Roberto Amaral: O julgamento dos golpistas é uma virada de página

Tempo de leitura: 6 min
Em cima, Jair Bolsonaro, Mauro Cid, Alexandre Ramagem e Anderson Torres. Embaixo, Braga Netto, Augusto Heleno, Paulo Sérgio Nogueira e Almir Garnier. Fotos: Lula Marques/Agência Brasil, Valter Campanato/Agência Brasil, Marcello Casal Jr/Agência Brasil e reprodução de rede social

O julgamento dos golpistas é uma virada de página

Por Roberto Amaral *

“Há muito este país espera uma revolução: a do cumprimento das leis.”

— Marcelo Godoy, O Estado de S. Paulo (26/03/2025)

O país assiste a um dos momentos mais importantes da construção republicana, mas dele parece ausente a nação, mal informada pela grande imprensa — que reduz o fato político essencial a questiúnculas jurídicas — e pelos partidos, desmobilizados e desmobilizantes, perigosamente desafeitos à ação.

Enquanto o dever coletivo seria esclarecer a opinião pública, carente de debate e presa das milícias digitais, a esquerda — estranho destino! — conforma-se como plateia cansada.

Cruzamos os braços e nos quedamos em cômoda tranquilidade, porque delegamos nossos destinos de nação e país ao STF.

Pela primeira vez na história — cevada e abastardada por incursões golpistas das Forças Armadas e pela conciliação a serviço dos interesses da classe dominante (a mesma, desde sempre, dos engenhos e do latifúndio até a Faria Lima) —, a República se apresenta disposta a rever sua inércia política e romper com a crassa indulgência com o crime, marca que nos persegue desde as origens de nossa formação.

O julgamento dos principais criminosos do governo passado e da intentona de 8 de janeiro de 2023 é ato político na sua melhor acepção: diz, finalmente — e hosanas seja de uma vez por todas! —, que o atentado contra as instituições democráticas é crime e que seus autores devem ser punidos com o máximo rigor da lei, sejam eles os vândalos mobilizados pelo ódio e a ignorância, sejam os paisanos de paletó e gravata, sejam os engalanados de farda.

Estamos diante de uma virada de página significativa e, talvez, só agora possamos conhecer a efetiva restauração democrática, iniciada timidamente com o pacto de 1985.

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Sob o império das circunstâncias, esse pacto possibilitou a reconstitucionalização de 1988, sem assegurar, todavia, o império do poder civil — conditio sine qua non de qualquer pretensão democrática digna do nome. 

Abandonando o Planalto pelas portas dos fundos, os militares conservariam, até aqui, a preeminência sobre a política nacional. Denotativa dessa distorção é o fato de, hoje, em nosso governo, o ministro da Defesa comportar-se como mero porta-voz da caserna junto ao poder civil.

Há, portanto, razão para registrar a mudança de rota: pela primeira vez em nossa história, um ex-presidente da República e meia dúzia de generais — réprobos, mas poderosos — conhecem o banco dos réus e são processados pelo poder civil por crime contra a democracia. Isto não é pouco, e precisa ser destacado.

Senão, vejamos.

A ditadura desbragada cessava em 1985, mas, com a complacência de um poder civil tíbio e, em muitos momentos, oportunista, os militares conservaram a soberania sobre as instituições republicanas e a vida nacional.

Ditaram até os termos da democracia contingenciada: nenhuma apuração dos crimes militares, nenhuma revisão da Lei de Anistia (que só beneficiava os criminosos) e veto à Constituinte ordinária — que podia passar o país a limpo —, substituída por um Congresso ordinário que abrigava, inclusive, senadores biônicos.

Precatados, nomearam um bedel para os trabalhos da Constituinte: o general Pires Gonçalves (um dos redatores do malfadado artigo 142 da CF-88), que acumulava essa função com a de supervisor do presidente José Sarney, que chegava à presidência do país redemocratizado nas contingências sabidas, e após longa trajetória como prócer destacado do regime militar.

Nada de novo no front. Assim havia sido no final da ditadura do Estado Novo: nenhum dos incontáveis crimes da ditadura foi apurado, nenhum de seus agentes — sejam os fardados, sejam os canas de todos os DOPS — foi ao menos processado, quanto mais punido.

O capitão Olímpio Mourão Filho, responsável pela farsa do Plano Cohen (pretexto para detonar o golpe de 1937), não foi incomodado e chegou a general, com a biografia conhecida.

Ora, o general Gaspar Dutra, ministro da Guerra e operador do golpe (sob a supervisão do condestável general Góes Monteiro, chefe de todos), seria nada menos que o presidente da República na redemocratização em 1946!

Na política, como no crime comum, a impunidade é o fermento da reincidência. Nenhum dos golpistas de 24 de agosto de 1954 foi punido.

O general Juarez Távora e o brigadeiro Eduardo Gomes fizeram-se, respectivamente, chefe da Casa Militar e ministro da Aeronáutica no governo fantoche de Café Filho, empenhado em impedir a posse de Juscelino e Jango, eleitos em 1955.

