O BRICS 2024 em Kazan
Por Ruben Bauer Naveira*
Este artigo é a continuação do anterior, publicado logo antes da cúpula dos BRICS em Kazan.
Como era de se esperar, a cúpula dos BRICS foi largamente ignorada pela mídia hegemônica, quando não menosprezada pela “ausência de resultados concretos” – como se o advento de uma nova arquitetura financeira para o comércio mundial em contraposição à arquitetura vigente desde o final da Segunda Guerra Mundial pudesse ser algo repentino.
Ademais, a arquitetura vigente elegeu uma moeda preexistente de um único país, o dólar norte-americano, para reserva mundial de valor, conduzindo assim inevitavelmente à hegemonia dos Estados Unidos (unipolaridade), enquanto que a nova arquitetura, em respeito ao princípio da multipolaridade, não poderá vir a ser hegemonizada por nenhum país, o que torna a empreitada sobremaneira complexa.
Mas resultados em Kazan houve, e expressivos.
Comecemos pelos resultados de natureza “concreta”. Foram dados largos passos para a implantação efetiva de sistemas como o BricsBridge, para interligação dos bancos centrais dos países-membros de modo a que as suas moedas nacionais venham a ser usadas no comércio internacional, e o BricsPay, uma plataforma de pagamentos internacionais alternativa ao sistema SWIFT concebido e controlado pelo Ocidente.
Foram também deslanchadas iniciativas para a criação do BricsClear, uma infraestrutura comum de depósito e liquidação; de uma empresa de resseguros dos BRICS; e de uma agência própria de classificação de risco (rating).
Não menos importante, será criada uma bolsa de grãos, como precursora de bolsas para todas as demais commodities, na qual compradores e vendedores poderão negociar tendo os preços de referência, pioneiramente, fixados fora do dólar, em uma moeda digital ainda por ser criada.
Nenhuma dessas iniciativas será vinculante aos diferentes países-membros, ou seja, as adesões serão em base voluntária, o que foi uma saída sagaz para o problema da unanimidade (decisões por consenso).
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Assim, China e Rússia ficam liberadas para “pisar no acelerador” da implantação da nova arquitetura, contornando a eventual resistência dos países “cavalos-de-troia” (falaremos adiante).
Naturalmente, saldos comerciais entre os países ainda serão em dólares, mas já poderá haver uma significativa redução do seu uso: suponhamos que, na balança comercial entre os países A e B, o país A importe X dólares do país B, enquanto que o país B importe 2X dólares do país A.
Até o montante de X (ou seja, dois terços do volume total de valor comercializado) tudo poderá ser pago com as moedas nacionais, enquanto que o país B ainda terá que pagar em dólar ao país A pela outra metade das suas importações.
Tome-se agora a seguinte microrregião do mundo: Tailândia, Malásia, Vietnã, Indonésia, Índia e China.
São todos países vizinhos, e com expressivas trocas comerciais entre si. Some-se a isso o fato de que essa região é a mais bem servida do mundo pela logística multimodal provida pela Iniciativa Cinturão e Rota chinesa, e o que se tem em mãos é um excelente “piloto” para a desdolarização do comércio mundial.
Se a essa microrregião agregarmos mais outros países na costa do Oceano Índico, como Irã, Etiópia, Emirados Árabes Unidos e Arábia Saudita, o piloto adquire proporções excepcionais, permitindo antever uma significativa ampliação do comércio entre aqueles países.
Uma implantação efetiva de todas as iniciativas decididas em Kazan somente virá a prover as bases para uma desdolarização maciça do comércio mundial em um prazo que não tem como ser antevisto, mas que a um ritmo, digamos, “natural”, pode ser grosseiramente estimado entre cinco e dez anos.
Pode-se prever com certeza, ao longo desse período, crescentes tensões no mundo e crescentes pressões por parte do Império que, se vierem a desembocar em novas crises geopolíticas (guerras), terão o condão de acelerar, por força maior, esse prazo de implantação.
Um resumo sóbrio pode ser encontrado neste depoimento do francês Arnaud Develay, especialista em legislação internacional.
