O Inferno Nuclear é o Limite
Por Marcelo Zero*
A realização dos referendos para anexar regiões do Donbas, entre outras, de maioria russa, ao território da República da Rússia, está servindo de escusa para uma nova escalada do conflito.
A reação furiosa dos governos do Ocidente e de suas mídias foi, como de hábito, eivada de cinismo e sustentada em estudada desinformação.
Quando a guerra da Ucrânia começou, em 2014 (sim, o conflito entre Rússia e Ucrânia surgiu em 2014, após a deposição pela força de Yanukovich), essas regiões da Ucrânia, de ampla maioria russófona, realizaram referendos para exigir autonomia, em relação ao novo governo antirrusso de Kiev.
Essa reivindicação de autonomia foi incorporada aos Acordos de Minsk, que buscavam por fim ao conflito.
Contudo, a Ucrânia, muito provavelmente estimulada pelos EUA, jamais respeitou esses acordos, de modo que o conflito naquela região se intensificou. Até 2021, antes, portanto, da intervenção militar russa, esse conflito já havia vitimado cerca de 14 mil pessoas.
A justificação jurídica principal para a reação furiosa é a de que tal anexação violaria o princípio da integridade territorial dos Estados, que consta da Carta das Nações Unidas.
Interessante esse argumento, quando utilizado pelos EUA.
Quando se trata do Donbas, os EUA invocam o princípio da integridade territorial, mas, quando se trata de Taiwan, por exemplo, a administração de Biden invoca outro princípio da Carta das Nações Unidas, que é o da autodeterminação dos povos.
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Assim, Joe Biden declarou recentemente que “Taiwan pode fazer seus próprios julgamentos sobre sua independência; é uma decisão deles”. O mesmo princípio é invocado pela Rússia, em relação às regiões anexadas.
Saliente-se que quando o Kosovo declarou unilateralmente sua independência da Sérvia, sem a realização de qualquer referendo, os EUA correram para reconhecer o “novo país”, apesar das várias resoluções da ONU que condenavam tal independência, justamente porque vulnerava a integridade territorial da Sérvia. O Kosovo está prestes a entrar na OTAN.
Independentemente dessas discussões, o fato é que a Ucrânia reagiu bombardeando a ponte que liga a Crimeia à Rússia. Uma ponte que não é de Putin, como diz a mídia desinformada, mas sim da Rússia. Tal bombardeio teria merecido pronta reação de qualquer governo russo.
E a reação veio sob a forma de bombardeios de alguns pontos do território ucraniano. Uma reação, diga-se de passagem, comedida.
Afinal, a Rússia dispõe de meios militares para arrasar por completo o território da Ucrânia, mesmo sem o uso de armas nucleares, tal como os EUA fizeram com seus “bombardeios cirúrgicos” no Iraque ou quando devastaram o Vietnã com napalm.
Zelenski, em contrapartida, emitiu decreto declarando ilegal qualquer negociação de paz com Putin.
“Negociações só com outro governo”, afirmou, o que inviabiliza, na prática, a busca da paz, até mesmo porque, como já havia advertido William Burns em 2007, a neutralidade do território da Ucrânia é uma “questão existencial” para todas as forças russas. Nenhum governo russo aceitaria a Ucrânia na OTAN.
Entretanto, a ameaça imediata vem do entendimento de Zelenski, apoiado pelos EUA, de que a Crimeia e o Donbas seriam “território ucraniano” e que, portanto, ele teria o direito de atacar esses territórios, em nome da autodefesa.
Com isso, abre-se a possibilidade de se usar misseis de longo alcance enviados pelos EUA para bombardear essas regiões estratégicas de maioria russa.
Os EUA já deram “carta branca” para essa escalada perigosíssima. Laura Cooper, Deputy Assistant Secretary of Defense, declarou, em 4 de outubro: “vamos deixar claro, a Crimeia é Ucrânia”.
Agora, vamos deixar mais claro ainda: os EUA e a OTAN não querem e nunca quiseram a paz na Ucrânia.
Antes do conflito de 2022, impediram a Ucrânia de negociar a neutralidade de seu território. Após o conflito, bombardearam o pré-acordo de paz obtido em março. Estimularam e estimulam Zelenski a “lutar”.
Usam a Ucrânia para tentar enfraquecer a Rússia e “derrubar Putin”, buscando o objetivo último, defendido por Zbigniew Brzezinski desde 1997, de controlar a Eurásia.
O custo dessa obsessão geopolítica dos EUA já está muito alto, para todo o mundo. Porém, pode aumentar ainda mais, caso a escalada persista.
O inferno nuclear é o limite.
*Marcelo Zero é sociólogo e especialista em Relações Internacionais.
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