Adriano Diogo: ‘Camilo devolveu a voz a Alexandre Vannucchi, que a ditadura tentou calar’

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O jornalista Camilo Vannuchi, autor de ''Eu só disse o meu nome'', e Adriano Diogo, que foi colega de Alexandre Vannucchi, na Geologia da USP. Adriano foi vereador e deputado estadual pelo PT-SP, tendo presidido a Comissão da Verdade do Estado de São Paulo “Rubens Paiva”. Foto: Arquivo pessoal

Eu só disse meu nome

Comentário sobre o livro recém-lançado de Camilo Vannuchi

Por Adriano Diogo*, em A Terra é Redonda

1.

Eu só disse meu nome, de Camilo Vannuchi, que trata de um dos crimes mais impactantes da ditadura militar. Alexandre Vannucchi Leme, jovem estudante de geologia da USP, foi sequestrado e morto sob tortura pelo DOI-Codi de São Paulo, chefiado pelo então major Brilhante Ustra, em 17 de março de 1973. Ele tinha 22 anos.

As autoridades divulgaram mais de uma versão oficial (e mentirosa) para sua morte, atribuindo-a falsamente a um “suicídio” e, depois a um fictício “atropelamento” em uma tentativa de fuga.

Seus colegas na faculdade pediram a Dom Paulo Evaristo Arns que rezasse uma missa na universidade, mas o Cardeal decidiu fazer a missa na Catedral da Sé. De três a cinco mil pessoas foram ao culto, numa época em que grandes concentrações de pessoas ainda eram proibidas pelo regime militar.

Camilo Vannuchi escreveu a obra como jornalista e como parente: Alexandre era primo do pai do autor, Paulo de Tarso Vannuchi.

Antes deste livro, outros familiares já haviam publicado sobre a morte de Alexandre: seus pais, Egle Vannucchi Leme e José de Oliveira Leme deram seus depoimentos no livro Meu filho Alexandre Vannucchi;[i] seu tio, Aldo Vannucchi, escreveu Alexandre Vannucchi Leme: jovem, estudante, morto pela ditadura.[ii]

Quanto a mim, escrevo esta resenha por ter sido presidente da Comissão da Verdade do Estado de São Paulo “Rubens Paiva”, que incluiu este importante caso em seu relatório.[iii]

Escrevo também por ter sido colega de Alexandre, nosso “Minhoca”, na faculdade de geologia da USP, por também ter integrado a ALN (Ação Libertadora Nacional) e ter sido sequestrado e torturado pela repressão.

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Ao contrário de Alexandre, sobrevivi. Nas últimas décadas, denunciei várias vezes a tortura e assassinato desse ex-colega. Por essa razão, fiquei muito feliz ao ler o livro de Camilo Vannuchi, que reconhece a importância que o caso teve para a luta contra a ditadura militar e o rememora com as suas importantes repercussões.

2.

O livro começa com uma experiência do autor sobre seus tempos de estudantes: o pai de um colega, durante uma viagem, quis saber a relação dele com o “Vannucchi da USP”.

Desse prólogo, o autor passa diretamente para a fundação da ALN (“a mais importante organização da resistência armada”, diz Camilo Vannuchi na página 17) por Carlos Marighella, que havia saído do PCB.

Marighella defendia, contra o chamado Partidão, a resistência armada contra a ditadura. Alexandre, porém, deve-se lembrar, nunca pegou em armas.

Nesse mesmo primeiro capítulo, conta-se como foi seu suplício pelo DOI-Codi de São Paulo.

São relatadas suas últimas palavras, que dão o título ao livro: “Meu nome é Alexandre Vannucchi Leme – ele conseguiu dizer, em voz alta. – Sou estudante de Geologia. Me acusam de ser da ALN. Eu só disse meu nome” (p. 22).

A partir desse momento dramático, Camilo Vannuchi segue em retrospectiva: o capítulo seguinte trata da história dos avós, dos tios e dos pais do autor, até chegar ao ingresso de Alexandre na faculdade, onde era um ótimo aluno, o “melhor calouro” (p. 34).

O capítulo 3 fala da ALN na USP; sou citado com meu apelido da época, Mug. Os capítulos seguintes tratam do último Natal de Alexandre em Sorocaba e de sua morte.

Já relatei diversas vezes esta fala do torturador Brilhante Ustra me ameaçando e confessando o assassinato de Vannucchi, que Camilo Vannuchi recolheu no livro:

Ustra prepara os fios desencapados e a cadeira do dragão.

– Você conhece o Minhoca? – o torturador quer saber. – Você não é amigo do Minhoca? Conta a verdade, gordo. Eu acabo de mandar o Minhoca para a Vanguarda Popular Celestial. E você vai ser o próximo, terrorista de merda. (p. 54)

Deve-se lembrar que Brilhante Ustra foi reconhecido oficialmente pela Justiça brasileira como torturador em uma ação cível movida pela família Almeida Teles, cuja história foi contada recentemente em livro de Pádua Fernandes.[iv] Alexandre Vannucchi Leme foi uma de suas vítimas.

Os capítulos seguintes contam o que aconteceu imediatamente após a morte: o laudo falso assinado pelos médicos legistas Isaac Abramovitch e Orlando Brandão, as notícias falsas publicadas pela imprensa, a busca da família pelo seu corpo e a histórica missa na Catedral da Sé.

