Roberto Amaral: Golpes e contragolpes, a longa história presente

Tempo de leitura: 7 min
Roberto Amaral: ''Congresso Nacional age contra a nação, a soberania popular o Estado'' Foto: Fabio Rodrigues-Pozzebom/ Agência Brasil

Golpes e contragolpes: a longa história presente

Por Roberto Amaral*

O golpe de Estado que está na origem das reflexões dos historiadores é o de César (49 a.C), detonando a república romana.

Mas, por certo, o evento que mais registro mereceria da ciência moderna é o de Luís Bonaparte que, ao dissolver a Assembleia Nacional, proclamou o segundo império francês e se fez imperador (1852). Golpe de Estado ainda vivo e estudado como modelo e espécie, graças ao texto clássico de Karl Marx.

Ambos os eventos, nada obstante a distância histórica, indicam um denominador comum que chega à contemporaneidade: o golpe de Estado se desenvolve, necessariamente, na intimidade do poder, e é quase sempre operado pelo Príncipe, ou em seu proveito.

E, como ilustra a rica contribuição da tragédia política brasileira, seja para eclodir ou efetivar-se, o bom êxito do golpe de Estado carecerá ora do apoio ativo, ora da sanção das forças armadas, como sancionado foi entre nós o golpe parlamentar de 2016, pai e mãe do que viveríamos até pelo menos janeiro de 2023 – desta feita, porém, com a intervenção direta do castro.

Antes, também entre nós, a proclamação da República, e mais tarde a implantação do Estado Novo por Getúlio Vargas e seus generais, já assinalavam o papel das forças armadas como sujeito, e, no evento de 15 de novembro de 1889, como sujeito único.

Em 1937, com o rompimento da ordem constitucional de pretensões liberais, o presidente que se fazia ditador dilatava seu poder pessoal, livrando-o das limitações com as quais o jungia o rito democrático.

A ilegalidade da dissolução do Congresso, porém, se legalizava e se legitimava com a efetividade do novo regime (garantida pela caserna), que, à revelia da soberania popular, ditou uma ordem constitucional própria, conhecida como a “Carta de 1937”.

Contra o Príncipe, e fora dos limites do poder, a conjura opera mediante o putsch, que conhecemos em 1935 e 1938, as rebeliões e a revolução, cujo radicalismo parece ter dificuldade de se aclimatar entre nós.

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A única exceção de insurgência vitoriosa, até aqui, foi o movimento de 1930, liderado por três oligarquias estaduais e um punhado de oficiais remanescentes do tenentismo. Era, pois, uma dissidência no íntimo da classe dominante, e assim resolvida segundo seus interesses.

Os demais levantes populares, insurreições ou revoltas, foram esmagados pela ordem.

Mas o golpe de Estado, movendo as peças do poder (e entre elas se destacam, quase sempre, as forças armadas), também se pode voltar contra o governante, cujo descarte não exige, necessariamente, alteração do regime.

Em agosto de 1954, sem fratura legal, foi deposto o presidente Getúlio Vargas (eleito em 1950), e, dez anos passados, nessa altura com ruptura da ordem constitucional, as forças armadas depuseram João Goulart, dando vida e consequência ao processo reacionário de 1955, qual seja, a tentativa de golpe liderada pelos ministros militares com vistas a impedir a posse de Juscelino Kubitscheck, frustrada por um contragolpe, também militar, o chamado “11 de novembro”, reação legalista do general Teixeira Lott, então ministro da Guerra, que assim se redimia de sua presença na conjuração contra Vargas.

A democracia mambembe seria salva, portanto, por uma dissidência entre generais, o que se repetiria na intentona de novembro de 2022, arquitetada a soldo de Jair Bolsonaro por generais, coronéis, majores e do almirante comandante da Marinha.

Não se diz, uma vez mais, que a história não se repete, apenas lembramos que entre nós ela é recorrente, principalmente na sua versão farsesca.

De qualquer forma, cumpre-nos festejar a divisão dos fardados. Toda vez que se unificam (como em 1937, 1954 e 1964) a democracia entra em transe; quando se dividem (como em 1955 e 1961 e em 2022), a ordem constitucional é preservada.

Muitas vezes os golpes são perdurantes. Do 1º de abril de 1964 decorreu o longo mandarinato militar que, embora vencido em 1985, faz presente, até aqui, a preeminência do poder das baionetas sobre a nação.

