarta-feira, muitos textos têm sido escritos sobre os méritos e deméritos do jornal, sobre a legitimidade ou não de seu humor e sobre os limites ou a inviolabilidade da liberdade de expressão.
Pouco porém foi dito até o momento sobre a natureza terrorista do ataque.
O chavão do “11 de setembro francês” se espalhou com facilidade, dando de barato a analogia para com o ataque ocorrido nos Estados Unidos em 2001.
A incongruência da comparação salta aos olhos, não apenas por conta da forma do ataque ou do número de vítimas.
Em 2001, os atentados foram prioritariamente tratados como a reação de um Oriente arcaico contra um Ocidente moderno, conflito cuja imagem representada na imprensa séria, de barbudos de túnica que tramavam suas ações escondidos nas cavernas das montanhas afegãs, não estava longe de uma caricatura.
No caso francês, porém, é bastante evidente que não se trata de um ataque vindo de fora, e que esse não pode ser explicado sem a compreensão das tensões internas da sociedade francesa. Mas aqueles que apontaram para a necessidade de se levarem em consideração esses fatores acabaram esbarrando em outro lugar comum problemático, segundo o qual haveria na França uma grande comunidade muçulmana de práticas tradicionalistas que resiste à integração na sociedade ocidental.
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Não apenas a ideia de uma “comunidade muçulmana” é quimérica, como sugere Olivier Roy ao destacar a heterogeneidade e falta de coesão da população muçulmana francesa, como o perfil dos novos jihadistas franceses não é o de indivíduos criados em âmbitos religiosos fundamentalistas e cujo radicalismo estaria ligado a uma inserção comunitária tradicional.
A incapacidade de perceber esse fenômeno como integrado à lógica das sociedades do capitalismo avançado é particularmente problemático, não apenas porque sintomas são tomados por causa, mas porque os preconceitos que estruturam o discurso dominante podem ter efeitos práticos nefastos.
O mais evidente é o recrudescimento da islamofobia, já crescente na Europa, por se acreditar que a violência terrorista estaria de alguma forma ligada ao suposto arcaísmo do Islã. Mas não só.
A insistência em não perceber o fenômeno como moderno enquadra os fatos em um discurso pré-concebido e resulta em uma curiosa inversão: do fato de que o perfil dos terroristas seja o de jovens de periferia de uma grande cidade capitalista, com gostos, preocupações e dificuldades nada excepcionais, fato que deveria colocar em xeque a associação entre profissão de fé e terrorismo, nasce contrariamente a ideia de uma estratégia de dissimulação.
Tal ideia é bastante perigosa, pois sustenta, em última instância, que todos podem ser terroristas dissimulados, legitimando o uso de dispositivos de vigilância e controle sobre a integralidade da população. Não por acaso, se se falava de um “11 de setembro francês”, fala-se agora da promulgação de um patriot act francês.
Ao invés de continuar a conceber o terrorismo atual como um conflito entre o moderno e o pré-moderno, talvez seja mais acertado considerá-lo como um fenômeno plenamente integrado na lógica da sociedade do espetáculo, no sentido amplo e sociológico que Guy Debord dava a essa expressão, o espetáculo sendo concebido como uma forma de mediação das relações sociais.
Partindo de um diagnóstico amplamente partilhado por teóricos da modernidade, segundo o qual a modernização seria caracterizada precisamente pela progressiva dissolução das formas tradicionais de comunidade, Debord propõe que o espetáculo tende a recompor artificialmente esses laços, criando pseudocomunidades, coletividades imaginárias às quais os indivíduos podem se sentir pertencentes independentemente de sua prática cotidiana.
O trabalho, embora ainda ocupe a maior parte do tempo de vida dos indivíduos, deixou de ser a base para a constituição das coletividades e também não é mais determinante na constituição das identidades subjetivas.
Passaríamos assim a nos identificar muito mais por nosso consumo e esse passaria a determinar simbolicamente nossa inserção coletiva. Esse diagnóstico permite compreender o declínio das identidades políticas tradicionais , sendo mais fácil encontrar hoje alguém disposto a se bater por seu clube de futebol do que por sua classe. Mas ele ajuda a compreender também a adesão à jihad nos países do capitalismo avançado.
A proliferação de jihadistas em solo europeu pouco tem a ver com uma persistência de moldes religiosos pré-modernos, que viriam de fora com uma imigração recente de populações muçulmanas.
