Paulo Nogueira Batista Jr: Maria da Conceição Tavares, verve e eloquência insuperáveis

Tempo de leitura: 4 min
Fotos: Reprodução

Maria da Conceição Tavares

Por Paulo Nogueira Batista Jr.*

A comoção provocada pela morte de Maria da Conceição Tavares é mais uma demonstração da força incontrastável da sua personalidade vulcânica. Ela impressionava não só pelo seu conhecimento e inteligência, mas também – e nisso era insuperável – pela verve e eloquência.

O Brasil teve dois grandes oradores nas décadas recentes – ela e Brizola.

Quando Conceição pegava a palavra – e especialmente quando conseguia conter um pouco seus rompantes – ela brilhava intensamente e deixava marcas inesquecíveis.

Ainda me lembro dela num evento em Buenos Aires, nos anos 1980, irritada com o radicalismo dos argentinos, exclamando: “Vocês são uns românticos alemães!” para depois desenvolver toda uma argumentação em favor da moderação e do equilíbrio.

Observação agudamente perspicaz a dela. Quem conhece a Argentina e o romantismo alemão há de concordar que existe, sim, um parentesco que ajuda a entender a atração pelo abismo dos nossos queridos vizinhos.

Em outra ocasião, presenciei um debate dela com estudantes da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Pressionada por intervenções hiper esquerdistas da plateia, ela explodiu: “A ideologia é uma plataforma precária!”. Advertência fundamental.

Conceição não deixava de ser ela mesma uma ideóloga, como é natural, mas nos ensinava que sem estudo, conhecimento e ciência não se chega nem na esquina.

Apoie o VIOMUNDO

Esses dois episódios são reveladoras de um traço do seu caráter. Conceição era um paradoxo ambulante – defendia a cautela com o máximo de exaltação, pregava a moderação aos berros.

Só quem a conhecia um pouco mais de perto sabia que a sua fúria retórica escondia uma personalidade essencialmente moderada.

Conto mais um episódio revelador. Em 1987, eu fazia parte de uma pequena equipe de assessores do ministro da Fazenda, Dilson Funaro – outro gigante, diga-se de passagem – que preparava no maior sigilo a moratória da dívida externa.

Apesar dos nossos cuidados, à medida que se aproximava a data marcada para a suspensão dos pagamentos, começaram a ocorrer alguns vazamentos.

Os rumores chegaram aos ouvidos dela, que na época assessorava o ministro do Planejamento, João Sayad, deixando-a preocupada, para não dizer alarmada. Conceição saiu em busca de informações.

Chegando no Ministério da Fazenda, ela topa comigo no corredor que levava à sala do ministro Funaro. Ela agarra meu braço com força, quase me derrubando, e dispara: “Paulinho, vocês não pensam que vão fazer a moratória, não é mesmo?”.

E me olhava fixamente, cravando os olhos nos meus. Eu não queria mentir, fiz cara de paisagem e desconversei, dizendo algo como: “Fique tranquila, a questão da dívida está sendo tratada com todo cuidado”.

Ela bufou e seguiu em frente, passo firme, a caminho talvez de interpelar o próprio Dilson Funaro.

Era assim Conceição Tavares: trovejava e relampejava, parecia uma alucinada às vezes, mas se mostrava cuidadosa e ponderada nos momentos críticos.

Por isso sempre digo: cuidado com os mansos, os discretos, os que raramente levantam a voz. Esses é que tomam as Bastilhas de assalto.

Destaco mais um aspecto notável da trajetória dela. Lembre-se, leitor ou leitora, que duas circunstâncias limitaram muito a sua repercussão pública.

Primeira: nunca teve cargos de relevo no governo federal.

Em determinado momento, nos anos 1990, creio que Conceição teve a pretensão de tornar-se presidente do Banco Central. “Temos que tirar o Banco Central das mãos dos bandidos”, bradava. Não conseguiu.

Desde então, esse cargo foi ocupado quase sempre por figurinhas carimbadas do mercado financeiro.

Conceição ficou de fora e nunca teve a projeção automaticamente conferida por funções de destaque na área econômica do governo.