Baionetas e fuzis que sempre estiveram na domesticidade do poder, ao lado do grande capital e em conflito com o processo social que a caserna, prepotente, procura conter para assim impedir qualquer alteração do statu quo de que se faz guardiã, sem perguntar se a dominância do passado sobre o presente é a vontade da nação.

Daí a preferência dos quartéis pela repressão interna, recusado o papel de responsáveis pela soberania nacional, o único destino que em país de pretensões democráticas é outorgado às forças armadas.

Mesmo quando implica alteração de regime, o golpe de Estado não perde sua intimidade com o poder.

Somos, também na espécie, ricos em exemplos. A substituição do império arcaico pela república, em 1889, deve ser vista acima de tudo como um conflito entre um velho cabo de guerra estimado pela tropa e um gabinete já sem forças para governar, antecipando o esperado recesso do imperador, ancião e enfermo.

O país muda de regime, para continuar o mesmo.

Na sequência da Proclamação da República o marechal Floriano Peixoto, vice-presidente, recusa-se a convocar as eleições exigidas pela Constituição que jurara, e se senta na cadeira que o marechal Deodoro deixara vazia, ao ver fracassada sua tentativa de golpe mediante a dissolução do Congresso, aquele intento que Luís Bonaparte levara a cabo com sucesso.

Seguem-se as insurreições, os levantes e as tentativas de golpe nas querelas entre florianistas e os marinheiros de Custódio de Melo.

Nasce a República Velha para cair como despojo do movimento de 1930, trazendo já no ventre o Estado Novo, que encerra seus oito anos de arbítrio com a deposição de Vargas em 1945, para inaugurar a república de 1946 (que os militares assaltariam em 1964).

É a longa história presente.

Há os golpes parlamentares, em princípio levados a cabo sem rompimento da ordem constitucional; também nessa espécie é rica a contribuição brasileira.

Começamos no século XIX inaugurando o Império, para, na sequência do golpe de 1831 (que levou à renúncia de D. Pedro I e instalou o período regencial), conhecermos, em outubro de 1840, o golpe parlamentar chamado “da interpretação”, que declarou a maioridade de D. Pedro II aos 14 anos (a Constituição de 1823 ditava a maioridade aos 18 anos) e decretou o fim do período regencial.

Assim começamos e assim chegamos até aqui.

Em 1961, ante a renúncia de Jânio Quadros, que, como Deodoro, fracassara na tentativa de um golpe, os chefes militares liderados pelo então ministro da Guerra, general Odylio Denys, vetaram a posse do vice-presidente constitucional, João Goulart, reclamada por um verdadeiro levante popular, encabeçado pelo governador do Rio Grande do Sul, Leonel Brizola.

Do impasse surgiu a concordata, mediante a aprovação, pelo Congresso Nacional, de emenda constitucional que instituía o parlamentarismo, substituindo o presidencialismo sob o qual Jango havia sido eleito.

O golpe, como se vê, foi operado sem desrespeito às normas legais, e o contragolpe viria na mesma linha de legalidade, mediante a antecipação – pelo mesmo Congresso, e também por intermédio de emenda aprovada nos termos regimentais – da consulta plebiscitária que em 1963 enterraria o parlamentarismo de ocasião e restauraria o presidencialismo da tradição republicana, este que chega aos nossos dias, aos trancos e barrancos, doente e desfigurado.

Essa modalidade de golpe, a parlamentar, tomou curso no Brasil e jamais esteve tão vigente como nas duas últimas legislaturas, quando um Congresso ordinário vem, sistematicamente, como um insaciável Moloch, alimentando-se dos poderes que expropria do Executivo.

O Congresso brasileiro, com a composição política e a direção que a nação estarrecida conhece, desconstrói o regime presidencialista, filho da Constituição de 1891, renovado e assim legitimado em todas as constituições republicanas, e referendado pelos plebiscitos de 1963 (sob a Constituição de 1946) e 1993 (sob a Constituição de 1988).

O Congresso age contra a nação, a soberania popular e o Estado.

A isso devemos chamar de golpe de Estado, nada obstante a moldura constitucional, disfarce que não pode mais passar despercebido, e sem reação pelo país, nada obstante a omissão dos partidos, e da Ordem dos Advogados, silente em face de tantas e seguidas agressões à soberania popular.

A ciência política conhece, hoje, várias alternativas de regime de governo que giram em torno das modalidades-chave presidencialismo e parlamentarismo.