Na França, onde essa imigração não é tão recente (datando sobretudo dos anos 1950-1970), isso fica mais claro. O perfil dos autores dos ataques da última semana não é o de muçulmanos atrelados a uma prática tradicionalista da religião.
Muito pelo contrário, tratava-se de jovens de periferia que bebiam, fumavam e escutavam rap; não frequentavam mesquitas ou organizações religiosas e pouco tinham herdado das práticas e costumes de seus pais. Encontravam, como em todos os países capitalistas, dificuldades para a ascensão social e acabaram atraídos pelo crime.
Histórias que poderiam ser a de tantos jovens de periferia em qualquer país capitalista. A relação com a religião aparece sempre tardiamente na vida dessas pessoas, e serve como uma espécie de justificativa ideológica a posteriori que seria capaz de dar sentido a uma vida que já se encontra fora da norma.
Fenômeno que sequer escapou à policia francesa, segundo relatório citado no Le Monde de 9 de janeiro de 2015: “na falta de referenciais, alguns jovens delinquentes, submetidos a uma conversão repentina ou a um retorno a suas origens, se deixam seduzir por essa filosofia que lhes permite prosseguir suas atividades delituosas sob uma caução moral religiosa”.
Mas, além disso, é necessário destacar que a “conversão repentina” ou o “retorno às origens” são normalmente inspirados por grandes eventos que se passam longe, como a guerra no Iraque ou na Síria.
Não se trata de uma retomada dos laços comunitários perdidos, de um retorno à prática religiosa familiar ou a qualquer costume transmitido pela tradição, mas sim da adesão imaginária motivada por eventos de grande repercussão midiática.
Jovens que se veem pegos entre a dissolução dos laços comunitários tradicionais e uma sociedade moderna ocidental à qual não conseguem se integrar plenamente, por conta do lugar inferior e excludente que nessa lhes foi reservado, são assim atraídos pela reencenação do tradicionalismo difundida pelos meios de comunicação e que possibilita o pertencimento coletivo nos moldes modernos que conhecem bem, isto é, do consumo espetacular.
Para alguns, isso significa buscar a realidade representada no espetáculo.
Chérif, aspirante a rapper
Assim, Chérif Kouachi, um dos presumidos autores do ataque ao Charlie Hebdo, era um rapper amador com um histórico comum de delinquência leve, incluindo furtos e pequeno tráfico de drogas, quando passou a frequentar a mesquita de Adda’wa em 2003, fascinado pelas imagens da intervenção militar no Iraque.
Ele acabaria sendo preso em 2005 antes de realizar seu intento de partir para o Iraque combater contra os norte-americanos, no caso que ficou conhecido como o da “filial de Buttes-Chaumont” (bairro no nordeste de Paris).
Farid Benyettou, tido como o líder desse grupo e apontado atualmente na imprensa como antigo “guia espiritual” de Chérif, veio a público condenar os ataques da semana passada.
Não deixa de ser notável que uma pessoa que há pouco coordenara o recrutamento de soldados para luta no Iraque deslegitime ataques em solo francês, afirmando que a França não é um país que oprima muçulmanos.
De maneira análoga, um número crescente de jovens ocidentais parte hoje para combater pelo Estado Islâmico.
A Bélgica fornece cem vezes mais jihadistas às fileiras do Daech do que o Egito, e segundo a polícia francesa 22% do total de voluntários dessa organização são recém-convertidos.
Em outros casos, porém, essa participação pode continuar prioritariamente espetacular.
Nesse caso, ao invés de tomar parte em combates coletivos ou participar de ataques planejados por células terroristas, encontramos indivíduos que cometem crimes disparatados no intuito de aparecerem como jihadistas.
Esse parece ter sido o caso de Mohamed Merah, autor de um ataque terrorista em 2012 do qual tratarei mais adiante, e ao menos em parte também o de Amedy Coulibaly, que invadiu o mercado kosher em Vincennes na semana passada.
Segundo seu advogado, Coulibaly “era um garoto como centenas de outros que defendi”. Para um amigo, foi “alguém que escorregou progressivamente da pequena à grande criminalidade, e depois para o islamismo”.
