Pedro Augusto Pinho: Não existe democracia sem Estados Nacionais

Tempo de leitura: 7 min

Democracia não é liberalismo e não existe sem Estados Nacionais

Por Pedro Augusto Pinho*

Introibo ad altare Dei

O uso de certas palavras formou um dicionário que o jornalista Millôr Fernandes (1923-2012) denominou “Novocabulário – Uma nova interpretação do sentido das palavras”, que hoje encontra amplo uso entre todos, especialmente os políticos que, com o neoliberalismo, o expandiram enormemente.

Também encontrou a colaboração da hegemonia das mídias, dominando a comunicação, com destaque para a virtual, de poucas mãos devido à sofisticação e ao custo do controle das “plataformas”, e pelo baixo nível das discussões cotidianas em todas as áreas do conhecimento.

Notícia recente, a ser confirmada, trata da “reforma dos currículos” das escolas na Ucrânia, promovendo a “idiotização” das crianças. Este objetivo não é recente, porém fiquemos num contemporâneo do carioca Millôr, o italiano Carlo Cipolla (1922-2000).

Já começa pelo uso da letra M, entre os dois nomes de Cipolla, que não consta da certidão de batismo, como circula que Millôr é Milton, registrado por escrivão de péssima caligrafia.

Dos mais conhecidos trabalhos de Carlo Cipolla, professor e historiador econômico, está “Allegro ma non tropo” (Il Mulino, Bolonha, 1988), onde constam as cinco leis da estupidez humana.

Registro-as textualmente como está na obra de Cipolla:

1 – Sempre e inevitavelmente, cada um de nós subestima o número de indivíduos estúpidos que há no mundo;

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2 – A probabilidade de que uma determinada pessoa seja estúpida é independente de qualquer outra característica dela mesma;

3 – Uma pessoa é estúpida se ela causa um dano a outra ou a um grupo sem obter nenhum benefício para si, ou mesmo sofrendo prejuízo;

4 – As pessoas não estúpidas subvalorizam sempre o potencial nocivo das pessoas estúpidas; esquecem constantemente que, em qualquer momento e lugar e em qualquer circunstância, tratar ou associar-se com indivíduos estúpidos constitui inevitavelmente um custoso erro; e

5 – A pessoa estúpida é o tipo de pessoa mais perigosa que existe.

Também temos no Brasil, um jovem juiz de direito e professor, Rubens Casara, que se dedicou a estudar o idiota.

A bem da verdade, o idiota quase sempre tem a arrogância de um comentarista político das redes de televisão, o que não se vê nos estúpidos.

Mas Casara trata de “A Construção do Idiota; o processo de idiossubjetivação” (da Vinci Livros, RJ, 2024), o “processo de formatação de sujeitos que têm por objetivo a construção de indivíduos egoístas, incapazes de reconhecer a importância da coletividade e que negam a possibilidade de uma esfera comum, isto é, que diga respeito a todos”.

Prossegue Casara, na obra citada, que na Grécia clássica os idiotas eram “aquelas pessoas incapazes de um trabalho coletivo, de reconhecimento do comum ou de uma atuação pública. A polis nunca foi objeto de atenção do idiota. A política é um fenômeno ligado ao coletivo; o idiota, por definição, é um ser político que detesta a política e tende a não compreender o uso político que dele é feito”.

O idiota é um privatista, do “mercado”, e acaba agindo como uma pessoa perigosa, como o estúpido de Cipolla.

O neoliberalismo está conosco e entre nós

Como a cascavel, o neoliberalismo vai se aproximando das populações, pela doutrinação insidiosa nas mídias, pela avareza na distribuição de bens indispensáveis, como a energia, culminando na picada mortal da falta de emprego e salário. O infeliz se entrega.

Após a “ditadura” veio a “redemocratização”, ou a “empulhação”?

Volto a Rubens Casara, agora em obra anterior, “Bolsonaro O Mito e o Sintoma” (Editora Contracorrente, SP, 2020):

“Em 1985, Jürgen Habermas publicou na Alemanha um livro intitulado ‘A nova obscuridade – pequenos artigos políticos’. Dentro do projeto de enfrentamento político e teórico das ameaças à democracia, o autor procurou refletir sobre as tensões e os problemas de um período marcado por uma crise do Estado social, permanências de um passado autoritário, políticas de rearmamento e repressões policiais a manifestações e protestos públicos. Todos esses sintomas do que Habermas chamou de ‘nova obscuridade’ estão presentes e potencializados no Brasil de hoje e são explorados pelos ideólogos do bolsonarismo”.

Porém, nos permitimos uma divergência com o mestre Rubens Roberto Rebello Casara. As identidades nacionais sempre parecem fantasias, maiores ou menores do que o tamanho dos que as vestem; ficam ridículas, quando importadas.

