Tariq Ali: Charlie Hebdo representa os perseguidores

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Tariq Ali: “Sacralizar um jornal satírico que ataca com frequência aqueles que são vítimas de uma islamofobia galopante é tão insensato como justificar os atos de terror de que foi vítima. Alimentam-se mutuamente”.

Atalhos

A hipocrisia com que a classe dominante na França se quis aproveitar dos ataques terroristas da passada semana pode sair-lhe pela culatra. Com a mesma veemência com que se solidarizou com as vítimas a opinião progressista vem denunciando esse comportamento inqualificável. E este texto é anterior à “jornada republicana” de domingo.

Tariq Ali, no London Review of Books, via ODiario.info

Foi um acontecimento horrível. Foi condenado na maior parte do mundo, e de forma particularmente pungente por muitos cartoonistas. Quem planejou esta atrocidade escolhera cuidadosamente o seu alvo.

Sabia que um tal ato suscitaria o máximo horror. O efeito que procuravam era qualitativo, não quantitativo. A resposta que obtiveram não os teria surpreendido, nem lhes teria desagradado.

O mundo dos descrentes não tem qualquer interesse para eles. Ao contrário dos inquisidores medievais da Sorbonne, eles não estão nem legal nem teologicamente mandatados para importunar livreiros ou impressores, para banir livros ou para torturar autores, e por isso vão um passo adiante e decretam execuções.

E que se passa com os soldados rasos? As circunstâncias que atraem jovens homens e mulheres a esses grupos são criadas pelo mundo ocidental que habitam – o que constitui por si mesmo um resultado de longos anos de ocupação colonial nos países dos seus antepassados.

Sabemos que os irmãos parisienses Chérif e Said Kouachi eram cabeludos inaladores de marijuana e outras substâncias até ao momento em que (tal como os bombistas de 7 de Julho na Grã-Bretanha) viram reportagens da guerra do Iraque e a matança a sangue-frio de cidadãos iraquianos em Fallujah.

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Procuraram apoio na mesquita. Aí foram radicalizados por residentes da linha dura, para quem a guerra ocidental contra o terror criara uma oportunidade de ouro para recrutar e hegemonizar os jovens, tanto no mundo muçulmano como nos ghettos da Europa e da América do Norte.

Enviados primeiro para o Iraque para matar americanos e mais recentemente para a Síria (com a conivência do Estado francês?) para derrubar Assad, estes jovens foram ensinados a utilizar armas de forma eficaz.

De regresso a casa prepararam-se para dar uso a este conhecimento contra aqueles que acreditavam estarem a atormentá-los nestes tempos difíceis. Eles eram os perseguidos. Charlie Hebdo representava os perseguidores.

O horror não deve impedir-nos de constatar essa realidade.

O Charlie Hebdo não ocultara a sua intenção de continuar a provocar os fiéis muçulmanos tomando o profeta como alvo. Muitos muçulmanos ficaram irritados com isso, mas ignoraram o insulto.

O jornal tinha reproduzido as caricaturas de Maomé publicadas em 2005 pelo diário dinamarquês Jyllands-Posten – caricaturas que o representavam como um emigrante paquistanês.

Esse jornal dinamarquês reconheceu que nunca publicaria nada de semelhante representando Moisés ou os judeus (embora talvez já o tivesse feito: a verdade é que publicou artigos apoiando o 3º Reich), mas o Charlie Hebdo reivindica para si próprio a missão de defender os valores da laicidade republicana contra todas as religiões.

Atacou ocasionalmente o catolicismo mas praticamente nunca se meteu com o judaísmo (ainda que os numerosos ataques de Israel contra os palestinos lhes tivessem proporcionado muitas oportunidades) e concentrou a sua troça no Islão.

O laicismo francês parece integrar tudo, desde que não seja islâmico.

Em França, os ataques ao Islão têm sido incessantes, com o novo romance de Michel Houellebecq, “Submissão” (a palavra islão significa submissão) a ser a munição mais recente.

Prediz o país governado por um presidente oriundo de um grupo a que chama Fraternidade Muçulmana. Charlie Hebdo, não devemos esquecê-lo, publicava uma caricatura de Houellebecq na capa do dia em que foi atacado.

Defender o seu direito de publicar, fossem quais fossem as consequências, é uma coisa; mas sacralizar um jornal satírico que ataca com frequência aqueles que são vítimas de uma islamofobia galopante é tão insensato como justificar os actos de terror de que foi vítima. Alimentam-se mutuamente.

A lei francesa prevê a suspensão das liberdades perante a ameaça de perturbação da ordem ou de violência. Esta faculdade fora invocada antes para proibir intervenções públicas do comediante Dieudonné (bem conhecido pelas suas piadas anti-semitas) e para impedir manifestações de apoio à Palestina – a França é o único país ocidental com tal conduta.

Que tais atuações não sejam encaradas como problemáticas pela maioria dos franceses fala eloquentemente por si. E não são apenas os franceses: em lugar nenhum da Europa se realizaram vigílias à luz de velas ou concentrações de massas quando foi revelado que os prisioneiros muçulmanos entregues aos EUA por numerosos países da UE (com os valentes polacos e a Grã-Bretanha governada pelos trabalhistas na primeira linha) tinham sido torturados pela CIA.

E o que aqui está em causa é algo mais do que uma sátira.

A elegância dos liberais laicos que falam em defender a liberdade até à morte apenas tem comparação com a dos liberais muçulmanos que repetem incessantemente que o que sucedeu nada tem a ver com o Islão.