Coulibaly preparou o guarda-roupa antes de sair na fita
Condenado em 2002 por furto, passou por um período de reintegração após sair da prisão em 2007, trabalhando em uma fábrica da Coca-Cola. Teria até sido recebido por Nicolas Sarkozy no palácio do Eliseu em 2009, em um evento sobre a inserção de jovens de periferia. Foi preso novamente em 2010 e solto em 2014.
Conta-se que ele se radicalizou na prisão, quando passou a frequentar uma organização liderada por Djamel Beghal, condenado por planejar um atentado a uma embaixada americana. Ali, teria conhecido Chérif Kouachi.
Não há dúvidas, portanto, quanto ao seu pertencimento a um grupo radical nem quanto à sua proximidade com Chérif Kouachi. Não obstante, há que se questionar a versão, elaborada pelo próprio Coulibaly, de que seu ataque estaria “sincronizado” com o ataque dos irmãos Kouachi ao Charlie Hebdo.
É difícil de conceber que ações tão distintas possam ter sido fruto de um planejamento conjunto. Não seria pertinente ao menos supor que Coulibaly agiu sob influência do grande impacto provocado pelo ataque ao jornal e quis, assim, partilhar do sucesso simbólico produzido pela ação de seu antigo companheiro de prisão? Sobretudo quando esse se mostrou tão preocupado com sua imagem?
No vídeo que gravou reivindicando o atentado, troca diversas vezes de figurino, para adequar-se às diferentes figuras estereotipadas do jihadista: ora como guerreiro, em camuflagem militar e ostentando uma kalishnikov, ora como religioso, de túnica branca e turbante.
Durante a invasão ao mercado kosher telefonou a um canal de televisão para se identificar como autor do ataque, e sabe-se agora também que estava equipado de uma câmera GoPro e um computador (a existência de uma filmagem ainda não foi confirmada).
Tanto a forma disparatada dos atos de Coulibaly, prenhe de um antissemitismo que pouco tem a ver com um conflito do “Oriente” contra o “Ocidente”, quanto a preocupação com a produção de imagens, recordam os gestos de Mohamed Merah, responsável pelo assassinato de sete pessoas em março de 2012.
Suas primeiras vítimas foram militares franceses de origem imigrante, dois magrebinos e um antilhano, em Toulouse e Montauban, no sudoeste da França. Inicialmente, aventava-se a hipótese de crimes de racismo. Mas alguns dias depois uma escola judia foi atacada, resultando na morte de um professor e três crianças.
Identificado como o autor desses crimes, Merah foi qualificado como terrorista, caçado e finalmente morto pela polícia francesa. Nascido na França de pais argelinos, tinha um histórico banal de fracasso escolar e de pequena delinquência.
Merah filmou tudo com a sua GoPro
Quando cometeu os assassinatos, filmou seus crimes com uma câmera GoPro, revendicando-se um jihadista da Al-Qaeda.
Suas viagens, com visto de turista, para países do Magreb e do Oriente Médio, foram usadas como suposto indício de sua integração a uma rede terrorista, mas até hoje nenhuma evidência concreta de sua participação em grupos terroristas foi apresentada.
Independentemente disso, e do fato de que seus ataques foram ações individuais sem nenhum padrão ou organização prévia, a versão de um “ataque terrorista islâmico” foi mantida.
A apresentação grandiloquente desses atos, caracterizando-os sempre como frutos de redes terroristas bem organizadas e embasadas em propósitos ideológicos coesos, não apenas não condiz com os fatos conhecidos, como pode ser mesmo inconsequente.
Nas palavras de Zola, relembradas recentemente pelo editor de um periódico, “de tanto mostrar um espantalho ao povo, acaba-se por criar um monstro real”.
Nos casos recentes, não vemos tanto um espantalho, mas, contraditoriamente, uma versão idealizada, quiçá heroica, de “pioneiros do jihadismo francês” que “atemorizaram a França e o mundo por sua violência sem limites e por sua determinação”.
É essa imagem estereotipada mas grandiloquente do jihadista que parece atrair aqueles que já não conservavam mais relação com a tradição religiosa. Não é à toa que o alvo primeiro dos ataques foi justamente um jornal que ridicularizava essa imagem.
Assim, é necessário reconhecer que o processo de constituição desses grupos nada tem de arcaico, sendo já inteiramente espetacular. E não somente porque esses se servem da internet como meio de aliciamento e doutrinação. Mas sim porque a identificação com a versão espetacular da jihad antecede a inserção em coletividades religiosas concretas.