Essa história da conciliação-impunidade permanente se repetiria — e se repete — até aqui, insólita e monótona.

Os militares que operaram o golpe de 11 de novembro de 1955, como todos os que antes e depois ergueram baionetas contra a democracia, permaneceram com suas fardas, suas estrelas, galardões, insígnias, fitas e condecorações; cumpriram longas e frutuosas carreiras, ganharam postos e comissões, antecipando o sucesso dos golpistas derrotados em 1961.

O general Cordeiro de Farias, em suas memórias (Diálogo com Cordeiro de Farias),  vangloriava-se de, sempre na ativa e quase sempre em posto de comando, haver conspirado sucessivamente contra Vargas, JK e Jango. Na insurreição de 1964 foi, entre muitos, estipendiado por Adhemar de Barros. Este é seu currículo.

O general Odílio Denys (O Ciclo revolucionário brasileiro), afirma com orgulho, haver começado a conspirar contra a democracia no dia da posse do presidente João Goulart.

A cada dia se revelam mais e mais crimes da ditadura instaurada em 1º de abril de 1964, e talvez jamais possamos conhecer seu inventário.

Mas sabe-se que os torturadores e assassinos — alguns notórios psicopatas, como o brigadeiro Burnier e o coronel Brilhante Ustra (ícone e modelo em que se inspiram o capitão Messias Bolsonaro e sua récua) — permaneceram intocados.

Eis o germe daninho que deu no golpe de 1º de abril e na longa noite de 21 anos, que os golpistas ora no banco dos réus tentaram restaurar após a derrota eleitoral de 2022, e que ainda forcejam por restaurar, em mobilização ideológico-política que envolve setores significativos do empresariado, governadores, jornalistas, lideranças religiosas, uma base parlamentar reacionária e, ainda, setores irrecuperáveis da caserna.

É o projeto neofascista que está sob o julgamento da história.

O assassino de Rubens Paiva — para citar um só caso, notório em face do belo filme de Walter Salles — chegou ao posto de marechal, gozando proventos para além de R$ 35 mil, afora os penduricalhos de praxe.

E hoje se sabe, graças às inconfidências do serviço secreto dos EUA (a quem tanto devem os golpistas de 1964!), que o presidente Ernesto Geisel, outro marechal, condutor da “transição”, autorizou, em despacho com o chefe do SNI, general Figueiredo (que Geisel faria seu sucessor), o assassinato de perseguidos políticos nos porões dos quartéis da República.

É preciso crer estarmos virando uma página da história, para manter viva a aspiração republicana de uma democracia — projeto sempre adiado pela classe dominante.

Se ainda estamos tão longe da democracia social (por cujo sonho tantos já foram torturados e mortos no Brasil), surge uma nesga de esperança: a possibilidade de realizarmos, em nosso tempo, uma democracia política.

Para tanto, é necessário mais do que boa vontade: é preciso coragem das instituições e mobilização social.

Os partidos e organizações progressistas, que com justiça celebram o enquadramento penal dos golpistas, precisam tornar-se, enfim, agentes de um processo de mudança em que atuaram, até aqui, sobretudo como espectadores.

***

O terror colonial não conhece limites — “Mesmo que eu ganhe um Oscar, voltarei para minha realidade cruel na Cisjordânia”, declarou recentemente o palestino Basel Adra, codiretor do impactante — e incontornável — No Other Land (Sem Chão, na versão lançada no Brasil).

O filme afinal foi premiado com a estatueta de melhor documentário e, como Adra previa, o sucesso não mudou sua realidade: há poucos dias, o cineasta foi espancado por colonos israelenses e, em seguida, sequestrado e torturado pelas forças da Ocupação, que o levaram preso por qualquer crime que tenham, como de hábito, atribuído à vítima.

Após dias de silêncio tonitruante, a Academia de Hollywood afinal se pronunciou sobre o fato — tímida, cautelosa e evasiva, sem nomear os algozes. Mas se pronunciou. Fará diferença?

Cibersegurança ou captura empresarial? — Enquanto os olhos de todos acompanhavam os dissabores de Jair Bolsonaro e sua gangue no STF, surgiu no Congresso uma frente parlamentar intitulada FrenCyber, criada sob forte influência das Big Techs e dominada pela fina flor da extrema-direita brasileira (de Damares ao General Mourão, passando evidentemente por um dos filhos do capitão).

Apoiada por uma certa DigiAmericas — rede financiada por gigantes como Google e Amazon —, a frente sinaliza para a entrega da cibersegurança brasileira a corporações estrangeiras e expõe o país ao risco do colonialismo digital.

O que tem a dizer a chamada grande “mídia” brasileira? Essa informação já chegou ao Ministério da Defesa?

*Roberto Amaral foi presidente do Partido Socialista Brasileiro (PSB) e ministro da  Ciência e Tecnologia do governo Lula. É autor do livro História do presente – conciliação, desigualdade e desafios (Editora Expressão Popular e Books Kindle).