No vasto elenco das variáveis circulam experiências que procuram conciliar presidencialismo e parlamentarismo na busca de arranjos híbridos, cujo fito é acomodar a força do Executivo (própria do presidencialismo) com uma maior aproximação com a vontade geral, que, em tese, estaria mais próxima dos parlamentos.

No Brasil, um Congresso de representação e legitimidade mais do que discutíveis vem, sistematicamente, sobretudo ao se apoderar do Orçamento público, alterando as características do regime presidencialista.

Daí decorre, hoje, um regime político e um sistema de governo frankenstenianos, deformação que impede a ação do poder público, fragiliza o Estado e semeia em solo fértil a crise institucional na qual nos debatemos.

***

Desajuste financeiro I – Em que pesem os números positivos da economia, que nem os chamados jornalões podem varrer para debaixo do tapete, o Banco Central, independente do país e de seu povo, houve por bem subir a Selic para asfixiantes 12,25%, fazendo do Brasil o país com a segunda maior taxa de juros do mundo, atrás apenas da Turquia.

Até mesmo a Folha de S. Paulo, insuspeita como porta-voz da Faria Lima, noticiou que a alta da Selic pode inflar a dívida bruta em R$ 50 bilhões, nada menos que 70% da economia prevista pelo pacote austericida que o Governo, atendendo à banca, enviou ao Congresso.

Desajuste financeiro II – Para piorar, nada indica que a troca de comando na autoridade financeira trará maior responsabilidade social. Pelo contrário.

Eu sou você, amanhã – Chamada do Le Monde (9/12/2024, p. 9): “Na Argentina, a política orçamentária do presidente libertário fez a pobreza crescer, mas a inflação caiu”. Ou seja, lá como cá, é preciso aumentar a pobreza para deter a inflação, o objeto mantra do sistema.

Abutres à espreita – À crônica de horrores que o jornalismo econômico, sempre atento aos humores do dito “mercado”, nos submete diariamente, somou-se nos últimos dias um capítulo singularmente perverso.

A notícia é que a banca financeira se mostrou satisfeita não apenas com a alta da Selic, mas também com a internação do presidente Lula e as delicadas cirurgias a que foi submetido: a soma de fatores teria levado à queda do dólar e à alta da Bolsa.

“O mercado começa a especular que o pacote de corte de gastos pode ser aprovado com o Lula afastado. Se o Alckmin fica no lugar dele, fica mais fácil liberar esse pacote. Além disso, se discute quanto tempo o vice ficaria na presidência”, explicou um investidor, com a frieza de um homicida (FSP,11/12/2024).

*Roberto Amaral foi presidente do Partido Socialista Brasileiro (PSB) e ministro da  Ciência e Tecnologia do governo Lula. É autor do livro História do presente – conciliação, desigualdade e desafios (Editora Expressão Popular e Books Kindle).

* Com a colaboração de Pedro Amaral

*Este texto não representa obrigatoriamente a opinião do Viomundo.

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Comentários

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Zé Maria

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A Imprensa Neoliberal vive falando que os Governos Trabalhistas
‘devem cortar na própria carne’, mas é essa mesma Mídia Canalha
que tem de ‘cortar na própria carne’, expurgando jornalistas vis.

Aliás, as Cúpulas das Forças Armadas e dos Poderes Judiciário
e Legislativo também devem fazer essa “Necessária Autocrítica”.

.

Zé Maria

Desembargador Paranaense Morista Lavajatista diz que Bolsonarista
que Matou Aniversariante Petista em Foz do Iguaçu é que foi Vítima do
Homícidio Cometido em 2022

Afirmação ocorreu em Sessão de Julgamento de Habeas Corpus Impetrado
em favor do Réu na Primeira Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná

[ Reportagem: Henrique Rodrigues | Revista Fórum ]

O assassinato do Guarda Civil Municipal (GCM) Marcelo Arruda, ocorrido
em Foz do Iguaçu (PR), em julho de 2022, tornou-se um símbolo da violência
política do bolsonarismo e repercutiu em todo o Brasil.

Meses antes da eleição presidencial, Arruda, que era filiado ao PT,
fazia sua festa de aniversário de 50 anos num clube da cidade
paranaense e usava o presidente Lula como tema.

Foi então que o policial penal Jorge Guaranho, um fanático bolsonarista,
apareceu inconformado com a temática da comemoração e matou Arruda
com vários tiros.