Essa inserção pode nem acontecer, como no caso de Merah, para quem a identificação simbólica permaneceu no âmbito de um delírio individual. Mas mesmo quando ela se torna experiência coletiva, ela não deixa de ser prioritariamente espetacular.
Essa é a lógica mesma da socialização na sociedade do espetáculo, que vale igualmente para fã-clubes ou torcidas organizadas de times de futebol.
Em todos esses casos, os elos sociais são estabelecidos pela mediação de um conjunto simbólico que existe primeiramente como representação e que não parte de uma experiência concreta de sociabilidade. Mecanismo que ficou, aliás, evidente também no polo oposto, quando milhões de pessoas desceram às ruas sob o slogan de “eu sou Charlie”.
Esse slogan identitário genérico expressa menos uma identificação com os conteúdos simbólicos que eram veiculados pelo hebdomadário do que um repúdio à violência do massacre transformado em evento midiático.
*Gabriel Zacarias é doutor em Estudos Culturais pelas universidades de Perpignan (França) e Bergamo (Itália), no programa Erasmus Mundus da União Europeia. Vive em Paris.
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Comentários
abolicionista
E no Brasil foram os próprios militares que tentaram um ato terrorista no Riocentro contra a própria população civil. Os terroristas do Estado Islâmico são mais eficazes que nossos militares. A bomba explodiu no colo dos milicos.
http://pt.wikipedia.org/wiki/Atentado_do_Riocentro
Maria Dilma
Leitora notou:
1 na primeira hora os artigos eram todos de direita,e os posts dos leitores raivosos de direita eram maioria.
Agora apos artigos de analise politica eles sumiram.Estamos nos educando.
2 O Brasil e novinho ainda.Ha uma lei nova que cria terroristas onde nao ha e abafa protestos,com fins politicos e economicos.A sociedade se cala.A papagaiada e a opressao jornalistica nao ajudam.
Devemos tirar muitas licoes disso tudo.
Leo V
Esse artigo de Leigh Phillips é muito bom. Desfaz ‘mitos’ criados pela esquerda fora da França sobre cartuns do Charlie e dá passos num diagnóstico da esquerda a partir de casos como esse.
“O caso como um todo é precisamente o fundo do poço para a esquerda identitária.”
“Presunção automática de racismo sem comprovação não é antirracismo; é covardia e vaidade, visto que sugere que o indivíduo está mais interessado em garantir que ele ou ela não pareça racista do que em realmente lutar contra o racismo.”
“Como podemos confiar nas análises críticas desses esquerdistas sobre outros eventos em terras estrangeiras como Ucrânia, Síria ou Mali se nos damos conta de que eles sequer fazem um esforço prévio como investigadores quando se trata do contexto francês, muitíssimo mais acessível?”
“Perdida na tradução: Charlie Hebdo, liberdade de expressão e a esquerda monolíngue”
Por Leigh Phillips
http://passapalavra.info/2015/01/101964
Leo V
Muito boa análise.
Essa e o texto do Zizek montam o quebra-cabeça.
lulipe
Se tivesse acontecido esse fato no Brasil os policiais estariam sendo crucificados por terem matado os coitadinhos dos “excluídos sociais”…
abolicionista
Se fosse no Brasil, já haveria uns duzentos suspeitos mortos na favela e nenhuma manchete no jornal.
Gerson Carneiro
França envia porta-aviões Charles de Gaulle para atacar o “Estado Islâmico”.
Em breve assistiremos mais um desfile de bracinhos dados nas ruas de Paris.
Lukas
Tadinho do Estado Islamico…
Julio Silveira
Esse é um dos pontos de contradição que os tornam exatamente o que dizem combater.
Maria Carvalho
Sempre haverá um histórico do comportamento humano para certas atitudes…
Joca de Ipanema
Muito bem observado Maria. Isso pode explicar o porquê de eles terem sido presas fáceis do radicalismo, não importa se islâmico ou outro. Mas afirma o fato de que eram sim fanáticos, a ponto de saberem que seus atos culminariam fatalmente com suas mortes. E também não justifica o ato, que queiram, ou não, há que ser debitado ao radicalismo religioso, nesse caso específico o islâmico. Por falar nisso, já deram mais 50 chibatadas no Badawi? E olha que ele não em nenhuma cité “cité de banlieu” parisiense.
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