Outra circunstância adversa: ela foi mandada para a Sibéria pela mídia tradicional. E para sempre. Sofreu uma espécie de exilo interno. Nunca voltou das estepes geladas. Raramente era entrevistada, os seus artigos quase nunca chegavam às páginas dos jornais, a sua voz não chegava à rádio e muito menos à televisão.

Apesar disso, apesar da censura sistemática, apesar de não galgar posições no governo, a voz de Conceição ecoava forte por todo o país. Era admirada, respeitada e temida. Ai de quem se descuidasse na presença dela!

Qualquer deslize ou inconsistência suscitava reações fulminantes. Eu mesmo, quando a encontrava, tomava o máximo de cuidado para não dizer nada de remotamente controvertido e desencadear alguma explosão.

Com o surgimento das redes sociais, a sua projeção se ampliou. A mídia convencional perdeu o seu monopólio e pessoas como Conceição puderam participar mais do debate público.

Muitos que ainda não a conheciam ficaram deslumbrados com o seu brilho, capacidade polêmica e vasto conhecimento – não só de economia, mas de política, história e cultura.

Viram o seu compromisso inabalável com o Brasil. E, ao mesmo, tempo as sua indignação com as injustiças sociais e a extrema desigualdade na distribuição da renda e da riqueza no nosso país.

Gravações das suas aulas e palestras viralizaram.

Ela vem sendo intensa e merecidamente homenageada nos últimos dias. Porém, muitos dos que falam elogiosamente sobre Conceição, postam fotos com ela e lamentam a sua morte pouco ou nada têm a ver com o seu pensamento e a sua pregação. Lágrimas de crocodilo. Ela teria recebido essas homenagens a patadas.

Machado de Assis dizia de um recém-falecido, pela boca de um dos seus personagens: “Está morto, podemos homenageá-lo à vontade”.

Só lamento que Conceição não tenha sido ainda mais reconhecida e homenageada em vida.

*Paulo Nogueira Batista Jr. é economista, foi vice-presidente do Novo Banco de Desenvolvimento, estabelecido pelos BRICS em Xangai, de 2015 a 2017, e diretor executivo no FMI pelo Brasil e mais dez países em Washington, de 2007 a 2015. Lançou no final de 2019, pela editora LeYa, o livro O Brasil não cabe no quintal de ninguém: bastidores da vida de um economista brasileiro no FMI e nos BRICS e outros textos sobre nacionalismo e nosso complexo de vira-lata. A segunda edição, atualizada e ampliada, foi publicada em 2021.

*Uma versão resumida deste texto foi publicada na revista Carta Capital.

Leia também

Paulo Nogueira Batista Jr: ‘Conceição Tavares nos ensinou cultivar a economia com espírito crítico e independência’; vídeo

Apoie o VIOMUNDO


Siga-nos no


Comentários

Clique aqui para ler e comentar

Nelson

Maria da Conceição Tavares era uma portuguesa porreta que demonstrava amor verdadeiro ao país que escolheu para viver. Muito mais brasileira que muitos que aqui nasceram e que, ainda que vivam a invocar patriotismo, não passam de entreguistas abjetos. Infelizmente, temos uma montoeira, que parece só aumentar, desses vendilhões da pátria.

Quanto ao exílio a ela imposto pelos órgãos da mídia hegemônica, tudo normal. Afinal, ainda desde os tempos em que era chamada de grande imprensa essa mídia tem demonstrado compromisso zero para com as necessidades do povo brasileiro e os interesses do país.

A brutal campanha de difamação e desmoralização feita contra Getúlio Vargas, que o levou ao suicídio há quase 70 anos, foi ponteada pela grande imprensa da época. E qual foi o motivo real de tal campanha? Ora, Getúlio Vargas era um nacionalista convicto e sonhava construir um Brasil grande, do tamanho de seu imenso potencial. O sonho de Conceição Tavares.

A bem da verdade, Getúlio não só sonhava, mas colocava em prática tal sonho. Getúlio chefiou o único governo a implementar, em toda a história brasileira, um Projeto nacional de Desenvolvimento verdadeiro, que pode ser qualificado como tal.

Não era à toa que o entreguista, vendilhão da pátria, Carlos Lacerda, dizia, sobre Getúlio Vargas: “Não pode ser candidato. Se for, não pode ser eleito. Se eleito, não pode tomar posse. Se tomar posse, não pode governar”.

Deixe seu comentário

Leia também