Katarina Peixoto: “O que os unifica é a urgência de aniquilar a esquerda”
Tempo de leitura: 6 minUma imagem do Brasil, hoje: a democracia como objeto de juízo penal
por Katarina Peixoto, de Porto Alegre, com fotos de Adriana Franciosi
O uso de palavras para tentar descrever o que está acontecendo em Porto Alegre é um expediente de grande limitação.
Não se compara às limitações expressas nesta triste manhã, pelo advogado da sentença de primeiro grau, que acompanhamos pela internet.
Como traduzir as expressões de mais de 80 mil pessoas (segundo as imagens e tecnologia dos drones), de cores, sotaques, origens, classes e interesses variados, na tarde de calor, umidade infernal e Lula, em Porto Alegre, na véspera do julgamento que pretende banir a esquerda da vida representativa do Brasil?
Lá pelas tantas, Ana Cañas, linda, entoou o bêbado e o equilibrista a capela, e o céu começou a ficar azul, de novo, antes de Lula falar.
Lembrei de uma frase de papel de carta adolescente, antes de 1989, em que repetíamos frases de efeito nos cadernos dos amigos do colégio, nas paredes dos quartos, nas conversas cheias de esperança: “é incrível a força que as coisas parecem ter, quando elas precisam acontecer”.
Só não é mais incrível que a mídia familiar brasileira, assumindo o seu papel na agenda de destruição do país, sem qualquer pudor, ao esconder a multidão que se deslocou para o centro de Porto Alegre para defender o direito de Lula candidatar-se.
Não há espaços para surpresa, nem para o acaso, em contextos assim, de extrema determinação.
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Sabemos que estamos, como lembrou o grande jurista italiano Luigi Ferrajoli, diante da mais espetacular “restauração antidemocrática” da história do Brasil, este país cuja direita só chegou ao poder democraticamente duas vezes, em um século, quer dizer, em que a direita é golpista, desde sempre.
A mídia familiar, o seu braço de propaganda e guerra de propaganda, disse hoje que Lula, ontem, fez um discurso político.
Decerto, inspirada pela criação do juiz de primeira instância de Curitiba, esperava-se de Lula, o gourmet, que fizesse, ontem, um discurso sobre a harmonização de vinhos com crustáceos, como se pode inferir, já que estamos no universo dos atos indeterminados, uma expressão equivalente, em termos semânticos, ao círculo quadrado que descansa agitado.
Coisas da exceção, é preciso se acostumar com as trevas, para aprender a lidar com o seu tamanho mindinho, feroz e ilegítimo.
Muitas pessoas estavam no palco, inclusive, Raduan Nassar, que veio com Lula para dizer a nós e a quem quiser ver, que ele está com Lula, de consciência tranquila.
No palco, Requião nos lembrou que não estávamos em um comício, no que foi seguido por Stédile, com um diagnóstico que estava de fato ocorrendo ali, e era tão difícil para nós identificarmos, dada a imensidão.
“O que estamos fazendo aqui é reunir o nosso time, para traçar a nossa tática. Nós queremos jogar e precisamos garantir o nosso centroavante na partida, disse, pegando a mão do Lula. Os nossos adversários não são os juízes que estão nesse tribunal. São o capital financeiro e as oligarquias deste país. São o Bradesco e o Itaú, que estão enchendo os cofres com este golpe, são as petroleiras estadunidenses, que bancaram o golpe e estão levando o nosso petróleo”.
O jogo não é jogado no tribunal, mas nas ruas, disse Stédile, e se chama luta de classes.
Meio esmagada entre militantes da Frente Amplio uruguaia e estudantes da UBES, com uma faixa que ninguém os deixava subir, tadinhos, escutei Stédile e me lembrei da fala de Raul Sendic, na segunda à tarde.
Ele, que renunciou depois de acusado de usar mal o cartão corporativo, pela mídia, disse que um dos balanços que a esquerda latino americana que participou das experiências de governo do último período tinha a ver com a nossa incapacidade de voltar a demanda por responsabilização e distribuição dos verdadeiros donos do poder.
Ele disse que, quando era vice-presidente do Uruguai, os governos eram cada vez mais cobrados e responsabilizados.
