O Lobo Hidrófobo
Por Marcelo Zero*
Em 15 de janeiro, em seu discurso de abertura, perante a Comissão de Relações Exteriores do Senado, o então Secretário de Estado designado, Marco Rubio, afirmou o seguinte:
“Então, enquanto a América frequentemente priorizava a ordem global acima do nosso interesse nacional central, outras nações continuaram a agir da maneira que as nações sempre agiram e sempre agirão: no que elas percebem ser o seu melhor interesse. E em vez de se dobrarem à ordem global pós-Guerra Fria, elas a manipularam para servir aos seus interesses às custas dos nossos.
A ordem global pós-guerra não está apenas obsoleta, ela agora é uma arma sendo usada contra nós. E tudo isso levou a um momento em que agora devemos enfrentar o maior risco de instabilidade geopolítica e de crise global geracional na vida de qualquer pessoa viva e nesta sala hoje. Oito décadas depois, somos mais uma vez chamados a criar um mundo livre a partir do caos, e isso não será fácil. E será impossível sem uma América forte e confiante que se envolva no mundo, colocando nossos interesses nacionais centrais mais uma vez acima de tudo.”
Essa é a visão deturpada de Trump e do MAGA sobre a ordem global e o “globalismo”. Eles atribuem, em boa parte, à ordem global seus problemas econômicos, comerciais e geopolíticos.
Ora, a atual ordem global, que realmente é obsoleta em muitos sentidos, foi construída, no pós-guerra, justamente para beneficiar os EUA e aliados.
Na conferência de Bretton Woods, que definiu as normas financeiras e comerciais internacionais, os Estados Unidos, que controlavam dois terços do ouro do mundo, insistiram que o sistema mundial se baseasse tanto no ouro quanto no dólar americano.
Entretanto, quando os EUA passaram a ter problemas inflacionários e a ter dificuldades para financiar seus gastos com a guerra do Vietnã, os bancos centrais europeus começaram a trocar suas reservas em dólar por ouro. Nixon, percebendo o perigo, simplesmente acabou, de forma unilateral, com o padrão ouro.
Assim os EUA sempre fizeram o que quiseram, com a “ordem mundial”. Sempre impuseram regras aos demais países, mas também sempre as quebraram, quando quiseram.
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Um exemplo interessante é do GATT/OMC.
Em 1947, quando os EUA eram a única e inconteste grande potência capitalista, já que os países da Europa e o Japão estavam destruídos ou muito enfraquecidos, Washington impulsionou a assinatura do Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio ou Acordo Geral sobre Aduanas e Comércio (em inglês, General Agreement on Tariffs and Trade, GATT). Tal acordo buscava a redução das tarifas de importação e o estabelecimento, em nível mundial, dos princípios do livre comércio.
Frise-se que, em período histórico anterior, os EUA tinham sido um país muito protecionista, resistindo as pressões britânicas pela abertura de sua economia e dos seus portos.
Alexander Hamilton, primeiro Secretário do Tesouro dos EUA, logo advogou pela proteção da indústria do seu país, afirmando que os argumentos de Adam Smith a favor do comércio livre “embora teoricamente verdadeiros (geometrically true)’, eram ‘falsos, na prática”.
As pressões dos EUA pelo “livre comércio”, entretanto, continuaram na segunda metade do século XX até chegarem ao seu auge no início da década de 1990, logo após a queda da União Soviética, quando foram concluídos, em dezembro de 1994, os Acordos da Rodada Uruguai, que transformaram o GATT na OMC.
Tais acordos, assinados primeiramente por 123 países, foram fortemente impulsionados pelos EUA, assim como o foram também o antigo Nafta e a fracassada proposta da Alca, que só não foi aprovada pela resistência do Brasil.
Porém, as mudanças geoeconômicas internacionais ocorridas principalmente a partir da segunda década deste século passaram a reverter a fé inquebrantável dos EUA nos benefícios do livre comércio, que antes tanto defendiam.
