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Precisamos falar sobre Múcio
Por Roberto Amaral*
“Age em relação a teus amigos como se eles devessem tornar-se um dia teus inimigos”
Cardeal Mazarin, Breviário dos políticos
O governo Lula ainda não conseguira instalar-se de fato; a área da defesa permanecia intocada (como intocada permanece até aqui), e a mobilização popular cessara com a “subida da rampa”, promessa finada em sua bela metáfora.
Os chefes militares do novo governo haviam sido ditados pelas fileiras ao ministro da Defesa; o presidente não cuidou politicamente da lista que lhe foi apresentada, não pesou os nomes nem os critérios da escola estritamente castrense, e os comandos permaneceram os mesmos.
Havíamos vencido as eleições, assumíramos o governo, mas tudo permanecia como dantes no castelo de Abrantes. Assim, o passado que supúnhamos haver derrotado é que construía os fatos, e os fatos nos governavam.
[Em setembro de 2023, o deputado Glauber Braga (PSOL-RJ), com outros parlamentares, foi recebido em audiência pelo ministro da Defesa. Seu relato: “Fui à Defesa discutir a Lei nº 13.954, de 2019 (que amplia os poderes dos oficiais superiores e reduz os direitos dos praças). Fomos recebidos por José Múcio Monteiro e uma mesa cheia de generais. A certa altura, sem pedir segredo, o ministro, referindo-se aos oficiais, diz: ‘São todos bolsonaristas. Tem golpista e legalista. Mas todos bolsonaristas’.”]
No dia 8 de janeiro, o ministro da Defesa saboreava acepipes em um restaurante badalado de Brasília quando foi surpreendido (o depoimento é dele) pela notícia da turbamulta invadindo as sedes dos poderes.
Uma súcia arrecadada à vista de todos e por muito tempo, trazida de todos os quadrantes do país, por todos os meios, para se juntar aos insurretos que ocupavam os portões e as imediações dos quartéis, sob a proteção delinquente de seus comandantes.
Do outro lado da Esplanada, revelando uma salutar contradição no governo, o ministro da Justiça, Flávio Dino, comandava de seu gabinete a reação possível.
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Diz a crônica que foi apresentada ao presidente, pelo ministro da Defesa, a proposta de decreto que fazia a regência do malfadado art. 142 da CF-88, o dedo perverso do militarismo na Constituinte.
Era o meio de consolidar juridicamente o golpe: as tropas, sob o pálio da Lei Maior, voltariam às ruas “para restabelecer a ordem” que elas mesmas haviam ajudado a decompor, e não se admitia prazo para seu retorno aos quartéis. O planejado é fácil de imaginar.
Sabe-se que o texto suicida foi recusado, por instância do ministro da Justiça, no “fio da navalha”.
Tudo isso me vem à baila quando o ministro da Defesa, surpreendentemente boquirroto para quem o conheceu de outros tempos, volta às folhas, às telas e às telinhas para incomodar a República e pôr em sobressalto a política.
O sobressalto é justo, e compreensíveis são as variadas interpretações de seu discurso, pois não se trata de um político qualquer.
Múcio tem história: expressão graduada da classe dominante pernambucana de raízes rurais, foi o candidato do regime militar contra Miguel Arraes em 1986 e se tornaria amigo e colaborador de Eduardo Campos, neto do patriarca.
Deputado federal por cinco mandatos, transitou pelas siglas do sistema – ARENA, PDS, PFL e PTB – e assim chegou ao posto de ministro coordenador político no segundo mandato de Lula. Encerrou a carreira política como ministro do Tribunal de Contas da União, nomeado pelo mesmo Lula.
Suas falas são coisa séria, pois não consistem em palavras soltas ao vento. Trata-se, porém, de uma ventriloquia, e é preciso cuidar do dono da voz.
Em sua recente entrevista ao programa Roda Viva, da TV Cultura (10/02), Múcio lembrou que teve familiares junto aos portões dos quartéis, naquela tentativa do bolsonarismo de criar a desordem servidora do objetivo de impedir a posse de Lula.
Lembrou que, antes de assumir o ministério, procurara seu amigo capitão; precisava de sua ajuda, e a obteve, para abrir-lhe as portas fechadas dos comandos militares.
Afinal, portou-se, ainda nesse programa, como o melhor dos defensores do capitão delinquente– cujo advogado, por sinal, já anunciou o pedido de juntada do programa de TV aos autos do processo de seu cliente, como a mais importante peça de sua defesa (vide O Globo, 11/02/2025).
O ministro falou em “prisão de inocentes” e aplicação de “penas arbitrárias”. Posando de jurista e juiz, defendeu uma nova dosimetria das penas, diferenciando os envolvidos conforme o grau de responsabilidade, como se isso não estivesse sendo observado – o que é uma forma a mais de condenar o processo.