O Brasil ainda possui característica que deixou a Europa, ao menos por uns trezentos anos: a escravidão.

Ainda hoje vista nas empregadas domésticas, em recantos sombrios das casas, naqueles sem proteção do trabalho, fingindo-se de microempreendedores individuais, ou, descaradamente, sendo obrigados a adquirir ou, de algum modo, se responsabilizar por todos instrumentos indispensáveis para o próprio trabalho, como os ubers.

A saída dos governos militares para a “redemocratização” foi tão farsante que ainda hoje gera manifestações incongruentes sobre aqueles 21 anos, diferentes em cada governo, que teve início com a ação dos Estados Unidos da América (EUA), em 1964 (embaixador Lincoln Gordon, coronel Vernon A. Walters, policiais Dan Mitrione e Lauren J. Goin) e concluiu, em 1985, com o domínio das finanças apátridas, representadas pelas diversas alterações que aumentaram o rendimento e o poder do capital estrangeiro no Brasil, especialmente na área tecnológica.

Pesquisa realizada em 1991 pela Confederação Nacional da Indústria (CNI) para conhecer o conceito dos empresários entre os brasileiros, pelo sistema de múltipla escolha, teve os maiores percentuais em: os lucros são utilizados para o bem-estar próprio e dos familiares (79%), em especulação bancária e em expansão dos negócios, ambas com 75%. Já para geração de emprego houve 54% de respostas e 34% para “usados para melhores condições de trabalho”.

Ruben Bauer Naveira (“Uma Nova Utopia para o Brasil; três guias para sairmos do caos”, edição do autor, Brasília, 2016), logo no início do livro já se identifica: “democracia, só direta, o resto é elitismo”.

E desenvolve: “O que se chama ‘democracia’ representativa na verdade não passa da aplicação de um princípio democratizante – o sufrágio universal – a um sistema elitista muitos séculos mais antigo, a representação. Ao longo da Idade Média prevaleceu o chamado direito divino dos reis, em que o poder absolutista do rei era legitimado enquanto expressão da vontade de Deus, e assim aceitava-se que a vontade pessoal do rei correspondesse ao interesse geral dos súditos – ou seja, que o representasse”.

Aloysio Biondi (1936-2000), dos maiores, senão o maior jornalista econômico do Brasil, pois nada foi senão um jornalista, desde os 20 anos de idade, deixou livro profundo e completo do que chamou no subtítulo: um balanço do desmonte do Estado.

O Brasil Privatizado” (Geração Editorial, SP, 2014), onde se lê: “No começo dos anos 1990, o sonho estava ao alcance da mão, o Amanhã chegava. O Brasil conquistara uma posição entre as dez maiores economias do mundo. Melhor ainda: o Brasil nadava em dólares, porque era capaz de realizar exportações muito maiores do que as importações. Poucos se lembram disso hoje, mas o Brasil tinha um dos maiores saldos comerciais positivos (exportações menos importações) do mundo, na casa dos 10 a 15 bilhões de dólares por ano. Tinha dólares seus, não precisava mais de empréstimos ou de capitais de multinacionais para realizar investimentos e manter a economia em expansão para criação de empregos e solução dos problemas do seu Povo”.

Que bomba atômica foi lançada no País? Que, na expressão de Biondi: “destruíram o sonho, a Alma Nacional”. E prossegue dizendo que não somos um quintal dos países ricos, mas “um curral”.

As catástrofes nunca vêm sós

Enumerar as catástrofes pode ser falho. Vamos expor aquelas que mais contribuíram para o retrocesso brasileiro nestes últimos 34 anos.

A primeira foi o enorme poder usufruído por um coronel (general de pijama) nos dois últimos governos militares e que muito influenciou o início da Nova República: Golbery do Couto e Silva.

Com fama de gênio ou bruxo, ele trouxe o interesse estadunidense e das finanças para o Brasil desde o tempo que escrevera, na Escola Superior de Guerra (ESG), a estratégia geopolítica para o Brasil.

Uma tradução adaptada de manuais dos EUA para consolidar a Doutrina Monroe, denominada pelo intelectual venezuelano José Gregorio Linares, ao comparar com o bolivarianismo, de “contraponto entre a dignidade e a ingerência”, nas Américas.

Dentro das ações do Golbery estão o impedimento das “Diretas Já”, após o governo Figueiredo, o roubo da sigla do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) de Leonel Brizola, e o apagão, em Minas Gerais, na apuração do primeiro turno das eleições de 1989.

Todas destinadas a impedir que Leonel Brizola assumisse a Presidência do Brasil e desse outro direcionamento, mantendo o que de melhor fizeram os governos Médici e Geisel, corrigindo os desvios de Figueiredo, e implantando a ideologia brasileira do nacional trabalhismo, criada por Getúlio Vargas.