Sérgio Ricardo cantou nela O Calabouço, canção composta para outro estudante morto pela repressão, Edson Luís de Lima Souto.

Um caderno iconográfico de 32 páginas, com fotos de família, reproduções do noticiário da imprensa e de documentos separa essa primeira parte dos capítulos seguintes.

Camilo conta a história da canção Cálice, de Chico Buarque e Gilberto Gil, com a declaração de Chico de que lembrava da morte de Vannucchi, mas não podia “garantir que a gente tenha pensado no caso dele em especial, porque as mortes eram uma constante” (p. 134).[v]

Em seguida, o livro explica a retomada do DCE da USP em 1976 com o nome de Alexandre, conta o belo momento do bilhete de solidariedade que Gabriel García Márquez escreveu para a inauguração da Praça Alexandre Vannucchi Leme em Sorocaba em 1978, bem como os vários atentados contra a Praça e os furtos nos túmulos da família Vannucchi.

Camilo Vannuchi trata também da devolução do corpo à família em 1983: ele havia sido enterrado como indigente, embora as autoridades conhecessem sua identidade, o que aconteceu com várias vítimas da repressão, cujos corpos eram negados aos familiares.

No final, o autor conta um caso curioso: o mapa astral que lhe fizeram depois que ele terminou uma grande reportagem com Clara Charf, José Dirceu e Luiz Inácio Lula da Silva sobre a luta contra a ditadura.

A astróloga indicou que ele “poderia ser uma reencarnação do mártir Alexandre” (p. 157). Ele não acreditou, porém, anos depois, quis encontrar o mapa e a fita k7 com a explicação enquanto escrevia este livro, mas não os achou.

O livro termina com um capítulo de reavaliação do passado presente, com o autor revisitando seus tempos de graduação e suas aulas com professores que resistiram à ditadura, como Bernardo Kucinski, as homenagens a Alexandre na USP, a nomeação de Paulo Vannuchi, pai do autor e primo de Alexandre, para a Secretaria Especial de Direitos Humanos no primeiro governo Lula, e a concessão da anistia política póstuma a Alexandre no governo de Dilma Rousseff.

Também no governo da presidenta Dilma Rousseff ocorreu a retificação do assento de óbito, para incluir como causa mortis “lesões provocadas por tortura” no DOI-Codi (p. 170).

O epílogo constitui-se numa reflexão pessoal do autor sobre o impacto da morte de Alexandre na família e sua experiência de ter estudado na USP sendo parente do estudante, um dos mortos políticos da Universidade, que deu título para o DCE.

Em anexo, foi incluído um texto escrito em primeira pessoa, “Meu nome é Alexandre Vannucchi Leme”, que o autor fez para ser lido por Celso Frateschi no ato de 50 anos da morte de Alexandre, na Faculdade de Direito da USP, em 17 de março de 2023.

Dessa forma, Camilo devolveu a voz a esse parente seu que a ditadura tentou calar, mas cuja história segue viva até os dias de hoje.

*Adriano Diogo é geólogo, e ex-vereador da cidade de São Paulo e ex-deputado estadual em São Paulo pelo Partido dos Trabalhadores. Presidiu a Comissão da Verdade do Estado de São Paulo “Rubens Paiva”.

Referência

Camilo Vannuchi. Eu só disse meu nome: Alexandre Vannucchi Leme. São Paulo, Editora Discurso Direto\ Instituto Vladimir Herzog, 2024, 192 págs.

Notas

[i] Teodomiro Braga e Paulo Barbosa. Meu filho Paulo Vannucchi – Depoimentos de Egle e José Vannucchi. São Paulo, Edição S. A, 1978.

[ii] Aldo Vannucchi. Alexandre Vannuchi Leme: jovem, estudante, morto pela ditadura. São Paulo: Contexto, 2014.

[iii] O perfil de Alexandre Vannucchi Leme na Comissão da Verdade do Estado de São Paulo “Rubens Paiva” pode ser consultado por este link: https://web.archive.org/web/20190212111109/https://comissaodaverdade.al.sp.gov.br/mortos-desaparecidos/alexandre-vannucchi-leme

[iv] Brilhante Ustra foi derrotado em primeira instância em 2008, em segunda em 2012 e a decisão foi ratificada pelo Superior Tribunal de Justiça em 2014: Pádua Fernandes. Ilícito absoluto: a família Almeida Teles, o coronel C. A. Brilhante Ustra e a tortura. São Paulo: Patuá, 2023.

[v] A propósito, Caio Túlio Costa, em “Cale-se”, contou a história dessa canção, do show que Gilberto Gil fez para os estudantes na USP em 1973 e o impacto da morte de Alexandre sobre a comunidade discente: Caio Túlio Costa, Cale-se. São Paulo: A Girafa, 2006.

Do professor Cunca Bocayuva, do Núcleo de Estudos de Políticas Públicas em Direitos Humanos da UFRJ

Nesta terça-feira, 7, às 19h, lançamento do livro Eu só disse meu nome, de Camilo Vannuchi, na Livraria da Travessa de Ipanema (Rua Visconde de Pirajá, 572). Haverá um breve bate-papo com o autor, mediado pela jornalista Hildegard Angel.

Eu só disse meu nome conta a história de Alexandre Vannucchi Leme, estudante de Geologia que atuava no movimento estudantil na USP e tinha 22 anos quando foi torturado até a morte no DOI-Codi de SP, sob o comando do major Carlos Alberto Brilhante Ustra, em 1973.

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