Armada por ser GCM, a vítima ainda sacou sua pistola e conseguiu reagir
atingindo o extremista com alguns tiros, embora obolsonarista tenha sobrevivido.
Tudo foi filmado, desde o início, desde a área externa do salão de festas
até o desfecho trágico do lado de dentro do recinto, não deixando qualquer
dúvida sobre o que aconteceu.

Agora, mais de dois anos depois e de um imbróglio em torno do julgamento
do assassino, que deverá ser submetido a um Júri Popular em fevereiro do ano que vem, um desembargador do Tribunal de Justiça do Paraná saiu
com uma versão surreal e absolutamente divorciada da realidade do caso,
comprovada pelas imagens de câmeras de segurança e por testemunhas,
inclusive da parte da própria esposa de Guaranho.

o Desembargador Benjamim Acácio de Moura e Costa, do TJPR, disse
numa audiência sobre o crime que a verdadeira vítima foi o policial penal
bolsonarista, o mesmo que invadiu a festa, insultou e disparou mortalmente
contra Arruda.

O absurdo foi proferido numa sessão ocorrida em julho deste ano, que
deveria ater-se apenas ao Julgamento do Pedido de Habeas Corpus
do Réu Preso, mas que acabou com o desembargador tornando-se alvo
de uma Denúncia no Conselho Nacional de Justiça, uma vez que a posição
externada pelo magistrado não mantém qualquer conexão com a realidade
dos fatos observados no crime e ele extrapolou sua função naquela situação, na qual deveria apenas deferir ou indeferir a liberdade do réu preso.

Numa extensa fala de quase 20 minutos, o desembargador afirma
o tempo todo que Arruda é que seria a pessoa de natureza violenta,
diz que o assassino bolsonarista que invadiu a festa armado e atirou
contra o aniversariante após provocá-lo seria então a vítima, e que
em sua visão o correto seria o trancamento da ação penal e a alegação
de legítima defesa por parte de Guaranho, algo completamente sem sentido
diante do ocorrido.

Moura e Costa ainda afirma que o policial penal, que teria ficado com sequelas por conta dos tiros que levou, seria hoje um “boca mole” (alguém
com problemas neurológicos e com dificuldades motoras), e que o
bolsonarista até perdeu “sua virilidade” em decorrência das lesões sofridas
pelos disparos do GCM que apenas reagiu ao ataque covarde do extremista.
Moura e Costa também chegou ao ponto de sugerr que a Polícia Civil do
Paraná instaurasse um inquérito para investigar a viúva de Arruda e outro
envolvido no caso.

“Era para o desembargador julgar somente o Habeas Corpus solicitado
pelos advogados do Guaranhos porém ele abriu o vídeo dos fatos e fez
sua própria narrativa…
Diante do que foi proferido pelo desembargador numa ação de um pedido
de habeas corpus para o autor da morte do Marcelo Arruda, nós da família
ficamos extremamente consternados com as palavras do magistrado,
uma vez que ele confirma que o Marcelo é responsável pela própria morte.
Um absurdo!
A medida tomada pelo desrespeito à vítima e à família que tivemos o Marcelo
tirado de nós por uma pessoa inconsequente e extremamente violenta…
A verbalização das convicções do magistrado não se baseou nas ricas
provas materiais que estão na ação penal, desconsiderando o trabalho
de diversos profissionais [Policiais, Peritos, Promotores, Juízes, Juristas …].
Além disso, ele ultrapassa os limites jurídicos uma vez que ação penal
deverá ser julgada pelo Povo numa Tribuna popular, está marcada para 10
e 11 de fevereiro de 2025”, disse à Fórum a viúva de Marcelo Arruda,
Pâmela Suellen Silva.

Apesar da posição do juiz, a Ação Penal não foi arquivada e o julgamento
pelo Júri foi mantido.

O Réu, no entanto, recebeu autorização da 1ª Turma do TJ-PR
para cumprir prisão domiciliar enquanto aguarda o julgamento
pelo Tribunal do Júri marcado para 10 e 11 de fevereiro de 2025.

https://revistaforum.com.br/brasil/2024/12/16/desembargador-diz-que-bolsonarista-que-matou-petista-em-2022-que-foi-vitima-171086.html
https://www.pragmatismopolitico.com.br/2024/12/desembargador-sai-defesa-bolsonarista-matou-petista-festa-aniversario.html

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