E insinuou haver excesso de condenações e de penas altas impostas pelo STF. “Você não pode condenar uma pessoa da mesma pena, quem armou, quem financiou e quem foi lá inchar o movimento”.
Quem o está fazendo? Segundo o ministro, “não havia ninguém armado”, porque ele não considera as facas, os bastões de ferro, as pedras, as bombas de gás lacrimogênio , os pesados extintores de incêndios etc.
Fez coro à defesa da anistia que os meliantes de todos os naipes reclamam, sob a alegação de que o país precisa ser “pacificado”. “Ninguém aguenta mais esse radicalismo”, afirmou, sem se dignar a explicar o que entende por “esse radicalismo”, nem apontar sua origem (qual seja, a campanha eleitoral de 2018 e o governo que a ela se sucedeu).
Para o ministro, essa aberração política nos quadros de hoje ajudaria a “pacificar o país e reduzir a polarização”. A direita solta fogos.
Assim, não cogitou de discutir a alimentação desse radicalismo, hoje talvez ainda mais agudo do que nos tempos da campanha e do governo passado.
Rejeitou, reiteradamente, qualificar o 8 de Janeiro como ataque à democracia ou tentativa de golpe. O ministro simplifica a história, qualificando-o como um “movimento” (não indica seu caráter) ainda em apuração.
Questionado sobre a participação das forças armadas nos atos, Múcio sugeriu que não houve tentativa de golpe, pois os militares não aderiram à invasão, mas não soube explicar por que os comandantes das Forças se recusavam a recebê-lo e por que o chefe da Marinha e do Exército não procederam à transmissão do cargo, a que estavam obrigados, e por que acoitaram nas portas dos quartéis os arruaceiros que, como parte decisiva da intentona, invadiram e depredaram as sedes dos três poderes..
A quem (e a que) aproveita tudo isso?
Se o presidente Lula não enquadrar o porta-voz da caserna no MD, parecerá, à opinião pública, que o está endossando – o que seria muito perigoso para o governo e a democracia.
Ouso sugerir aos assessores políticos do presidente que consultem a história recente do presidencialismo brasileiro, com suas insurreições, levantes militares e, principalmente, com sua longa e aparentemente interminável série de golpes e contragolpes – e neles, o papel insidioso da sublevação dos quartéis, cupim voraz na faina silenciosa de consumir a legalidade.
A bibliografia, mesmo aquela dedicada aos temas mais recentes, como o golpe de 1º de abril de 1964, é vasta. Limito-me à indicação de um só título, o depoimento de Almino Afonso sobre o desmonte do governo Jango (1964 na visão do ministro do trabalho de João Goulart).
Há ali uma lição: nenhum presidente da República, em nosso regime, sobrevive sem um sistema (chamava-se à época de “dispositivo”) militar sob seu comando – não só eficiente, como fiel. Neste caso, comando e fidelidade não se transferem.
Quando Jango se deu conta, já era tarde demais.
***
Miséria do jornalismo – Com o genocídio contra os palestinos de Gaza ainda em curso, e sem fim à vista, o Estado de Israel (sempre dedicado à sua “hasbará”) bancou a viagem de meia dúzia de jornalistas brasileiros à região onde ocorre o massacre.
Como esperado, começam a aparecer nos “jornalões” nativos as contraprestações do passeio, pela mão dos coleguinhas que se prestaram a esse papel lamentável.
Em 11/02, O Globo publicou um texto (“O sentimento em Israel”) de um seu colunista que se arroga a oferecer “uma visão realista do que ocorre no Oriente Médio”.
Passando ao largo do sofrimento indescritível da população trucidada, o autor reproduz, de cabo a rabo – e sem pejo de mentir –, o discurso oficial do enclave sionista. É de revirar o estômago. Como dizia o inesquecível Barão de Itararé, “todo homem que se vende recebe muito mais do que vale”.
Lenga-lenga? I – O projeto de exploração de petróleo na Margem Equatorial é indubitavelmente controverso, e desperta preocupações razoáveis em face do histórico brasileiro de destruição ambiental (que não tem poupado a Amazônia e suas populações), bem como da catastrófica crise climática a que o avanço sem freios do capitalismo nos tem levado – crise que se tem feito sentir de modo devastador, inclusive no Brasil.
E é natural que sejam cobradas explicações a respeito, quando o país se prepara para sediar, em novembro próximo, a COP30.
Lenga-lenga? II – Nesse quadro, é de importância crucial, até pelo aspecto pedagógico, que o Governo Federal envolva a população em um debate amplo e democrático, no qual explique de modo acessível suas razões para apostar que a não exploração dessas reservas nos levaria a um colapso, sua certeza de que a Petrobras conduzirá a delicada operação de modo seguro e, ainda, o argumento – aparentemente contraditório – de que a abertura de novas frentes de extração de petróleo irá financiar a sonhada transição energética. Erra o presidente Lula ao desvalorizar ao debate, quando de debate tanto carecemos.
