Roberto Amaral: “O risco é imolar-se nas teias da pequena política”
Tempo de leitura: 4 minA sobrevivência do velho no novo
Por Roberto Amaral, em CartaCapital, 29.01.2013
Completamos uma década de governo de centro-esquerda, o mais longo e tranquilo período de governos progressistas, tanto do ponto de vista institucional quanto social. Nada que nos lembre, sejam os anos 50 (marcados pelo golpe reacionário que levou Vargas ao suicídio), seja o golpe proto-fascista de 1964, com sua longa noite de horror. Nada que nos lembre, sequer, o governo desenvolvimentista de JK, juncado por sucessivas tentativas de golpes de Estado e insurreições militares, articuladas antes mesmo de sua posse.
Na verdade, estamos, desde 1985, vivendo nosso mais longo período de estabilidade democrática, de preeminência do poder civil e silêncio dos quarteis, da história republicana.
O que avançamos à esquerda nesses dez anos só é comparável (talvez até superando-o) ao que o país avançou nos governos Vargas e Jango e, pela primeira vez, a direita não teve condições de interromper o processo de ascensão das massas, embora cogitasse dessa aventura em 2005, da qual recuou em face de seu medo contumaz da voz das ruas. Avançamos sobretudo em conquistas econômicas e sociais, que ajudam a explicar a notável popularidade de Lula e de Dilma. Estamos, todavia, ainda a pagar um preço absurdamente elevado pela “governabilidade”, o nome elegante da construção da base de apoio parlamentar, preço que impede o avanço político. Pois tudo tem seu preço.
A avaliação mais corrente ao período deita suas raízes no plano econômico, considerado, à esquerda e à direita, como fiador da popularidade dos governantes, financiador que é dos avanços sociais, os quais, para poupar espaço, resumiremos na dupla pleno emprego-distribuição de renda: 42,5 milhões de brasileiros entraram no sistema financeiro e conheceram o crédito, tornado acessível graças à intervenção política da presidente.
No segundo semestre de 2002, em plena campanha pela sucessão presidencial, o presidente FHC convocou todos os candidatos para uma ‘reunião de Estado’ (estive em uma delas, acompanhando o candidato Anthony Garotinho, à época no PSB), para anunciar a falência do país. O governo, em seu outono, correra uma vez mais ao FMI e precisava que o próximo presidente honrasse os terríveis compromissos assumidos com a banca internacional. Passados 10 anos, o Brasil, de devedor, tornou-se credor do FMI; a inflação anual caiu de 12,5% para algo como 5%; as reservas cambiais são superiores a um ano de importações, a realidade cambial foi restabelecida e a dívida pública líquida caiu como fração do PIB. Acabou-se com a lengalenga de ‘Banco Central independente’, independente do país e dependente dos banqueiros.
Outros excepcionais indicadores do amadurecimento de nossa economia remetem ao reconhecimento internacional, cuja justa medida é o fato de sermos, hoje, o quarto destino mundial de investimentos estrangeiros (65,3 bilhões de dólares, segundo a Unctad), e o Tesouro Nacional emitir (e vender) títulos de 20 anos, pagando uma taxa de juros real inferior a 4%! E tudo isso – e muito mais – mantendo a política de aumento real do salário-mínimo. A qual, nesse governo, contrariando economistas da FGV, deixou de ser elemento inflacionário. Aumentou-se o salário mínimo, aumentou-se a renda dos assalariados, aumentou-se o crédito, derrubaram-se os juros, e a inflação permaneceu sob controle.
Mas, o que mais festejo são os ganhos políticos e o que mais critico é a timidez política, e exatamente por isso elogio, finalmente, o pronunciamento da Presidente na televisão, tão bom que irritou a direita impressa. Espero, porém, que esse pronunciamento não seja o primeiro e último. Pois, se o grande mérito do governo foi a decisão de governar para as grandes massas – decisão de que decorrem os ganhos na economia – são tímidas as conquistas políticas e ainda mais tímida a disposição do governo de enfrentar o debate político, esperando que por ele falem os movimentos sociais, desarticulados e esvaziados, exatamente pelo exílio da política.
Apoie o VIOMUNDO
Ilustra essa inapetência política a forma como foi anunciada a queda dos juros pela qual clamavam sindicatos, empresários, a sociedade e a boa política (jamais nos esqueçamos dos discursos de José Alencar), apresentada que foi como mera medida econômica!
Ora, a queda dos juros foi decisão política da presidente, para a obediência da tecnoburocracia econômico-financeira e da banca, como foi sua decisão, política presidencial, determinar a correção no câmbio, o aumento do crédito pessoal e cutucar, com a ação dos bancos estatais, a banca refratária.
O governo, acossado pela crise de 2005, optou pela composição a mais ampla possível – elástica tanto do ponto de vista do espectro ideológico quanto do padrão ético – abrigando sob suas asas desde a esquerda (PSB, PT, PCdoB e PDT) a partidos como o PP de Maluf, o PTB de Roberto Jefferson e as armadilhas dos soi-disant evangélicos, enfim, uma malta que tem sua grande homenagem no velho e notório PMDB. A contra-prestação veio em termos, pois, se a governabilidade foi assegurada (mas não só como efeito dessa composição), a maioria no Congresso, hoje como ontem, é instável e rentista, sempre sujeita que é ao toma lá – dá cá.
