Dalva Garcia, sobre o novo ensino médio: Não se faz política pública, conservando destroços em terra arrasada
Tempo de leitura: 8 minPor Dalva Garcia
O Novo e a busca de milagres
Por Dalva Garcia*
Tenho a estranha mania de ler.
Entre letras escritas com certa distância temporal consigo traçar algumas relações oportunamente não muito precisas.
Digo, oportunamente, porque a pretensa precisão de alguns argumentos estampados nos debates sobre educação não só me cansam, mas chegam a me assustar.
Não me refiro, obviamente, ao que se costuma denominar “artigo de opinião” sobre juros, violência, desenvolvimento e até religiosidade.
Mas quando o tema é educação os debates florescem mais que do que as disputas por algum conhecimento de estratégia futebolística em ano de Copa de Mundo.
Na quinta-feira, 6 de abril, o Estadão publicou o editorial Bagunça na educação.
Confesso que, não só me surpreendeu, como me irritou.
De cara, o Estadão diz:
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“Ao suspender processo de implantação do novo ensino médio, o governo petista cede ao esperneio dos inconformados e amplia a confusão num setor crucial para o desenvolvimento do país”.
Para o Estadão, a suspensão não passa de um artifício para adiar a necessidade de novo ensino médio que, “ninguém pode dizer que fracassou, pois nem sequer está plenamente em vigor”.
Atualmente há pesquisas em andamento que indicam diminuição de matrícula do NEM — sigla pelo qual é conhecido o novo ensino médio –, e aumento de evasão escolar.
A própria manifestação de estudantes de todo país em 15 de março aponta um contínuo incômodo mediante a bagunça da reforma do ensino médio.
O editorial reduz esses indícios e manifestações como vozes de ” ninguém”.
O Estadão é taxativo: “ninguém sequer pode dizer o que não está plenamente em vigor”.
Pois seria importante o jornal conversar com jovens que terminam o NEM em 2023. Entraram e sairão dessa etapa do ensino despreparados e desesperançosos.
A revogação do NEM é vista como absurdo com o argumento que “a educação estava ainda submetida à realidade do século passado, num modelo condenado por quase todos os especialistas como atrasado e insatisfatório”.
Mas não foi no século XX que vimos o avanço vertiginoso da tecnologia e da comunicação alargar fronteiras e criar tantas outras?!
Por que usar século passado em vez de século XX?
Seria para passar ao leitor a falsa impressão de que é algo mais velho, antigo, do que é de fato?
Seria bem mais prudente perguntar o que o século XX nos ensina para pensar o que queremos para a segunda, terceira ou quarta década deste “novo século”.
Até porque há avanços e retrocessos como em qualquer curso da história da humanidade.
A volta da poliomielite e de doenças já erradicadas no século XX é apenas é um exemplo.
Mas podemos apontar outros, como o renascer dos fundamentalismos de ordem política ou religiosa e o avanço de tendências nazifascistas que tomam de assalto o desejo de jovenzinhos dispostos a matar ou morrer para participar de um jogo de conquistas típicas do afã do homem que faz, atento ao novo.
Para o Estadão, o século XX deve ser apagado, cancelado seria o termo mais apropriado para o novo jargão.
Com ele, a memória dos mortos, da poesia, da arte, da literatura, da música, das ciências sociais e, mais especialmente, da filosofia.
Aí, apresentaremos ‘’itinerários’’ que jogam no lixo a tradição junto com entulhos de construtoras e embalagens de fones de ouvido sem fio.
Mas, por hora, quero me ater à afirmação de um “modelo de educação totalmente atrasado e insatisfatório”, que, segundo o Estadão, é condenado por especialistas.
Limitar os processos educacionais a modelos ultrapassados ou novos me parece reducionismo simplista.
Dois pensadores podem servir de exemplo aqui, e por incrível que pareça, ambos do século passado.
1. John Dewey, filósofo e educador norte-americano, autor do artigo “Interesse e esforço”. Nele, discute a importância do interesse e da experiência do aluno como ponto de partida para a imersão do aluno no universo do conhecimento seja ele científico, histórico ou artístico.
Escreve Dewey: “os interesses não são nada senão atitudes a respeito de possíveis experiências; não são conquistas; seu valor reside na força que proporcionam, não no sucesso que representam”.