No que tange ao Nafta por exemplo, Trump impôs ao Canadá, e principalmente ao México, a renegociação ao acordo, criando o USCMA, mais favorável aos interesses dos EUA.
A história da OMC, no entanto, é mais interessante.
Em primeiro lugar, a OMC perdeu sua capacidade de negociar novos e amplos acordos. Só houve avanços pontuais dignos de nota nas conferências de Bali, em 2013 (Acordo de Facilitação de Comércio) e Nairóbi, em 2015 (proibição de subsídios à exportação de produtos agrícolas).
Porém, o mais negativo é que a OMC perdeu também a sua importante função de resolver contenciosos comerciais e manter as regras acordadas.
Com efeito, desde 2017 os EUA bloqueiam a seleção de membros do Órgão de Apelação (a segunda e definitiva instância recursal da OMC), que não pode mais receber casos, por não contar com o mínimo de três integrantes, o que paralisa a solução de contenciosos comerciais.
Desse modo, países demandados não podem recorrer de relatórios dos painéis (a primeira instância), como é de seu direito, o que, na prática, implica a suspensão indefinida do contencioso. É como se no Brasil todas as segundas e terceiras instâncias recursais ficassem subitamente paralisadas. Nenhuma questão jurídica se resolveria.
Pois bem, os EUA bloquearam o sistema de solução de controvérsias na OMC porque estavam perdendo muitas causas, inclusive ante o Brasil, como no caso do algodão. Já previam que não era mais conveniente seguir as regras que eles mesmos haviam criado.
Isso veio muito a calhar, agora, com os interesses do MAGA, porque tudo o que Trump está fazendo na área comercial, com seus tarifaços estúpidos e injustificados, segundo o Wall Street Journal, poderia ser facilmente questionado na OMC, caso seu sistema de solução de controvérsias estivesse funcionando normalmente.
Mas o fato é que o sistema internacional de comércio virou uma “terra de ninguém”, na qual a brutalidade e a ilegalidade protecionista de Trump valem. Na realidade, vale-tudo, desde que se tenha poder e força.
Todavia, Trump está indo além de quebrar ou manipular algumas regras. Trump quer acabar com as normas e regras internacionais. Esse é o ponto que o diferencia. Como disse Marco Rubio, Trump tem de criar um novo “mundo livre a partir do caos”. Refazer tudo.
Com Trump, os contratos sociais nacionais e intencionais estão sendo sistematicamente eliminados e a ordem mundial está se convertendo numa ordem hobbesiana, na qual a única regra é o homo homini lupus.
Tudo o que ele propõe viola regras do direito internacional público e muitas convenções, resoluções, tratados e acordos internacionais. Daí os EUA já terem abandonado o Conselho dos Direitos Humanos da ONU.
Sua recente e brilhante ideia de enxotar os palestinos de Gaza e ali construir uma “Riviera do Oriente Médio”, é uma bofetada em todas as resoluções da ONU sobre o tema-israelo-palestino, ademais de uma clara violação dos direitos humanos e do direito humanitário. É algo de uma crueldade e de um cinismo inacreditável.
E os voos com migrantes para Guantánamo já começaram.
O que virá depois? A toma do Canal do Panamá, ou o impedimento daquele país de receber investimentos chineses?
A posse da Groenlândia e das rotas do Ártico?
Nós, brasileiros, seremos obrigados a diminuir a densidade das nossas relações diplomáticas e comerciais com China e Rússia?
Seremos pressionados a desinvestir na integração regional soberana?
Com Trump, tudo pode acontecer. Ele introduziu, na ordem mundial “baseada em regras”, um elemento de forte imprevisibilidade e disrupção que assusta o mundo. Uma anomia que nos força a olhar para a barbárie como o novo normal.
Não há mais regras, apenas há um gigantesco e hidrófobo lobo.
*Marcelo Zero é sociólogo e especialista em Relações Internacionais.
*Este texto não representa obrigatoriamente a opinião do Viomundo.
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