Ainda hoje muitos não atentaram para este conjunto de fatos.

Outro aspecto pouco desenvolvido foi da estrutura organizacional com o fim dos governos militares. O autoritarismo prevalecente impossibilitava de um lado a participação popular e de outro solucionar a existência de organismos de repressão, que recebiam recursos de toda ordem além de investidos de autoridade institucional.

Porém, o que veio com a Nova República foi o individualismo exacerbado, o neoliberalismo da ausência do Estado, do predomínio do “mercado” financeiro, até mesmo sobre a legislação do País que tratou de reformar. Desde a promulgação até hoje, a Constituição de 1988 recebeu 140 emendas para seus 250 artigos.

As autoridades que usufruem do Brasil com emendas e orçamentos secretos, com a posição simultânea de parte e juiz, com a submissão para o simulacro de poder executivo precisam dar louvores à “democracia”, enquanto o povo fica cada dia mais ignorante, menos capaz de compreender que tudo é pago por ele, até mesmo quando nada recebe.

Não é da democracia da Revolução Francesa nem da Americana de Alexis de Tocqueville que precisamos.

É da democracia que tenha o Estado Nacional estruturado conforme a cultura brasileira e apto para receber o povo participante.

A República Popular da China encontrou um modelo simultaneamente centralizado e descentralizado, de Assembleias e politburos, para poder ser democrática, no sentido da participação, e nacional, no sentido dos objetivos de todos os chineses.

Brasil não é China. Devemos buscar nosso modelo que jamais deverá ser neoliberal nem ritualisticamente eleitoral, porém sempre do Estado Nacional Brasileiro, valorizando o trabalho e não a especulação e a esperteza. Mas estes mais de 30 anos de neoliberalismo ou neocolonialismo financeiro apenas ficamos mais ignorantes e inseguros.

Aceitamos ser colocados não com cidadãos de um país soberano, mas como optantes entre a unipolaridade estadunidense, democrática ou republicana, e seguidores de interesses chineses.

Precisamos de informações que somente o sistema educacional e de comunicação pública pode nos suprir. Para isso o primeiro passo é vedar as licitações de escolas públicas e para toda instituição de ensino, que não for pública, seja somente atribuída a pessoas físicas, pessoas naturais, não jurídicas.

E a comunicação de origem privada seja limitada a percentagem da audiência, seja televisiva, aberta ou paga, por rádio, ou pelos meios virtuais. As plataformas de comunicação sempre deverão ter proprietários brasileiros natos ou organismos estatais brasileiros.

É um pequeno passo, porém fundamental para que alcancemos a Soberania Nacional e as condições de Cidadania para todos brasileiros.

*Pedro Augusto Pinho é administrador aposentado.

*Este texto não representa obrigatoriamente a opinião do Viomundo.

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Comentários

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Nelson

Um texto muito bom do senhor Pedro Pinho.

É bem provável que uma boa parcela da nossa esquerda vá, logo de cara, “torcer o nariz” para o artigo, ao se deparar com o seu título, “Democracia não é liberalismo e não existe sem Estados Nacionais”.

Fascinada e abobalhada pelo tal liberalismo, pela democracia (sic) ocidental, diante desse título essa esquerda vai se insurgir instantaneamente. Logo passará a criticar o texto e a, possivelmente, afirmar que o autor deve ser um daqueles que toleram ditaduras, desde que elas sejam supostamente amigas.

Para essa esquerda, afirmar uma obviedade, que a democracia liberal não é democracia, de fato, verdadeira, é flertar com ditaduras. Essa esquerda não diz abertamente, mas as medidas que adota quando detém o poder, desnudam sua posição.

Essa esquerda se deixou seduzir de tal forma pelo liberalismo que passou a acreditar, piamente, na grande empulhação de que o “Estado mínimo” é o suprassumo, é o ideal que devemos, todos, perseguir; e virou privatista sem qualquer cerimônia.

Então, um artigo que critica veementemente, com propriedade, a tal democracia liberal e o desmantelamento do Estado, será, por certo, odiado por essa esquerda.

Para terminar, uma crítica ao texto. Construtiva.
Tenho notado que, em seus escritos, o senhor Pinho não tem utilizado os artigos o, os, as, após pronomes indefinidos como todo, toda, todos. Má influência de alguns outros textos, que teria se transformado num cacoete?

Pode ser; eu também tenho penado com isso e tenho procuro me policiar ao máximo para não reproduzir os erros. De tanto ler coisas escritas de forma errada, irregular, podemos acabar sendo influenciados e passar a também escrever da mesma forma.

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