Somos insaciáveis, observou, mas não é só isso. O preço das terras e a tributação das riquezas e heranças seguiram intactas e ninguém jamais cobrou dos donos de terra e de heranças, no Uruguai, que eles pagassem por alguma coisa ou respondessem por suas escolhas e atos.
Esse problema tem de ser enfrentado, porque há uma questão perceptiva aí, muito importante, lembrou Sendic.
Esse processo de destruição que está em curso no Brasil é uma oportunidade de reconhecer essa perspectiva.
“Eu me sinto importante quando me dou conta que a única proposta deles, que deram o golpe, é me derrotar. Eles não têm um projeto para o Brasil”.
O que os unifica, de fato, é a urgência de aniquilar a esquerda.
E o grau de incerteza, fabulação e instabilidade que o TRF4 está disposto a introduzir na jurisprudência brasileira pode instaurar um ambiente de terror na administração pública e na agenda de decisão e justificação de ações públicas, no Brasil.
A Dilma pegou o microfone e nos deu de presente, sem perceber, uma amostra extremamente clara do que foi o seu governo e do que ela é.
No meio do seu discurso, sempre na pedagogia de denunciar, objetivamente, os passos golpistas, o elo de continuidade entre o seu afastamento ilegal e o banimento de Lula do jogo eleitoral, ela olha para um canto da multidão e diz: “Tem uma pessoa passando mal ali, por favor, abram espaço para a ajuda chegar”.
Ela calou uns segundos, olhando fixamente, e continuou, para nós, o informe: “Ela já está sendo atendida. Tião Vianna, o nosso senador, está dando atendimento”.
Apontou o dedo e explicou: “Ele é médico”.
Ela continuou o seu discurso, um pouco abalada, mas continuou. E disse que o plano B não existe, que o Lula é o plano A, o plano B e o Plano C, “nosso”, que não faz sentido denunciar o processo golpista e aceitar a sua agenda condenatória.
Brincamos entre nós: “só faltou a Dilma perguntar ao Tião Vianna se ele tinha recuperado a paciente a contento”.
Então Lula pegou o microfone e disse, em tom emotivo, após observar que a única agenda da direita brasileira consiste em destruí-lo, tirando-o do jogo.
“Eles sabem que nós temos a força que temos porque nós sabemos cuidar do povo, nós é que nos preocupamos com isso”.
E começou a falar dos catadores de papel que recebeu, certa feita, no Palácio do Planalto, dos nomes e das histórias dos filhos desses catadores, alguns alunos universitários, via PROUNI, Lula reiterou o seu compromisso com a ascensão dos desvalidos e, olhando para Manuela D’Ávila, pré-candidata do PCdoB à presidência, disse, em tom de desabafo, que esperava o dia, ansiosamente, em que a esquerda estaria reunida, em torno de uma só agenda, para o país.
Uma só agenda para o país.
É algo mais que estar junto pelas regras do jogo, como se está agora, e parece ser algo que as pessoas, aos milhares, aqui em Porto Alegre, abraçariam sem dificuldade.
É impossível que as 80 mil pessoas sejam todas filiadas, sindicalizadas e ligadas a movimento.
Ontem, pela primeira vez em dois anos, havia muita gente das classes médias, casais, servidores públicos, médicos, médicas, pessoas que não participavam das marchas anteriores.
Não havia palavras de ordem em suas bocas, mas elas estavam ali, marchando.
Era como se sua presença nos dissesse: sabemos aonde essa história pode nos levar.
Não nos alinharemos com a repetição das tragédias.
E havia também muita gente jovem. Um lufar de gurizada com clareza de que estão fazendo história.
A cidade está recebendo os militantes com alegria, o comércio dinamizado, e muita gente assustada. De onde saiu tanta gente, se Lula é um bandido?
Como é que em um shopping de Porto Alegre uma praça da alimentação lotada cantarola “Olê, olê, olê, olá, Lulá, Lula lá”, enquanto Gebran comete o seu relatório, anunciando provas incapazes de sair da condição precária de indício?
Como se vai chegar a um termo, daqui para a frente?
