Golpes e contragolpes: a longa história presente
Por Roberto Amaral*
O golpe de Estado que está na origem das reflexões dos historiadores é o de César (49 a.C), detonando a república romana.
Mas, por certo, o evento que mais registro mereceria da ciência moderna é o de Luís Bonaparte que, ao dissolver a Assembleia Nacional, proclamou o segundo império francês e se fez imperador (1852). Golpe de Estado ainda vivo e estudado como modelo e espécie, graças ao texto clássico de Karl Marx.
Ambos os eventos, nada obstante a distância histórica, indicam um denominador comum que chega à contemporaneidade: o golpe de Estado se desenvolve, necessariamente, na intimidade do poder, e é quase sempre operado pelo Príncipe, ou em seu proveito.
E, como ilustra a rica contribuição da tragédia política brasileira, seja para eclodir ou efetivar-se, o bom êxito do golpe de Estado carecerá ora do apoio ativo, ora da sanção das forças armadas, como sancionado foi entre nós o golpe parlamentar de 2016, pai e mãe do que viveríamos até pelo menos janeiro de 2023 – desta feita, porém, com a intervenção direta do castro.
Antes, também entre nós, a proclamação da República, e mais tarde a implantação do Estado Novo por Getúlio Vargas e seus generais, já assinalavam o papel das forças armadas como sujeito, e, no evento de 15 de novembro de 1889, como sujeito único.
Em 1937, com o rompimento da ordem constitucional de pretensões liberais, o presidente que se fazia ditador dilatava seu poder pessoal, livrando-o das limitações com as quais o jungia o rito democrático.
A ilegalidade da dissolução do Congresso, porém, se legalizava e se legitimava com a efetividade do novo regime (garantida pela caserna), que, à revelia da soberania popular, ditou uma ordem constitucional própria, conhecida como a “Carta de 1937”.
Contra o Príncipe, e fora dos limites do poder, a conjura opera mediante o putsch, que conhecemos em 1935 e 1938, as rebeliões e a revolução, cujo radicalismo parece ter dificuldade de se aclimatar entre nós.
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A única exceção de insurgência vitoriosa, até aqui, foi o movimento de 1930, liderado por três oligarquias estaduais e um punhado de oficiais remanescentes do tenentismo. Era, pois, uma dissidência no íntimo da classe dominante, e assim resolvida segundo seus interesses.
Os demais levantes populares, insurreições ou revoltas, foram esmagados pela ordem.
Mas o golpe de Estado, movendo as peças do poder (e entre elas se destacam, quase sempre, as forças armadas), também se pode voltar contra o governante, cujo descarte não exige, necessariamente, alteração do regime.
Em agosto de 1954, sem fratura legal, foi deposto o presidente Getúlio Vargas (eleito em 1950), e, dez anos passados, nessa altura com ruptura da ordem constitucional, as forças armadas depuseram João Goulart, dando vida e consequência ao processo reacionário de 1955, qual seja, a tentativa de golpe liderada pelos ministros militares com vistas a impedir a posse de Juscelino Kubitscheck, frustrada por um contragolpe, também militar, o chamado “11 de novembro”, reação legalista do general Teixeira Lott, então ministro da Guerra, que assim se redimia de sua presença na conjuração contra Vargas.
A democracia mambembe seria salva, portanto, por uma dissidência entre generais, o que se repetiria na intentona de novembro de 2022, arquitetada a soldo de Jair Bolsonaro por generais, coronéis, majores e do almirante comandante da Marinha.
Não se diz, uma vez mais, que a história não se repete, apenas lembramos que entre nós ela é recorrente, principalmente na sua versão farsesca.
De qualquer forma, cumpre-nos festejar a divisão dos fardados. Toda vez que se unificam (como em 1937, 1954 e 1964) a democracia entra em transe; quando se dividem (como em 1955 e 1961 e em 2022), a ordem constitucional é preservada.
Muitas vezes os golpes são perdurantes. Do 1º de abril de 1964 decorreu o longo mandarinato militar que, embora vencido em 1985, faz presente, até aqui, a preeminência do poder das baionetas sobre a nação.
Baionetas e fuzis que sempre estiveram na domesticidade do poder, ao lado do grande capital e em conflito com o processo social que a caserna, prepotente, procura conter para assim impedir qualquer alteração do statu quo de que se faz guardiã, sem perguntar se a dominância do passado sobre o presente é a vontade da nação.
Daí a preferência dos quartéis pela repressão interna, recusado o papel de responsáveis pela soberania nacional, o único destino que em país de pretensões democráticas é outorgado às forças armadas.
Mesmo quando implica alteração de regime, o golpe de Estado não perde sua intimidade com o poder.
Somos, também na espécie, ricos em exemplos. A substituição do império arcaico pela república, em 1889, deve ser vista acima de tudo como um conflito entre um velho cabo de guerra estimado pela tropa e um gabinete já sem forças para governar, antecipando o esperado recesso do imperador, ancião e enfermo.
O país muda de regime, para continuar o mesmo.
Na sequência da Proclamação da República o marechal Floriano Peixoto, vice-presidente, recusa-se a convocar as eleições exigidas pela Constituição que jurara, e se senta na cadeira que o marechal Deodoro deixara vazia, ao ver fracassada sua tentativa de golpe mediante a dissolução do Congresso, aquele intento que Luís Bonaparte levara a cabo com sucesso.
Seguem-se as insurreições, os levantes e as tentativas de golpe nas querelas entre florianistas e os marinheiros de Custódio de Melo.
Nasce a República Velha para cair como despojo do movimento de 1930, trazendo já no ventre o Estado Novo, que encerra seus oito anos de arbítrio com a deposição de Vargas em 1945, para inaugurar a república de 1946 (que os militares assaltariam em 1964).
