O choque de realidade nos convida a agir
Por Roberto Amaral*
“Os filósofos até agora apenas interpretaram o mundo de diferentes maneiras; cabe agora transformá-lo.” (Karl Marx, 1845, Teses sobre Feuerbach)
Não basta contemplar a realidade, como as estrelas de Bilac. É preciso estudá-la, conhecê-la, avançando sobre as aparências que escondem sua essência.
Só assim surge o mundo real, produto histórico, rico em suas fontes sociais e econômicas.
Mesmo o conhecimento daí decorrente não pode ser visto como obra acabada. Sua vida decorre de seu papel como instrumento de intervenção do homem na realidade: só assim é possível transformar o mundo, e este é o destino do ser humano, sujeito histórico.
Contemplando os tempos de hoje parece pertinente lembrar aos nossos filósofos que a afirmação – laureada pela unanimidade de sua aceitação – segundo a qual o mundo, e nele o Brasil, foi engolfado por uma onda de conservadorismo político, se é verdadeira, não encerra toda a verdade.
Falta-nos a explicação desse conceito de conservadorismo urbe et orbe, falta-nos investigar suas causas, posto que não é obra nem de Deus nem do diabo, mas fenômeno político-social.
A crítica – seja jornalística, seja filosófica –dá um passo atrás quando se depara com o crucial, e se recusa a enfrentar o que fazer diante do mundo que fotografa: a ascensão da direita e do protofascismo em termos quase planetários, e, entre nós, a triste admissão de que a direita, em seu vasto espectro, é a força política e eleitoral hegemônica.
E, se é assim, por que é assim?
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De novo: como explicar esses movimentos político-sociais profundos, largos e tão rápidos?
De novo, a pergunta essencial: o que fazer, para além de simplesmente registrar a realidade?
Este terreno, pobre, tanto do ponto de vista teórico e especulativo, foi recentemente irrigado pelas intervenções de dois políticos atentos no engenho de dar explicações para fenômenos políticos que nos incomodam.
Ambos, de uma forma e de outra, se referem ao fracasso da democracia liberal com pretensões sociais no enfrentamento dos desafios impostos pelo que chamamos de capitalismo financeiro monopolista, a força governante, regente imperial, independentemente das nações, dos países e dos Estados.
Michelle Bachelet, ex-presidente do Chile por dois mandatos, explica a ascensão do autoritarismo e da direita a partir do fracasso da experiência democrática, um quase determinismo quando nossos governos não entregam os resultados prometidos ou não atendem às expectativas de suas populações.
Bachelet não se refere ao papel desestabilizador do capitalismo, fenômeno que não está adstrito aos países pobres, como mostra a crônica contemporânea, mas lembra que o fracasso de governos democráticos abre caminho para a geração de conflitos, de episódios de violência e instabilidade política, que, como sabemos, se resolvem nas soluções autoritárias, golpes militares e mesmos intervenções das grandes potências.
Cabe lembrar a lufada de revoltas, então ditas democráticas, que caracterizaram nos anos 2010 e 2012 a “primavera árabe”. O saldo, hoje, afora revoluções civis inconclusas, são os golpes de Estado no Egito e na Tunísia.
Algo pode nos lembrar os idos brasileiros de junho de 2013 e seus desdobramentos em nossa vida política, como o golpe de 2016 e a ascensão do bolsonarismo, contido em 2022.
Antes tivéramos o fracasso do monetarismo do ministro Joaquim Levy e a crise econômica que implicou queda do PIB (1,9 %), inflação em 2012 e inflação e recessão em 2015.
Segue-se uma história consabida, que começa com o golpe de 2016 e a eleição de Bolsonaro em 2018, e que insiste sua permanência entre nós, tornando contemporâneos o ontem e o hoje.
Mas a crise das democracias liberais também se instala quando governos de esquerda ou centro-esquerda (ou os socialdemocratas europeus) são dominados pelo neoliberalismo, que, num arcaísmo, é a pedra de toque das formações ocidentais, passando por cima de suas origens e compromissos político-populares.
Em nenhuma sociedade as consequências se fizeram esperar. Desde 2022 a primeira-ministra da Itália é a fascista Giorgia Meloni, do Fratelli d’Italia, e na Alemanha, governada por um partido socialdemocrata que abraçou o liberalismo econômico e o belicismo da OTAN, soçobra o gabinete de Olaf Scholz, enquanto avançam os partidos de direita e de extrema-direita, de extração neonazista, como o AfD (Alternativa para a Alemanha).
