Roberto Amaral: O ‘equilíbrio fiscal’, exigido pelo BC e a casa-grande da Faria Lima, é profundamente escravista
Tempo de leitura: 6 minA atualidade do combate ao escravismo
“Os exemplos brasileiros mostram que você tem que colocar o país em recessão para recuperar a credibilidade” – Roberto Campos Neto, presidente do Banco Central
Por Roberto Amaral*
Chegamos ao terceiro milênio do que conhecemos como mundo civilizado, quinhentos anos de terra, natureza e homens depredados, dois séculos de país independente, ainda em busca da dignidade: em 2023 navegamos na periferia do capitalismo a cujo anti-humanismo intrínseco acrescentamos a miséria de brutal concentração de renda e riqueza, ou seja, de desemprego e fome, uma espécie de escravismo em plena revolução tecnológica.
Somos campeões de desigualdade mesmo entre os mais pobres: 1% dos brasileiros mais ricos controla 31% da riqueza nacional. O Brasil é o segundo país com maiores desigualdades dentre os membros do G20 (o primeiro é a África do Sul).
A renda média nacional de nossa população adulta é R$ 43,7 mil, sendo que os 10% mais ricos, com renda de R$ 253,9, são donos de 58,6% da renda total do país (dados do World Inequality Lab).
Aqui a classe dominante festeja o desemprego, e um Banco Central autônomo em face dos interesses nacionais combate o desenvolvimento impondo ao país uma taxa de juros que sufoca a atividade produtiva, ao tempo que atribui a persistência inflacionária à queda das taxas de desemprego e aos reajustes salariais, que abjura.
Quando o Banco Central aumenta os juros, seu objetivo claro é reduzir os investimentos produtivos (aqueles que criam emprego e fazem girar a economia) e, na sequência, o consumo das famílias (cujo poder de compra cai), criando um círculo vicioso que termina por promover a recessão, como, aliás, vimos no experimento do ministro Joaquim Levy em 2015.
A chamada “autoridade monetária”, dispensada de prestar satisfações à sociedade, usa a ociosidade mórbida da economia, de particular o freio na já agônica atividade industrial, como medida anti-inflacionária e lamenta (lamenta o BC e lamenta a Faria Lima) que o desemprego tenha caído menos que o projetado, e que menos que o projetado tenha caído o consumo das famílias, adiando a recessão também projetada.
O cenário, no curto e no médio prazos – os tempos que nos interessam, pois no longo prazo todos estaremos mortos, como lembrava o esquecido Lord Keynes – é o encontro da recessão com a política contracionista imposta pelo Banco Central, com seu rol inefável de perversidades: retração da economia, concentração de renda, desemprego e fome.
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No segundo ou terceiro maior produtor de alimentos mundo, nada menos que 61 milhões de pessoas passaram dificuldades para se alimentar em 2022, nada menos que 33,1 milhões não têm garantido o que comer (dados do Segundo Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar).
Nosso país, sob o reino do agronegócio, está, desde 2018, de volta ao Mapa da Fome.
Burocratas, empresários e prepostos de empresários e banqueiros pensam em uníssono (todos estudaram nas cartilhas da Escola de Chicago traduzidas pela Fundação Getúlio Vargas), e chegam às mesmas conclusões, porque em suas equações não há espaço para o elemento humano.
Samuel Pessôa, escrevendo em julho de 2015 (“Luzes no final do túnel”) e comentando relatório do IBGE, comemora a queda dos rendimentos dos trabalhadores como fator deflacionário:
“A boa notícia foi a queda de 5% do rendimento médio real. (…) A ´boa notícia`, portanto, foi que os salários nominais têm crescido a taxas cada vez menores (…)”.
Já em nossos dias, o Valor (24/4/2023), em coluna assinada pelo repórter Alex Ribeiro, registra que a inflação não cai, apesar da política de juros altos, porque “a taxa de desemprego não vem subindo, até agora, da forma esperada e os reajustes de salários estão mais fortes do que o Banco Central antecipava”.
O governo se empenha na promoção de emprego e renda, o Banco Central se empenha em gerar desemprego.
O governo precisa investir para promover o desenvolvimento econômico; o BC, expressando a vontade da Faria Lima, cobra a redução de gastos e impõe o “equilíbrio fiscal” – e, assim, e a um só tempo, desorganiza a produção, promove o desemprego e reduz o poder de compra da população.
Confessadamente persegue a recessão e já nos deixa próximos do casamento da estagnação com a inflação.
Segunda maior concentração de renda do planeta, convivemos com a maior taxa de juros reais: 9,1%, contra -0,7% do Canadá, 0% dos EUA, 4,4% do México, 2,2% da França, -4,2% da Itália, 4% da Rússia em guerra, 2,9% da China, -4,2% da Turquia e -3,2% do Japão (fonte: https://tradingeconomics.com/).
Nada obstante a realidade, o presidente do BC reafirma que a meta da instituição é combater a inflação mediante a elevação dos juros, e sua vontade é, nas circunstâncias, imperial.
Mas ainda não é tudo, porque a casa-grande é insaciável.
Impõe o culto do ajuste fiscal, mantra do monetarismo que conquista almas à direita e à esquerda, sem necessidade de demonstração.
Assim não se discute, nem no governo nem no Congresso, e muito menos na academia e nos sindicatos, o caráter do modelo econômico que nos é imposto pelo grande capital – sem que tenha por trás de si o amparo da soberania popular que é o arrimo do mandato do presidente Lula, a quem é imposto um modelo de país e de economia que nega o pronunciamento eleitoral do dia 30 de outubro do ano passado.