2.Hannah Arendt, filósofa alemã, autora de coletânea de artigos publicada pela Editora Perspectiva com título “Entre o passado e o Futuro.
“A Crise da Educação” é um dos artigos desta obra.
Hannah Arendt escreve:
“O papel desempenhado pela educação em todas as utopias políticas mostra o quanto parece natural iniciar um novo mundo com aqueles que são por nascimento e por natureza novos.
No que toca à política, isso implica novamente em grave equívoco: ao invés de juntar-se a seus iguais, assumindo o risco de persuasão e correndo o risco do fracasso, há a intervenção ditatorial, baseada na superioridade do adulto e a tentativa de produzir o novo como se o novo já existisse… O que há é um simulacro de educação, enquanto o objetivo real é a coerção sem o uso da força”.
É impossível discorrer sobre esses dois textos num artigo como o nosso sem reduzir a importância e complexidade de ambos.
Fica o convite para a leitura atenta deles.
O fundamental aqui é ressaltar que os dois autores — de diferentes tradições e formação filosóficas — já alertavam sobre o perigo de reducionismos quando o tema é a crise da educação, como se pode conferir no trecho abaixo de Hannah Arendt:
“Por que Joãozinho não sabe ler?
Por que os níveis escolares da escola americana média se acham atrasados em relações aos padrões médios na totalidade dos países da Europa?
Não é por ser este um país jovem que não alcançou ainda os padrões do velho mundo, mas, ao contrário, é pelo o fato de ser o país mais avançado e moderno do mundo. E isso verdadeiro em duplo sentido: em parte os problemas educacionais de uma sociedade de massas são tão agudos, e em nenhum outro lugar as teorias mais modernas no campo da pedagogia foram aceitas tão servil e indiscriminadamente.
Desse modo, a crise na educação americana de um lado anuncia a bancarrota da educação progressiva e, de outro, apresenta um problema imensamente difícil por ter surgido sob condições de uma sociedade de massas e em respostas de suas exigências”.
Enfim, por que nossos alunos não sabem ler?
Suposta modernização de inovações e métodos daria conta de operar esse milagre?!?!
Segundo o editorial do Estadão, pandemia e a negligência do governo anterior no campo da educação impedem as pessoas de vislumbrar o mérito do novo ensino médio: “Terra arrasada não é uma boa maneira de fazer política pública”.
Aqui, sou obrigada a concordar.
De fato, terra arrasada não é uma boa maneira de fazer política pública.
Só que, aparentemente, o Estadão se ‘’esqueceu’’ que o decreto que instituiu o novo ensino médio é de dezembro de 2017, governo Michel Temer.
Ou seja, 18 meses após o golpe travestido de impeachment que derrubou a presidenta Dilma Rousseff, que, diga-se de passagem, o Estadão apoiou.
O Brasil atravessava um quadro de instabilidade econômica e política…
Terra arrasada para um decreto que visava fazer política pública educacional.
Terra arrasada que continuou na implantação do NEM em 2021, governo Jair Bolsonaro, cuja eleição em 2018 o Estadão apoiou.
Em seu editorial, o jornalão paulista completa: “ Se há lei que se cumpra, sem o prejuízo de ajustes e aprimoramentos posteriores”.
Bem, aí, só mesmo um milagre. Ou um decreto.
Desses que encontrei em trecho da crônica Milagres (na íntegra, ao final) do livro Linhas tortas, de Graciliano Ramos:
“De qualquer modo desejamos um milagre de oito milhões de quilômetros para o Brasil e outro maior para o resto do mundo. Democrático ou aristocrático? Quem sabe lá? Uns querem um governo popular, outros apelam para os figurões.
Milagre de natureza parlamentar ou de ordem técnica? …
E a instrução, é bom não esquecer da instrução. Como estamos longe do tempo, em que pela graça divina, sem professores, dicionários e outras maçadas, um sujeito aprendia de um pé para a mão as línguas do mundo inteiro! A verdade é que hoje seria muito bem recebido um milagre ou um decreto, que nos armasse depressa, não apenas com as línguas, mas com todos os conhecimentos…”
Mas, como diz o próprio Graciliano Ramos, o milagre gorou.
Tomara que a suspensão também gore.