Existem diferentes versões do Islão (a ocupação do Iraque foi deliberadamente utilizada para desencadear a guerra entre xiitas e sunitas que ajudou a gerar o Estado Islâmico); não faz sentido pretender-se falar em nome de um “verdadeiro” Islão.

A história do Islão é desde o início repleta de lutas de facções. Tanto as correntes fundamentalistas no interior do Islão como as invasões do exterior foram responsáveis pela elisão de muitos avanços culturais e científicos no período medieval tardio.

Essas diferenças continuam a existir.

Entretanto, Hollande e Sarkozy anunciaram ir encabeçar uma marcha de unidade nacional (Cameron também participa).

Tal como me escreveu um francês “A ideia de que Charlie Hebdo viesse a provocar uma “união sagrada” não pode ser senão uma daquelas ironias da história que deixaria o mais cínico libertário inconformista pós-68 engasgado de incredulidade”.

Fonte: London Review of Books, 9 de Janeiro de 2015

Tariq Ali é jornalista, escritor, historiador, cineasta e ativista político. Nascido em 1943 no Paquistão, atualmente vive na Inglaterra, onde colabora com diversos periódicos e é um dos editores da revista New Left Review. É especialista em política internacional e tem se destacado com análises sobre o Oriente Médio e a América Latina. 

 Leia também:

Andre Vltchek: Como o Ocidente está manufaturando o terrorismo islâmico

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Comentários

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José Souza

As religiões (todas e qualquer uma) retiram dos seguidores a capacidade do livre arbítrio e passam a ser manipuladas pelas pessoas que comandam as religiões. Todas elas tratam as mulheres como seres inferiores, negando-lhes direitos a não ser o de obedecer cegamente os homens e os comandantes das religiões. Infelizmente não há país onde essa praga não exista. Um dos melhores textos que já li sobre o assunto é o de Fausto Wolff, publicado no Jornal do Brasil em 05/08/2005 sob o título: O homem e deus. Sugiro a leitura e, depois, tirem suas conclusões.

    elisa

    Claro… as religiões são uma praga, sem elas teríamos países perfeitos e bem governados, como foi o Brasil, governado pelo FHC, um ateu, que deixou como saldo social 50 milhões de indigentes no país e que chama quem vota em partidos progressistas de ignorantes. Na minha visão há pessoas com boa conduta e má conduta em todos os segmentos, porque em todos os lugares há seres humanos, querer atribuir as mazelas do ser humano às religiões para mim é ter uma visão muito limitada da sociedade e da vida e generalizar chamando todo de manipulados é também desconhecer muito os ambientes religiosos, em que há uma grande diversidade de visões.

    elisa

    Só complementando… o mesmo FHC despachou a amante junto com o filho que teve com ela para outro país para não atrapalhar a opinião pública sobre ele na política. Então tratar mal uma mulher não me parece exclusividade de religiosos.

Paulo Lopes

Mas precisa metralhar os caras com Ak47 e matar dezenas de inocentes???

Francisco

Charge é uma forma de expressão.

Bomba e bala também são formas de expressão.

Se bala e bomba podem (e devem) ser militados (censurados, se quiser chamar assim), charge também.

Não se pode viver em sociedade desconsiderando o outro, ainda mais sistematicamente.

Ouvi dizer que muçulmanos tentaram amenizar a Charlie Hebdo através da Justiça francesa, sem êxito NENHUM.

Matar, roubar, são comportamentos censuráveis e não proliferam graças a serem “censurados” com até 30 anos de cadeia.

TODA sociedade, portanto, conhece a censura, TODA.

A questão é: qual a legitimidade moral (e democrática) que a censura da sua sociedade possui?

Edgar Rocha

Eis o bom senso capaz de emergir da cultura islâmica, a despeito do que pensam os ocidentais alijados do conhecimento histórico. Durante mais de mil anos, nenhuma vertente religiosa se mostrou tão aberta e propulsora dos avanços sociais, políticos e científicos quanto o islamismo. Lembremos de Saladino, cujas prescrições acerca do direito em período de guerra tem servido de inspiração a ONU e a todo o Ocidente para definir e qualificar intervenções de Estado: respeitar os civis e evitar massacres são conceitos advindos do pensamento deste grande líder da Idade Média tardia. Também o islã ajudou a forjar as bases de uma cultura de convívio e interação entre várias doutrinas de fé, tendo por base os preceitos do próprio Maomé. Não é à toa que a experiência política islâmica na Península Ibérica é chamada de Era de Ouro da Idade Media, da qual somos nós, brasileiros, herdeiros culturais e históricos. Sem as ciências do mundo árabe não ocorreriam navegações, sem a miscigenação como paradigma cultural, não seríamos o que somos. “Não é forte quem derruba os outros; forte é quem domina a sua ira”, “Nada melhor pode dar um pai a seu filho do que uma boa educação”, “As acções devem ser julgadas de acordo com as intenções”, “Quem busca o conhecimento e o acha, obterá dois prêmios: um por procurá-lo, e outro por achá-lo. Se não o encontrar, ainda restará o primeiro prémio”, “Humildade e cortesia são actos religiosos”, “Não vejas e não critiques os vícios humanos que em ti próprio se encontram”, “Em religião não deve haver nada de imposição”, “Os homens apreciarão as mentiras até o fim do mundo, e relatarão anedotas como nunca jamais ouvistes vós e vossos pais”, “Não ofendas e não serás ofendido”, “Cada nação tem o seu profeta; cada nação tem a sua época”, “Busca conhecimento do berço à sepultura”.

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