Conviveremos com a figura do ato de ofício indeterminado, como elemento fundamental na imputação de atos delituosos, no serviço público?
Conviveremos com a invenção de um conceito de “propriedade atribuída”?
Gebran disse que “o processo penal não é um problema para a democracia”, dando provas de que, para si, o modo como o estado fundamenta e justifica e apura a culpabilidade de cidadãos e cidadãs não diz respeito ao que ele considera democrático.
Segundo o TRF4, há um problema de financiamento que “nos faz questionar o real papel da democracia”.
O real papel da democracia é objeto de juízo penal e os juízes a dizerem que o processo penal, o termômetro do estado das artes da democracia, em boa teoria e história do pensamento político, não tem a ver com a democracia.
Lula começou falando, ontem, dizendo que não comentaria o que iria a julgamento, porque seus advogados estariam fazendo isso.
Em seguida, para começar o seu discurso, afirmou: “mas eu tenho vocês”.
A imagem possível é esta: a democracia está no banco dos réus, com o nome de Luís Inácio Lula da Silva, julgado com base em concatenação de indícios, “informações jornalísticas” e outras figuras vestidas judicialmente, afirmam que a “lei é para todos”, com se nesse esforço de fundamentação houvesse espaço para o cinismo.
Não é a democracia que tem até aqui a pena de 12 anos, bem entendido. É Lula.
A democracia, por ora nomeada, caberá ser determinada pelos juízes, parecem crer os membros do estamento mais opaco, remunerado assimetricamente e sem a mais elementar accountability.
Este abismo está começando a ser percebido somente agora, para muita gente.
Enquanto termino este texto, um desembargador acredita que julga delitos, tecendo considerações sobre como se deve governar.
No terreno das impossibilidades, nada está determinado, como vai sem dizer.
O dia, e as noites, serão longos.
Comentários
Gn
80 mil… Afffff a esquerda está pagando o preço por essas mentiras descaradas e pelas bravatas, todo dia vinha falando sobre guerra civil e o povo se rebelando e olha só a realidade pós julgamento: ruas vazias!
Dirceu
Esquerda burra,desunida e que não aprendeu nada com a história= condenação de Lula.
Dirceu
O grande problema do nosso país é que continuamos tendo uma esquerda que é burra pra cacete,desunida,e não consegue aprender porcaria nenhuma com a história. Diante disso não politiza as grandes massas populares que vivem completame alienadas da realidade do país e não conseguem enfrentar a direita fascista em conluio com os Norte Americanos. Democracia?? Só até a hora que os Yankees e os ricaços no Brasil quiserem deixar.
Cazzete
O Golpe contra a Dilma tem 4 objetivos:
1 – Tornar a mão-de-obra brasileira tão barata quanto a indiana
2 – Destruir o valor dos ativos brasileiros para serem comprados a preço de banana pelas empresas dos EUA
3 – Tirar o Brasil do esquema China-Rússia de abandono do dólar como moeda de reserva
4 – Fazer o Brasil voltar a ser apenas uma colônia de exportação de matéria-prima e produtos agrícolas
Como não podem entrar aqui e bombardear tudo como fazem no OM e Norte da África, simplesmente colocam representantes seus no poder por meio do chamado “golpe branco” e esses representantes passam então a fazer o que é necessário a venda dos ativos latino americanos às empresas dos EUA.
E não pensem que seja só aqui.
Na Europa, os EUA estão processando tudo quanto é empresa para que depois do pagamento de multas essas fiquem fragilizadas e possam ser tomadas por empresas murikanas. Claro que esses processos todos são julgados por juízes murikanos.
https://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Politica/Em-nome-da-lei-americana-u226/4/39034
“Empresas europeias pagaram cerca de US$ 40 bilhões à justiça dos EUA, nos últimos anos, decorrente de multas por desrespeito a sanções estabelecidas por Washington contra determinados Estados, ou seja, o poder imperial norte-americano desenvolve mecanismos cada vez mais eficazes para aplicar suas leis fora do próprio território.A evolução das tecnologias e a financeirização da economia deram a Washington os meios técnicos para levar a cabo essa ofensiva ideológica.”
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