Eliana Alves Cruz: Crime perfeito; o caso de Igor, Thiago e Carlos Alberto

Tempo de leitura: 4 min
Thiago Marques Gonçalves e Igor Melo de Carvalho

O crime perfeito

O caso de Igor, Thiago e Carlos Alberto

Por Eliana Alves Cruz, no ICL Notícias

O antropólogo Kabengele Munanga tem uma célebre frase que diz: “O racismo no Brasil é um crime perfeito”. O professor brasileiro-congolês se referia a como este cancro da nossa sociedade se disfarça cinicamente conforme as circunstâncias, como é insidioso e, obviamente, assassino.

No entanto, o racismo não seria tão duradouro se não aniquilasse existências usando a mais eficaz das armas: a própria vítima.

O caso do estudante de Publicidade e garçom Igor Melo de Carvalho, do motorista de aplicativo Thiago Marques Gonçalves e do algoz dos dois jovens, Carlos Alberto de Jesus, três homens negros, chocou a opinião pública, mas é um clássico autoexplicativo do que o professor Munanga brilhantemente detectou.

O racismo entranhado no episódio contém o elemento que causa o maior estrago, que é aquele que rouba das pessoas a percepção sobre si mesmas, arranca qualquer possibilidade de amor-próprio e, o pior, enxerga no seu semelhante um espelho a ser quebrado.

Um suposto celular roubado fez Igor perder metade de um órgão vital, ter vários outros comprometidos e ser humilhado com a presença policial nas dependências hospitalares “custodiando-o”; Já Thiago foi tratado agressivamente desde a abordagem, preso e também tomado como bandido; e Carlos Alberto, bem… Carlos Alberto é policial reformado e neste ponto, como tudo o que diz respeito às relações étnico raciais neste país e no mundo, é preciso voltar no tempo.

Carlos Alberto de Jesus. Foto: Reprodução/TV

A alcunha mais perversa que pode ser dada a um homem negro é a de “capitão do mato”, estes profissionais que “caçavam” feito animais seus semelhantes. A construção de um homem capaz de algo assim é longa, naturalmente perversa e fruto de uma vida desumanizadora.

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Com processos de apagamento, demonização, manipulação psicológica, tortura e cooptação ele é levado a enxergar o mal em si, a entender como menor os seus e as suas, a ser o braço armado de quem não quer fazer “serviço sujo”.

O negro drama do qual fala os Racionais passa pela polícia que mais mata e também pela que mais morre, feita em grande parte (há exceções) de homens treinados na lógica escravista racista da formação destes “capitães”, logo, é preto matando preto numa guerra sem fim.

É preto enxergando em outro preto o mal e o óbvio delinquente por séculos. Carlos Alberto é um substrato de tudo isso. Está introjetado nele e em muita gente como sua mulher, a cabeleireira Josilene da Silva Souza, a dona do suposto celular roubado.

Quando encontrou Thiago na delegacia, ela só teve palavras para xingamentos e para dizer que se tivesse uma arma, atiraria nele ali mesmo e que se orgulhava de ser “mulher de policial”.

Não é preciso ser um grande especialista para ver que as forças policiais no Brasil bebem e nadam de braçada na fonte dos antigos preconceitos, rancores, métodos e práticas. São vidas que pouco importam.

Familiares dos jovens injustiçados fizeram um ato público e silencioso na frente do hospital Getúlio Vargas. Além da dor do que estão atravessando, tiveram que encarar três viaturas estacionadas ostensivamente próximas, um quarto carro nas proximidades e um quinto que circulava pela rua sem parar.

Intimidação, demonstração de poder. Todos ali têm que manter o status que faz as muitas Josilenes se orgulharem.

Aparelhos de celular, objetos que guardam cada vez mais toda a nossa vida prática, segredos, momentos felizes e possibilidades de conexões com o mundo, viraram o grande ouro a ser minerado nas ruas.

Fáceis de serem subtraídos, levam a quem perdeu o seu ao desespero, logo, para uma parcela gigante de pessoas um aparelho vale bem mais que um ser humano e se para alguns matar por ele é tolerável, o valor não está na vida, mas no bem.

O recado é “protejam a propriedade”. Proteger a propriedade privada é tarefa da polícia desde o tempo em que o corpo negro era propriedade de alguém.

Carlos Alberto é ex-policial, o preto é alvo padrão há cinco séculos, o celular vale mais que o alvo, Carlos Alberto não teve dúvidas: apertou com vontade e calculadamente o gatilho.

O tiro não matou Igor e a voz de prisão não manteve os dois jovens presos porque a sociedade civil se mexeu por estes trabalhadores que, como se diz na gíria, são “correria”. Trabalham muito, em muitas jornadas, em desumana quantidade de horas trabalhadas.

Sendo “correria”, bandido ou não a pergunta que fica é: Onde está escrita a licença para matar na Código Penal brasileiro?

Não está lá, mas está escrito nos corações e mentes, está sim e, mesmo que sejam presos os responsáveis por mais esta tragédia…

O crime perfeito está mais uma vez consumado.

*Eliana Alves Cruz é carioca, escritora, roteirista e jornalista. Foi a ganhadora do Prêmio Jabuti 2022 na categoria Contos, pelo livro “A vestida”. É autora dos também premiados romances Água de barrela, O crime do cais do Valongo; Nada digo de ti, que em ti não veja; e Solitária. Tem ainda dois livros infantis e está em cerca de 20 antologias. Foi colunista do The Intercept Brasil, UOL e atuou como chefe de imprensa da Confederação Brasileira de Natação.

*Este texto não representa obrigatoriamente a opinião do Viomundo.

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