Nem a ascensão do bolsonarismo, nem o referendum que acaba de consagrar Donald Trump, podem significar a surpresa de um raio em céu azul. Trump é tão americano quanto a torta de maçã, e seus eleitores não são extraterrestres.
Esse retorno que só a nós surpreendeu guarda relação direta com o fracasso de Biden, e anuncia com pompa e circunstância os últimos vagidos da democracia liberal. Nos próximos anos teremos um império ainda mais próximo do Big Stick, mas certamente menos cínico, embora mais mentiroso.
Por muito tempo as principais lideranças das esquerdas brasileiras, oriundas ou não do partidão, confundiram determinismo histórico, que não é uma lei nem um dogma, como um destino traçado por Zeus: o comunismo passou a ser tido como uma fatalidade, seu advento independeria da ação humana.
Podíamos ficar quietos e tranquilos. O pretenso cientificismo revolucionário descambava, e descamba ainda, para o pensamento mágico, às vezes messiânico, e nos afasta da realidade concreta.
Principalmente nos afasta da militância, da organização das massas e da batalha ideológica. A que a classe dominante jamais renunciou.
A experiência da luta social, notadamente em seus aspectos mais trágicos, mostra que as mudanças históricas são processos sociais levados a cabo pelas grandes massas organizadas, a partir de um projeto revolucionário compreensível e que corresponde aos seus interesses.
Abandonamos a militância e a organização e a elevação do nível político das massas.
Jamais nos perguntamos se nossa visão de mundo correspondia ao Brasil real, e jamais nos perguntamos se nossas utopias correspondiam aos sonhos de nossa gente: proletariado transformado em precariado, camponeses sem terra e sem trabalho, trabalhadores desterrados das linhas de produção, multidões expulsas do campo e da cidade onde habitam seus socavões, e “ganham a vida” nos termos do “Deus dará”.
Parte de nossas organizações de esquerda, originalmente revolucionárias, entenderam que o projeto originário, embora reafirmado pelo fracasso do capitalismo, era, porém, um projeto de um futuro a perder de vista, inevitável ainda, mas remoto.
A alternativa foi adaptar projeto e meios de sobrevivência às condições concretas do projeto político-eleitoral pautado pela classe dominante. As veleidades revolucionárias cederam prioridade à política real.
O senador Bernie Sanders, líder socialista, é crítico contundente da hegemonia política e econômica e militar dos EUA. Sua lucidez e sua coragem lembram Noam Chomsky, fonte da resistência intelectual de nossos dias.
Em declaração recentemente divulgada, ele explica porque a classe trabalhadora abandonou o Partido Democrata, de Biden e Kamala: “Primeiro, [o Partido democrata] perdeu o apoio da classe trabalhadora branca e, agora, também de trabalhadores latinos e negros. Enquanto a liderança Democrata defende o statu quo, o povo americano está furioso e quer mudanças. E eles estão certos”.
Ouso enxergar lições a serem colhidas, quando nos damos ao trabalho de identificar as consequências da deserção ideológica de governos originalmente de esquerda, esmagados pelas contingências históricas que impõem ao vitorioso uma correlação de forças adversas ao seu programa. O que nos faz presentes as angústias do presidente Lula em seu labirinto de hoje.
Antigo líder sindical, eleito por uma coalizão de centro-esquerda que compunha com setores da direita, o presidente se vê acossado pelas pressões da classe dominante (vivas em seu governo e em seu partido) para executar reformas neoliberais contra as quais sempre lutou.
Formam uma frente de ferro o mainstream do pensamento econômico, os procuradores do grande capital, o servilismo de nossas elites colonizadas: como alto-falante, a grande imprensa cada vez pior, exercendo seu papel de aparelho ideológico da classe dominante, proprietária de suas máquinas e de seu texto.
Volta à tona o pensamento mágico. O Banco Central doutrina que o pleno emprego (o sonho de qualquer democracia social que se preze) e o crescimento do salário mínimo são inflacionários, e decreta aumento de juros sem ter a quem dar satisfação.