*Roberto Amaral foi presidente do Partido Socialista Brasileiro (PSB) e ministro da Ciência e Tecnologia do governo Lula. É autor do livro História do presente – conciliação, desigualdade e desafios (Editora Expressão Popular e Books Kindle).
* Com a colaboração de Pedro Amaral
*Este texto não representa obrigatoriamente a opinião do Viomundo.
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Comentários
Geraldo Silva
O texto é tendencioso e provocativo. Evidentemente que, o seu autor e os seus apoiadores, não sabem nada sobre o que ocorreu em março de 1964 e nem os fatos de 08 de janeiro de 2023. Não existe tomada de poder sem apoio das FFAA e, bem como, Blindados e Fuzis nas ruas.
O atual ministro da defesa é um cidadão íntegro e consciente das suas ações. Sabem muito bem dos fatos e como eles ocorreram. Se as FFAA quiserem tomar o poder, podem ter certeza , eles o farão com ou sem STF.
Zé Maria
https://t.co/iFZaG0B1mO
“João Goulart confiou num tal ‘dispositivo militar’.
Mas o Golpe de 64 transcorreu sem que houvesse resistência
à altura dos chamados militares legalistas.
Salvador Allende confiou em Pinochet ao ponto de achar que o general
teria sido preso pelos golpistas, na manhã de 11 de setembro.
Quando se deu conta da traição, era tarde demais.
Lula pelo visto confia em José Múcio.
Não atino os motivos.
Mas como dirigente do PT e cidadão brasileiro,
me sinto na obrigação de opinar publicamente
que isto é um erro.”
VALTER POMAR
Dirigente Nacional do PT.
Professor de Relações Internacionais
na Universidade Federal do ABC (UFABC).
https://x.com/VIOMUNDO/status/1889382347834810817
https://valterpomar.blogspot.com/2025/02/lula-erra-ao-manter-mister-mucio.html
.
Francisco pereira neto
Roberto Amaral está corretíssimo na sua análise. José Mucio nunca foi e nunca será um Teotônio Vilela. Os caminhos políticos são semelhantes e o ex senador Teotônio realmente assumiu dentro da ARENA seu compromisso com a democracia, sendo alvo de criticas de um dos mais ferrenhos defensores do golpe de 64, Jarbas Passarinho – que o inferno seja a sua morada atual. Depois, já no MDB foi presidente da comissão que analisou o projeto da anistia.
Mucio é, como podemos dizer, um palerma. E isso ficou demonstrado na sua participação no “Roda Morta”.
O que eu acho, e já está passando da hora, é Lula tomar as rédeas do país e começar a governar, começando com uma reforma ministerial, não aceitar traíras da oposição para poder ter apoio no Congresso. Lula e seus aliados próximos devem ter uma solução na manga para resolver essa questão. O que está claro para mim, e nunca foi assim como nos dois outros seus governos, ele tem total apoio do STF, com ou sem defeitos. Isso não importa agora. O que importa é Lula utilizar todos os apoios de um centra que tenha poderes para dar sustentação ao governo. Enquadrar as Forças Armadas para as suas reais funções- defesa da soberania nacional e não se subjugar ao império do Norte, como sempre fez.
É preciso que o governo não fique de quatro para a oposição. Situação vexatória para quem tem uma extraordinária capacidade política. Lula é capaz e não deve temer as consequências e colocar em prática tudo aquilo que a maioria do povo quer. É preciso sacar dos ministérios os ineficientes, e um deles é o Haddad, muito meloso para o meu gosto. Cadê a taxação das grandes fortunas?
Já que Lula não convidou Paulo Nogueira Batista Jr. para a Fazenda, pelo menos poderia indicá-lo para presidir o BC. Não fez nenhuma coisa e nem outra.
Lula está numa encruzilhada, mas ainda dá tempo se ele ousar.
Bernardo
Concordo com todos os pontos, desde a contradição com o Ministro da Defesa até a abordagem do assunto margem equatorial, exceto pela sugestão de mais debates. Não é necessário, o tema já está bem discutido e falta somente a licença ambiental para os furos da pesquisa e depois da finalização dos estudos a licença definitiva para a exploração. Está demorando muito mais do que devia e, pelo que está publicado, o nível e a qualidade das informações permite a tomada de decisão pelos órgãos ambientais. Essa demora ( lenga-lenga) custa caro ao país e dá margem a fatores exógenos influenciando o processo. Esse mercado usa as ferramentas do capitalismo predatório para prejudicar concorrentes e o Brasil não pode ser prejudicado.
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