Passemos agora aos resultados de natureza, digamos, “psicoglobal”.
Por iniciativa da Índia, esta e China chegaram a um acordo para manter congeladas, por prazo indefinido, as suas disputas territoriais de fronteira, e assim poderem se dedicar integralmente à cooperação econômica.
Até aqui a Índia vinha sendo um parceiro hesitante quanto ao processo de desdolarização, e um país que “pendulava” entre as esferas de influência Ocidental e dos BRICS.
Esta iniciativa por parte da Índia sinaliza que a fase de hesitação acabou, e que a Índia virá agora unir-se mais firmemente à Rússia, China, África do Sul e demais parceiros na implantação das novas iniciativas.
Mas a mais grata surpresa da cúpula foi a inesperada, e aparentemente profunda, “quebra de gelo” entre o primeiro-ministro Pashinyan da Armênia e o presidente Aliyev do Azerbaijão, dois países que até então têm estado em estado de guerra – claro que contou muito a perspicácia da organização russa da cúpula em sentá-los lado a lado.
Veja também neste vídeo.
Após décadas de fracasso da Organização das Nações Unidas em conter a proliferação de conflitos pelo mundo (como no Iraque, Líbia, ex-Iugoslávia, Afeganistão, Iêmen, Somália, Síria, Haiti, no Sahel africano e outros), a cúpula dos BRICS veio como um lufada de ar fresco para desanuviar um ambiente carregado, sinalizando o advento de uma nova era para o entendimento e a cooperação entre as nações – especialmente porque, ao contrário dos fóruns tradicionais criados pelo Ocidente, que legitimam como natural a imposição dos interesses de uns sobre outros (invariavelmente os daqueles mais fortes sobre os daqueles mais fracos), o BRICS traz consigo um princípio não-escrito de se levar em consideração os interesses de todos.
Novamente por mérito da organização russa, o formato de mesa-redonda veio contrastar com o formato de púlpito-auditório da ONU.
E Putin revelou que a data de 24 de outubro para o encerramento da cúpula não foi escolhida ao acaso, posto que carrega um significado simbólico: foi em um 24 de outubro (de 1945) que entrou em vigor a carta da Organização das Nações Unidas.
Diante da falência do modelo da ONU, os BRICS se propõem como um renascimento de uma comunidade de nações, portando uma mensagem de civilidade, cooperação, tolerância e abertura, e de respeito à soberania de cada país.
Em um mundo cujos “senhores” não apenas silenciam como se acumpliciam e prestam apoio diante de mais um infame genocídio na história da humanidade, a mensagem de acolhimento e de esperança dos BRICS é um ganho até maior do que os resultados ditos “concretos” da cúpula.
Quanto ao Brasil, o governo Lula acabou por vestir a carapuça de “cavalo-de-troia” do Ocidente para solapar os esforços do grupo, talvez ao lado da Arábia Saudita, a qual até aqui vem ao menos se esquivando de aceitar o convite para fazer parte do grupo.
A ausência de Lula em Kazan encontra respaldo na proibição médica de viagens longas de avião.
É, porém, inescusável que Fernando Haddad tenha sido o único ministro da economia e finanças dos países-membro a ter deixado de comparecer às reuniões preparatórias e, pior, a ter voado justamente para Washington justamente na data da cúpula para cumprir agendas outras.
O país que assumiu à frente da implantação da bolsa de grãos dos BRICS é a Rússia, o maior produtor de grãos do planeta. Não deveria ser uma prioridade para o Brasil, o segundo maior produtor (e o primeiro em soja, milho e café) vir a conjuntamente encabeçar essa iniciativa?
Foi também sintomático que a representação do Brasil em Kazan tenha ficado a cargo do chanceler Mauro “se Putin vier ao Brasil teremos que prendê-lo” Vieira.
Não se deve subestimar as pressões a que Lula possa estar submetido, e está claro que o governo Lula 3 não faz o que quer, faz aquilo que consegue fazer. Quando Arthur Lira o chantageia ele não o faz em seu nome pessoal, faz em nome da expressiva maioria que a direita auferiu na Câmara dos Deputados.