* Com a colaboração de Pedro Amaral

*Este artigo não representa obrigatoriamente a opinião do Viomundo.

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Comentários

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Zé Maria

.
.
Dos 8 Réus Considerados Líderes
da Tentativa de Golpe de Estado:
3 são GENERAIS;
2 são Capitães,
incluindo o ex-presidente;
e 1 é Almirante; todos da
Banda Podre das FFAA.
E outros 2 são Policiais
da Banda Podre da PF.
.
.

Zé Maria

Desde a Campanha do Serra (PSDB) contra a Dilma (PT)
que a Extrema-Direita Neoliberal a está articulada
engolindo a Esquerda nas Redes Anti-Sociais. E hoje mais;
inclusive financiada pelas Corporações Empresariais.

Zé Maria

Excertos

“Projeto Neofascista Está Sob o Julgamento da História”

A cada dia se revelam mais e mais crimes da ditadura instaurada em 1º de abril de 1964, e talvez jamais possamos conhecer seu inventário.

Mas sabe-se que os torturadores e assassinos — alguns notórios psicopatas, como o brigadeiro Burnier e o coronel Brilhante Ustra (ícone e modelo em que se inspiram o capitão Messias Bolsonaro e sua récua) — permaneceram intocados.

Eis o germe daninho que deu no golpe de 1º de abril e na longa noite de 21 anos, que os golpistas ora no banco dos réus tentaram restaurar após a derrota eleitoral de 2022, e que ainda forcejam por restaurar, em mobilização ideológico-política que envolve setores significativos do empresariado, governadores, jornalistas, lideranças religiosas, uma base parlamentar reacionária e, ainda, setores irrecuperáveis da caserna.

É o projeto neofascista que está sob o julgamento da história.

É preciso crer estarmos virando uma página da história,
para manter viva a aspiração republicana de uma
democracia — projeto sempre adiado pela classe dominante (a mesma, desde sempre, dos engenhos
e do latifúndio até a Faria Lima).
[…]
A cada dia se revelam mais e mais crimes da ditadura instaurada em 1º de abril de 1964, e talvez jamais possamos conhecer seu inventário.

Mas sabe-se que os torturadores e assassinos — alguns notórios psicopatas, como o brigadeiro Burnier e o coronel Brilhante Ustra (ícone e modelo em que se inspiram o capitão Messias Bolsonaro e sua récua) — permaneceram intocados.

Eis o germe daninho que deu no golpe de 1º de abril e na longa noite de 21 anos, que os golpistas ora no banco dos réus tentaram restaurar após a derrota eleitoral de 2022, e que ainda forcejam por restaurar, em mobilização ideológico-política que envolve setores significativos do empresariado, governadores, jornalistas, lideranças religiosas, uma base parlamentar reacionária e, ainda, setores irrecuperáveis da caserna.

É o projeto neofascista que está sob o julgamento da história.

Se ainda estamos tão longe da democracia social (por cujo sonho tantos já foram torturados e mortos no Brasil), surge uma nesga de esperança: a possibilidade de realizarmos, em nosso tempo, uma democracia política.

Para tanto, é necessário mais do que boa vontade: é preciso coragem das instituições e mobilização social.

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Mestre ROBERTO AMARAL
https://x.com/VIOMUNDO/status/1906141234827317386

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Zé Maria

https://youtu.be/v1VZG01URmM

“Empresa que tinha Eduardo Bolsonaro como Sócio emprestou mais de R$ 800 Mil (US$ 140 Mil) nos EUA”

A Braz Global Holding, empresa aberta em março de 2023
em Arlington, no Texas, Estados Unidos, e que tinha
como sócio Eduardo Bolsonaro (PL-SP), concedeu um
empréstimo de US$ 140 mil — R$ 802.088,00 na cotação
do dólar de quinta-feira (27).

Fórum teve acesso a documentos que comprovam empréstimo de US$ 140 mil concedido pela empresa,
que fechou as portas um mês após receber o pagamento; documento é assinado por Paulo Generoso, sócio de Eduardo Bolsonaro

As informações são de documentos públicos
do Condado de Tarrant, no Texas, e foram
obtidos com exclusividade pela Fórum.

O empréstimo foi a única transação financeira
registrada pela Braz Holding encontrada pela
apuração da Fórum.

Além de Eduardo, constavam como sócios da empresa
o exsecretário Especial de Cultura do governo Bolsonaro
André Porciuncula, que foi processado por deserção
pela Polícia Militar do Estado da Bahia, e Paulo Generoso,
um dos fundadores do Movimento República de Curitiba,
criado em 2016 para apoiar a operação Lava Jato.

Reportagem: Plínio Teodoro & Luiz Carlos Azenha,
na Revista Fórum Nº 156 (a partir da página 22):
https://semanal.revistaforum.com.br/wp-content/uploads/2025/03/Revista-Forum-156-28.3.2025.pdf

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