É a longa história presente.
Há os golpes parlamentares, em princípio levados a cabo sem rompimento da ordem constitucional; também nessa espécie é rica a contribuição brasileira.
Começamos no século XIX inaugurando o Império, para, na sequência do golpe de 1831 (que levou à renúncia de D. Pedro I e instalou o período regencial), conhecermos, em outubro de 1840, o golpe parlamentar chamado “da interpretação”, que declarou a maioridade de D. Pedro II aos 14 anos (a Constituição de 1823 ditava a maioridade aos 18 anos) e decretou o fim do período regencial.
Assim começamos e assim chegamos até aqui.
Em 1961, ante a renúncia de Jânio Quadros, que, como Deodoro, fracassara na tentativa de um golpe, os chefes militares liderados pelo então ministro da Guerra, general Odylio Denys, vetaram a posse do vice-presidente constitucional, João Goulart, reclamada por um verdadeiro levante popular, encabeçado pelo governador do Rio Grande do Sul, Leonel Brizola.
Do impasse surgiu a concordata, mediante a aprovação, pelo Congresso Nacional, de emenda constitucional que instituía o parlamentarismo, substituindo o presidencialismo sob o qual Jango havia sido eleito.
O golpe, como se vê, foi operado sem desrespeito às normas legais, e o contragolpe viria na mesma linha de legalidade, mediante a antecipação – pelo mesmo Congresso, e também por intermédio de emenda aprovada nos termos regimentais – da consulta plebiscitária que em 1963 enterraria o parlamentarismo de ocasião e restauraria o presidencialismo da tradição republicana, este que chega aos nossos dias, aos trancos e barrancos, doente e desfigurado.
Essa modalidade de golpe, a parlamentar, tomou curso no Brasil e jamais esteve tão vigente como nas duas últimas legislaturas, quando um Congresso ordinário vem, sistematicamente, como um insaciável Moloch, alimentando-se dos poderes que expropria do Executivo.
O Congresso brasileiro, com a composição política e a direção que a nação estarrecida conhece, desconstrói o regime presidencialista, filho da Constituição de 1891, renovado e assim legitimado em todas as constituições republicanas, e referendado pelos plebiscitos de 1963 (sob a Constituição de 1946) e 1993 (sob a Constituição de 1988).
O Congresso age contra a nação, a soberania popular e o Estado.
A isso devemos chamar de golpe de Estado, nada obstante a moldura constitucional, disfarce que não pode mais passar despercebido, e sem reação pelo país, nada obstante a omissão dos partidos, e da Ordem dos Advogados, silente em face de tantas e seguidas agressões à soberania popular.
A ciência política conhece, hoje, várias alternativas de regime de governo que giram em torno das modalidades-chave presidencialismo e parlamentarismo.
No vasto elenco das variáveis circulam experiências que procuram conciliar presidencialismo e parlamentarismo na busca de arranjos híbridos, cujo fito é acomodar a força do Executivo (própria do presidencialismo) com uma maior aproximação com a vontade geral, que, em tese, estaria mais próxima dos parlamentos.
No Brasil, um Congresso de representação e legitimidade mais do que discutíveis vem, sistematicamente, sobretudo ao se apoderar do Orçamento público, alterando as características do regime presidencialista.
Daí decorre, hoje, um regime político e um sistema de governo frankenstenianos, deformação que impede a ação do poder público, fragiliza o Estado e semeia em solo fértil a crise institucional na qual nos debatemos.
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Desajuste financeiro I – Em que pesem os números positivos da economia, que nem os chamados jornalões podem varrer para debaixo do tapete, o Banco Central, independente do país e de seu povo, houve por bem subir a Selic para asfixiantes 12,25%, fazendo do Brasil o país com a segunda maior taxa de juros do mundo, atrás apenas da Turquia.
Até mesmo a Folha de S. Paulo, insuspeita como porta-voz da Faria Lima, noticiou que a alta da Selic pode inflar a dívida bruta em R$ 50 bilhões, nada menos que 70% da economia prevista pelo pacote austericida que o Governo, atendendo à banca, enviou ao Congresso.
Desajuste financeiro II – Para piorar, nada indica que a troca de comando na autoridade financeira trará maior responsabilidade social. Pelo contrário.
Eu sou você, amanhã – Chamada do Le Monde (9/12/2024, p. 9): “Na Argentina, a política orçamentária do presidente libertário fez a pobreza crescer, mas a inflação caiu”. Ou seja, lá como cá, é preciso aumentar a pobreza para deter a inflação, o objeto mantra do sistema.
Abutres à espreita – À crônica de horrores que o jornalismo econômico, sempre atento aos humores do dito “mercado”, nos submete diariamente, somou-se nos últimos dias um capítulo singularmente perverso.
A notícia é que a banca financeira se mostrou satisfeita não apenas com a alta da Selic, mas também com a internação do presidente Lula e as delicadas cirurgias a que foi submetido: a soma de fatores teria levado à queda do dólar e à alta da Bolsa.
“O mercado começa a especular que o pacote de corte de gastos pode ser aprovado com o Lula afastado. Se o Alckmin fica no lugar dele, fica mais fácil liberar esse pacote. Além disso, se discute quanto tempo o vice ficaria na presidência”, explicou um investidor, com a frieza de um homicida (FSP,11/12/2024).
*Roberto Amaral foi presidente do Partido Socialista Brasileiro (PSB) e ministro da Ciência e Tecnologia do governo Lula. É autor do livro História do presente – conciliação, desigualdade e desafios (Editora Expressão Popular e Books Kindle).
* Com a colaboração de Pedro Amaral
*Este texto não representa obrigatoriamente a opinião do Viomundo.
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