E quando, faltando seis dias para Kazan, Lula recebe os principais banqueiros do país os quais saem da reunião tecendo elogios ao governo, ficam patentes os limites aos quais Lula está confinado em termos da sua atuação para a construção do mundo multipolar.
Não obstante, mesmo que possa ser explicável, essa posição assumida pelo Brasil vem jogar contra as pretensões de Lula de entrar para a História como um grande estadista reconhecido mundialmente.
Para os BRICS, a má notícia é que terá início agora a presidência brasileira do bloco, e a boa notícia é que daqui a um ano ela acaba.
Resta falar do veto brasileiro à entrada da Venezuela nos BRICS. O argumento de que as eleições na Venezuela não foram exatamente “democráticas” não para em pé, porque não houve restrições do Brasil à entrada de Cuba, onde vigora um regime de partido único em que sequer ocorrem eleições presidenciais, muito menos existe qualquer “alternância de poder” desde 1959.
É claro que existe participação política em Cuba, que assim é democrática a seu modo próprio – mas assim também é na Venezuela.
A própria democracia brasileira, com suas bancadas majoritárias de parlamentares fisiológicos e corruptos perpetuamente reeleitos por força de orçamentos secretos, emendas pix e compras de votos, não tem como ser tomada por qualitativamente superior à venezuelana somente porque a um nível formal as nossas urnas eletrônicas garantem a lisura da apuração.
Já o argumento de que a Venezuela “não contribui para a paz” (palavras de Celso Amorim) tampouco convence, dado ser por demais sabido que o ambiente político venezuelano se encontra de tal modo deteriorado que ambos, governo e oposição, não se furtam a toda sorte de expedientes violentos e antidemocráticos, e fazem do processo eleitoral mero pretexto para se perpetuarem no poder (governo) ou para açambarcá-lo a quaisquer meios (oposição).
Não há dúvida que o governo brasileiro tem as suas legítimas razões para não reconhecer a vitória eleitoral de Maduro, porém o que está em jogo é o advento do mundo multipolar, para o qual a Venezuela é peça muito importante.
Priorizar uma questão local em detrimento do interesse global é míope para se dizer o mínimo – é como jogar fora o bebê junto com a água suja do banho.
Enfim, Nicolás Maduro esteve em Kazan, mas não como “penetra” como a imprensa brasileira quis fazer parecer, e sim como convidado de Putin, o qual fez questão de deixar bem claro que a Venezuela somente não entrou para o grupo devido ao veto brasileiro, e que recepcionou Maduro de forma particularmente veemente (vídeo) – sendo que a acolhida de Xi Jinping a Maduro não foi menos calorosa.
Maduro tomou seu assento na mesa-redonda dos líderes, do que tirou o devido proveito.
Para encerrar, um episódio pitoresco sobre a imagem que ilustra a chamada deste artigo e, propositalmente, a reproduzimos abaixo.
Um Vladimir Putin especialmente bem-humorado resolveu fazer uma troça, gaiatice ou pilhéria (chame como quiser, mas eu me recuso a chamar de “trolagem”) e mandou desenhar e imprimir aquela que seria “a nova moeda dos BRICS”, em substituição ao dólar.
Pois não é que não pouca gente nas mídias tanto hegemônica como alternativa não caiu na esparrela, e acreditou por alguns momentos que ele estaria falando sério, até se darem conta da vergonha que estavam passando?
Deprimente mundo este, em que não se pode mais nem aprontar uma molecagem…
*Ruben Bauer Naveira (contato e pix [email protected]) é ativista, pacifista e autor do livro Uma Nova Utopia para o Brasil: Três guias para sairmos do caos (disponível aqui).
*Este texto não representa obrigatoriamente a opinião do Viomundo.
Leia também
Jair de Souza: O encontro do Brics e o parasitismo do dólar
Comentários
Analista geoeconômico
Perfeita análise. Para nos fazer enxergar e nos livrar das fakenews e teorias da conspiração. Parabéns ao Viomundo por ter publicado.
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