Não podemos, claro, esperar sentados isso acontecer. Precisamos lutar pela revogação do NEM antes que seja tarde.
Não se faz política pública, conservando destroços em terra arrasada.
*Dalva Garcia, professora de Filosofia da rede pública de São Paulo.
Graciliano Ramos, crônica Milagres, em Linhas tortas
“Cartomantes, quiromantes, profetas, espíritas, adivinhos de toda a casta, a Santa de Coqueiros e o padre Cícero. Quando um desses está em evidência, os jornais aumentam a tiragem. Lemos as notícias, bocejamos, sentimos desgosto. Realmente o povo é supersticioso.
Pensando assim, afastamos por um momento as nossas superstições, censuramos com azedume as superstições alheias. Depois voltamos às nossas.
Adoramos vários deuses, uns imateriais, outros de ferro, movidos por água ou alimentados a carvão e a gasolina. É necessário que alguém nos salve, a Divina Providência ou Henry Ford.
Faltam-nos muitas coisas, e o pior é não nos esforçarmos por obtê-las. Esperamos que elas nos venham de fora do céu, da Rússia, dos Estados Unidos ou da Itália.
Milagres. Quem reduzirá o aluguel das casas e elevará o câmbio? O governo, provavelmente. Não podemos viver sem tabus: eleições, por exemplo, o voto secreto.
O essencial é que o país tenha um homem, ou antes um super-homem, um herói. Enquanto ele não chega, contentamo-nos imaginando alguns. Os que estão perto diminuem e os que estão longe aumentam, o que parece um disparate, mas não é.
Há por aí numerosos talentos. Deviam ser aproveitados. Acreditamos neles, oh! Temos grande confiança neles. Um dia lemos o que eles escrevem – e o entusiasmo encolhe-se.
Como é indispensável darmos empregos às nossas aptidões de basbaques, procuramos outros. Onde andam eles? Meu Deus! Por que foi que o Rui Barbosa morreu? Um cavalheiro que produziu tantos discursos que a gente admirava sem perigo! Se ele ainda vivesse, a constituição estaria pronta. A constituição é uma réplica.
A constituição, sim senhor, é o que vai fazer milagres. Como será a constituição? Comprida ou curta? Semelhante à primeira ou diferente dela? Escrita em português ou em brasileiro? Ninguém sabe, e inspira por isso um imenso respeito.
Mas o milagre que nos convém será gramatical ou geográfico? Projetaram estraçalhar o mapa e cosê-lo de novo. Improvisaram uma divisão encrencada, com estados, províncias e territórios. Como ficaria essa manta de retalhos? Os pedaços seriam irregulares, como em toda parte ou quadrados, como na América do Norte, onde a própria terra é quadrada.
De qualquer modo desejamos um milagre de oito milhões de quilômetros para o Brasil e outro muito maior para o resto do mundo. Democrático ou aristocrático? Quem sabe lá? Uns querem um governo popular, outros apelam para os figurões.
Milagre de natureza parlamentar ou de ordem técnica?
Necessitamos estradas, portos, um bando de coisas que todos pedem e ninguém se aventura a executar.
E a instrução, é bom não esquecer a instrução. Como estamos longe do tempo em que, pela graça divina, sem professores, dicionários e outras maçadas, um sujeito aprendia do pé para a mão as línguas do mundo inteiro! A verdade é que hoje seria muito bem recebido um milagre, ou um decreto, que nos armasse depressa, não apenas com as línguas, mas com todos os conhecimentos que distinguem os homens da Academia de Letras, do Liceu Alagoano, da Sociedade de Medicina etc.
Também seria importante a supressão repentina dos bandidos do Nordeste e o desaparecimento das secas.
Milagre estupendo era o que Pernambuco nos queria impingir há dias, essa história de agarrar a eletricidade que anda pelas nuvens. Um milagre terrível! Infelizmente a eletricidade portou-se mal, fez como esses defuntos mal-educados que, nas sessões de espiritismo, quando se anuncia uma demonstração espalhafatosa, metem a viola no saco.
E o milagre gorou.
É conveniente que se arranjem outros”.
IN: RAMOS, Graciliano. Linhas tortas. 21ª. ed. Rio de Janeiro: Record, 2005, p. 323.
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Dalva Garcia
Professora de filosofia da rede pública de São Paulo.
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