E nega, acima de tudo, as necessidades de desenvolvimento do país, que requer gastos, investimentos em infraestrutura e saneamento, em saúde, em educação, ciência e tecnologia, além de incentivos à necessária e urgente recuperação da indústria manufatureira.
O país, inerme, não se dá conta dessa violência contra a soberania popular e as bases da democracia representativa, que é a usurpação do poder pelo Banco Central.
A esquerda de um modo geral absorveu o discurso do “equilíbrio fiscal” defendido pelos donos do poder.
Trata-se de um modelo verdadeiramente de fundo escravista, revela o ranço da casa-grande: um modelo baseado na manutenção de baixa atividade econômica, elevado desemprego e achatamento dos salários, tudo para garantir as taxas de lucro do capital.
É o desespero do pobre que garante o “equilíbrio” exigido pelos donos do poder.
Abandonada a alternativa industrial-desenvolvimentista, pela qual oportunamente optaram as grandes potências de hoje, somos, lembrando a origem colonial, uma grande província agroexportadora das commodities requeridas pelo chamado “ primeiro mundo”.
Os principais produtos comercializados pelo Brasil no último ano foram soja (14%), óleos brutos de petróleo ou de minérios betuminosos, óleos crus (13%) e minério de ferro in natura e seus concentrados (8,6%), reforçando o setor primário como protagonista da economia do país (https://www.domaniconsultoria.com). No terceiro milênio como na colônia, no império e na república velha.
Padecemos os males essenciais do capitalismo e contribuímos com a iniquidade de monstruosa desigualdade de renda, que aumenta a pobreza e aprofunda o atraso, na mesma medida em que concentra o poder nas mãos de uma minoria mínima de biliardários desvinculados da produção de riquezas e da geração de emprego.
Nossa burguesia, isto é, a burguesia aqui instalada, se conforma como procuradora da banca internacional.
Naturalizamos a violência em todos os modelos imagináveis, desde o genocídio das populações nativas (recentemente reavivado pelo bolsonarismo), e o escravismo, larvar, ostensivo, da colônia e do império, até, na modernidade capitalista, as mais variadas formas de trabalho análogo à escravidão.
Não me refiro apenas às formas clássicas de exploração do trabalho humano no campo, a corveia, a meação, a exploração do agregado, do morador.
Mas já a formas de espoliação que a imprensa identifica como “similares à escravidão” encontradas nas modernas vinícolas do Sul desenvolvido de hoje.
A herança escravagista e colonial, a ocupação predatória da natureza e dos homens na terra achada, são essenciais na moldagem da sociedade brasileira de nossos dias, exacerbadamente excludente, mas não encerram a história toda.
É preciso ter sempre em conta o papel crucial desempenhado pela classe dominante aportada e aqui criada.
A renúncia a um projeto próprio de sociedade, a opção consciente pelo atraso, pelo agrarismo e pela dependência econômica, política e cultural, o império autoritário e a república sereníssima, sem povo, obra de nossas elites, são essenciais na moldagem da história presente.
Coloca-se para o governo de centro-esquerda a resistência, e para os socialistas a denúncia do modelo político-econômico que aí está.
O modelo capitalista vigente, que, de um lado, exige a expansão da fronteira agrícola para garantir superávits das exportações no mercado global; de outro, tem como pré-condição a produção crescente de pobreza e miséria (pilar do “equilíbrio fiscal”), o que, por exemplo, empurra ribeirinhos e demais trabalhadores precarizados para dentro das reservas indígenas, em busca de sobrevivência – objetivo que a imensa maioria persegue.
A preservação do meio ambiente tanto quanto o combate à fome e ao desemprego está ameaçada pela simples continuidade do modelo – ainda que não tenhamos mais um facínora na presidência.
O grande tema da atualidade brasileira, neste 2023, portanto, é a abolição da escravidão.
*Roberto Amaral foi presidente do Partido Socialista Brasileiro (PSB) e ministro da Ciência e Tecnologia do governo Lula. Atualmente, é professor, cientista político e jornalista.
* Com a colaboração de Pedro Amaral
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Comentários
Zé Maria
A Burguesia pressupõe que, para não ser Racista,
basta chamar os Negros e as Negras
de ‘Colaboradores e ‘Colaboradoras’.
Zé Maria
https://sintrajufe.org.br/wp-content/uploads/2023/03/1085300-tngro_abr_30.07-4_30.07.17-1024×613.jpg
Zé Maria
https://agenciabrasil.ebc.com.br/direitos-humanos/noticia/2023-03/pesquisa-86-de-trabalhadoras-negras-relatam-casos-de-racismo
Zé Maria
A Discriminação e o Preconceito são as Rotinas de Trabalho das Mulheres Negras.
Pesquisa “Mulheres Negras no Mercado de Trabalho”, de 21 de Março no “Dia Internacional de Luta pela Eliminação da Discriminação Racial”
realizada por meio da rede social Linkedin, pela consultoria Trilhas de Impacto,
mostra que, entre os anos de 2021 e 2022,
86% das entrevistadas, todas com curso superior e empregadas,
já sofreram racismo no local de trabalho.
Romeu
Falta de coragem ou excesso de covardia. A coalizão liderada pelo PT reclama, procura dar voltas para tentar comandar a economia, mas evita o confronto direto. Ou o governo eleito assume a responsabilidade de gerir os destinos do País determinando uma Intervenção Federal no Banco Central mandando a elite financeira investir na indústria, ou vai sangrar até a morte.
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