De outra parte, essa geleia, informe e contraditória política e ideologicamente, privou o governo da ação das massas, que lhe são favoráveis, desmobilizou os sindicatos e não ensejou o surgimento de movimentos sociais e culturais capazes de trazer para a política os novos valores e as novas aspirações. Isolando-se, o governo corre o risco de imolar-se nas teias das transações da pequena política, a rainha do Parlamento de hoje, deixando a política para os ‘outros’.
Tal privação talvez explique a resistência de nossos governos em enfrentar a necessária reforma do Estado, que só nós podemos patrocinar, democratizando-o e descondicionando-o da destinação neoliberal para a qual foi moldado. Intocado, permanecerá o Estado de ontem herdado do tatcherismo e da razzia dos dois Fernandos: anti-povo, anti-nacional, o Estado da banca e dos privilégios, o Estado privatizado pelos interesses do capital, uma estrutura, portanto, que resiste à modernidade, à supremacia dos interesses nacionais e das grandes massas, alienado funcional e ideologicamente.
Ao não politizar seus avanços e conquistas, o governo de centro-esquerda renuncia à formulação de um corpus ideológico que daria significado e permanência às conquistas alcançadas, a melhor maneira de garantir no futuro a sobrevivência dos avanços de hoje.
No nosso silêncio fala a direita.
O povo, que apoia o governo que o beneficia, é alvo de uma guerra ideológica sistemática levada a cabo pelos grandes meios de comunicação de massa, ideologizados, partidarizados, reacionários. Trata-se, porém, de guerra sem conflito, pois um só exército vomita fogo. Este é o preço da inércia dos partidos, da inércia do que ainda resta de esquerda, esquecida de que, até para ocupar caixinhas no organograma do governo, é indispensável travar a luta política. Sem ela, ou perdemos o governo ou dele seremos apeados.
Veremos o que virá.
Leia também:
Lula, em Havana: Elite não aceita líderes de esquerda “pelos nossos acertos”
Comentários
Santayana: Matar poetas tem sido o grande prazer dos fascistas contemporâneos « Viomundo – O que você não vê na mídia
[…] Roberto Amaral: “O risco é imolar-se nas teias da pequena política” […]
Mardones
Se não politizar as realizações do governo aqui dentro, o Brasil vai perder ainda mais espaço para manter o rumo que começou em 2003 e que precisa ser aprofundado, pois é preciso desfazer acordos perniciosos de então.
Infelizmente, o PT tem sido mestre em discursos inflamados, mas quando o assunto é ação (vide a CPI do Cachoeira-Veja-Delta) fica aprisionado na temerária aliança da governabilidade que não vai dar ao país as reformas de que tanto precisamos.
É preciso falar e fazer política aqui dentro. Ou então esperar que o povo defenda o país do golpe de estado montado pela direita com auxílio do MP e do STF.
Ricardo Galvão
Muito bom o texto e a opinião do outro Roberto, o Locatelli. Esse é a minúscula parte do PSB que, por ter aspirações nacionalistas, a direita não gosta, não aposta e não procura promover, diferente do Eduardo governador. Mas, mesmo assim, não deixa de ser contraditório quando se ver um dirigente nacional de um partido que se pretende ser de esquerda, cobrar comportamentos e atitudes em legendas e governos outros, quando a sua própria agremiação, na média, é a expressão da critica que faz a outrem. O PSB poderia ser mais verdadeiro em sua crítica pontual se fizesse o dever de casa. Sei o que digo porque moro em Pernambuco e, quando posso, procuro acompanhar as atividades das legendas em todo país pra comparar o que dizem e o que fazem.
Helder
Excelente texto.
Stanley Burburinho @stanleyburburin
Gasolina com FHC: 1998 = R$ 0,85 | 2002 = R$ 2,25 = 170% em 5 anos || Gasolina com Lula: 2003 = R$ 2,25 | 2009 = R$ 2,50 = 11% em 6 anos.
Marcelo S.
concordo plenamente. Dilma tem feito reformas importantes, mas a política de longo prazo pode perder forca se ela nao estimular o debate político.
O melhor momento do Lula foi quando ele conclamou as massas a debaterem sobre o modelo de exploracao do pré-sal. Foi lindo ver a cara da oposicao, eles diziam que Lula politizara um debate técnico. E deu certo, criou-se uma pressao para aprovar-se o sistema de partilha.
E existem muitos outros temas de consenso na populacao que poderiam avancar com um simples debate público.
Maria Izabel L Silva
Essa analise é para copiar, colar e guardar. Muito boa.
Willian
O texto dá a entender que o PT acha ruim ter uma base aliada rentista. Engano. É muito mais fácil negociar na base do toma lá da cá do que negociar politicamente. Com a força que o texto dá a entender que o governo tem, ele poderia muito bem apoiar para a presidência da Câmara e do Senado personalidades menos controversas que as que agora apoia. Contudo, é muito melhor ter nestes cargos políticos manipuláveis, rentistas. O governo sabe qual o caminho a seguir para ter na mão os presidentes da Câmara e do Senado. Se tivesse nestas casas um político ético (mesmo que do PT ou de sua base à esquerda), talvez o trabalho sujo não pudesse ser feito. É mais fácil manipular um Renan Calheiros do que, digamos como exemplo, Luíza Erundina.
Não é por necessidade, é por gosto, estejam certos.
Roberto Locatelli
De todos os governos de esquerda da América Latina, o governo brasileiro é um dos que mais se “endireitou”, adaptando-se ao estado burguês.
Nem por isso a direita ficou satisfeita. Há um golpe de estado em preparação. Esse golpe de estado é capitaneado por gente ligada à quadrilha de Cachoeira, como o brindeiro prevaricador, “coroné” Gilmar e outros.
Deixe seu comentário