E todos sabemos que a elevação dos juros aumenta o custo da dívida pública e inibe investimentos. Mas beneficia a banca, em São Paulo e em Walt Street.
E a Faria Lima, que se alimenta na especulação, promulga seu programa mínimo: redução de investimentos e gastos públicos – em país que precisa crescer, gerando e distribuindo renda. Um programa falso, sem base empírica, porquanto no contrapelo da história de países que lograram o crescimento e a distribuição de riqueza.
Vejamos quais os gastos públicos que a perversa classe dominante brasileira prescreve reduzir ou eliminar: o Bolsa Família, a previdência social, o índice de reajuste do salário mínimo, o Benefício de Prestação Continuada, o FGTS…
Nenhuma palavra sobre a imoralidade das emendas parlamentares, que, só este ano, representaram uma sangria de quase R$ 46 bilhões. Nenhuma palavra sobre as despesas do Poder Judiciário, um dos mais caros do mundo!
A Petrobras acaba de distribuir R$ 45 bilhões em dividendos, percebidos pelos acionistas sem pagar um só centavo de IR! E isso não espanta.
Entre janeiro e agosto, pelo menos R$ 98 bilhões foram transformados em incentivos tributários, beneficiando mais de mil empresas. Para a banca e seus porta-vozes, isso não é inflacionário, mas o reajuste do salário mínimo é.
Essa absurda renúncia fiscal, porém, é intocável, como intocável é o gasto, em 2023, de R$ 50 bilhões com os fardados inativos. E ninguém fala, no governo e fora dele, pensando em aumentar os ingressos, em introduzir a cobrança de Imposto de Exportação sobre as commodities, que independe de legislação.
Neste cenário desafiador, o governo Lula e as esquerdas em geral terminam a semana com dois trunfos a explorar: a belíssima mobilização da classe trabalhadora, encampada por PSOL e PT, pelo fim da desumana escala 6×1 (resultando em uma PEC que até setores da direita se veem instados a apoiar), e a trágica reedição do atentado do Riocentro, desta feita em plena Praça dos Três Poderes, que pode encerrar a pressão da extrema-direita e do ministro da Defesa por uma anistia aos golpistas do 8 de janeiro.
É preciso montar no cavalo que passa selado, inclusive para afastar as ameaças golpistas, perenes e multifacetadas.
***
O embate do trabalho com o capital –“A desconfiança é geral. O capital se retrai. O Brasil está às portas do Egito, e só os abolicionistas não querem ver. […] Acabem os abolicionistas a sua obra!”, alardeava, em 1884, o Diário do Brazil, assustado com o declínio do regime escravista.
Quase um século mais tarde, mais exatamente em 1962, O Globo expressava em letras garrafais em sua primeira página: “Considerado desastroso para o país um 13º salário”.
Ao longo do tempo, a autodenominada grande imprensa em nada mudou, e continua a serviço dos mesmos interesses da classe dominante: depois do engenho, o grande capital. E sempre detestando o país e seu povo.
Foi o que se viu na última semana, diante da mobilização pelo fim da escala 6×1, que trouxe as esquerdas de volta para um tema fundamental, que jamais deveriam ter abandonado: o conflito capital x trabalho.
Os jornalões e telejornais acionaram seus “especialistas”, dos mais rastaqueras aos mais requisitados, para repelir a proposta antiescravista, atestando-lhe “inviabilidade” e assim por diante.
O Estadão pede o fim da estabilidade no serviço público, e na Folha de S. Paulo, que recentemente se permitiu abrir espaço para que ninguém menos que Jair Bolsonaro discorresse sobre democracia, associações de empresários se queixaram de que, com a humanização do trabalho, “a conta não fecha”.
O candidato de Arthur Lira à presidência da Câmara também se manifestou, contrariado – mas a proposta seguiu, e virou PEC. Terão as placas tectônicas da política nacional se movimentado, anunciando o fim da pasmaceira do campo progressista?
*Roberto Amaral foi presidente do Partido Socialista Brasileiro (PSB) e ministro da Ciência e Tecnologia do governo Lula. É autor do livro História do presente – conciliação, desigualdade e desafios (Editora Expressão Popular e Books Kindle).
* Com a colaboração de Pedro Amaral
*Este texto não representa obrigatoriamente a opinião do Viomundo.
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