Marcelo Zero: Caos e burrice não geram empregos; planejamento inteligente, sim

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Marcelo Zero: ''A China coloca o bom emprego e o ser humano como prioridade da sua estratégia econômica. As forças do mercado estão submetidas ao interesse público e social. Já nos EUA, tanto em administrações de Democratas ou de Republicanos, o bem público e os interesses sociais estão submetidos às necessidades do mercado, isto é, aos desejos e interesses de uma dúzia de bilionários''. Ilustração: Lutfu Cakin/Cartoom Movement

Caos e Burrice não Geram Empregos. Planejamento Inteligente Gera

Por Marcelo Zero*

O que Trump está fazendo não tem precedente histórico equivalente.

Sua atuação brutal, improvisada, bisonha e errática, principalmente na área econômica, estende um manto obscuro de perplexidade e incerteza em todo o mundo.

Suas intermináveis “idas e vindas” em torno do “tarifaço” ou dos vários tarifaços e sua obsessão em torno de um protecionismo primário, exacerbado e sem uma estratégia racional mergulharam o planeta numa Era do Caos, segundo a sisuda e conservadora The Economist.

Ao contrário do que se possa acreditar, a recentemente anunciada pausa de 90 dias no tarifaço, está longe de resolver o caos instalado e não significa que Trump desistiu de sua desvairada e improvisada agenda protecionista.

Em primeiro lugar, porque ninguém sabe o que Trump fará daqui a 90 dias. Nem mesmo ele.

Em segundo, porque as tarifas de 10% continuam para todo mundo, além das outras tarifas específicas, como as do aço e as dos automóveis, por exemplo.

Pode parecer pouco, mas é preciso considerar que as tarifas médias estadunidenses estavam em 2,5%. Portanto, aumentá-las linearmente em 10% para todos os produtos significa quadruplicá-las.

Em terceiro, porque o embate entre as duas maiores economias do mundo (EUA E CHINA), responsáveis por cerca de 50% do PIB mundial, continua a escalar, com tarifas que alcançam 125%, além de outras medidas protecionistas.

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Evidentemente, o comércio internacional e a economia planetária serão afetados, mesmo no caso de uma guerra comercial restrita a esses dois países.

Os apoiadores de Trump continuam a argumentar que tudo isso estava previsto, que há um plano muito inteligente por trás desse caos e dessa oligofrenia generalizada.

Mas não há, de fato, estratégia racional ou um plano bem-elaborado. Não há uma teoria econômica que sustente essa, por assim dizer, porca lambança tarifária e econômica.

É tudo improvisado, de maneira tosca.

Na mentalidade dele, todo país que tem superávit comercial com Washington, “rouba e “explora” os EUA. Ele confunde, propositalmente, déficit com tarifa.

Ressalte-se que a OMC não permite, pelo princípio da nação mais favorecida que as tarifas possam ser impostas a países diferenciados. As tarifas só podem ser aplicadas, de forma não discriminatória, a produtos e serviços. Assim, se um país aplica 15% de tarifa de importação para automóveis, tal tarifa tem de ser aplicada aos automóveis provenientes de quaisquer partes do mundo.

Portanto, a fórmula trumpista de se calcular e impor “tarifas” impede qualquer negociação racional sobre o tema. E revela total improviso analítico e falta de estratégia racional, por parte de Trump.

Como negociar ou conversar com base em argumentos oligofrênicos e mentirosos?

O que há um desejo político atabalhoado e improvisado de se atingir alguns objetivos míticos.

O primeiro e principal deles é o de reindustrializar os EUA e reduzir significativamente seus déficits comerciais de bens, que, no ano passado chegaram a US$ 1, 2 trilhão.

Na década de 1950, a indústria dos EUA era responsável por mais de 60% da produção mundial de bens. Hoje, responde por cerca de 15%, enquanto a China responde por ao redor de 32%.

Contudo, não há uma política industrial e de investimentos bem -estudada e de longo prazo para se chegar a esses objetivos, que jamais serão alcançados com um protecionismo raso e desvairado de curto prazo.

Ninguém se reindustrializa com simples tarifaços e em 4 anos. Seriam necessárias políticas multidimensionais (econômicas, educacionais, tecnológicas, industriais, de investimentos etc.) de longo prazo para se tentar conseguir tais objetivos.

Mas será que a China, e outros países emergentes, são responsáveis pela queda relativa da indústria manufatureira dos EUA? Será que a China é responsável pela grande redução dos empregos da indústria manufatureira dos EUA?

Não, não é.

A chamada “globalização” é claramente responsável por algumas importantes perdas de empregos nos EUA. Particularmente o comércio com a China durante os anos 2000, levou à rápida perda de 2 a 2,4 milhões de empregos líquidos, de acordo com pesquisas de economistas como Daron Acemoglu e David Autor, do M.I.T.

Contudo, o principal culpado histórico pela perda de empregos na indústria estadunidense, segundo a maior parte dos analistas econômicos, não é a “globalização” ou a China.

Uma análise, muito citada, da Ball State University, feita em 2015, atribuiu apenas cerca de 13% das perdas de empregos na indústria dos EUA ao comércio internacional, durante a primeira década deste século.

O restante das perdas teria sido ocasionado, predominantemente, pelo aumento da produtividade, devido, essencialmente, à automação. A indústria de vestuário e de calçados foi a mais afetada pelo comércio internacional, enquanto a indústria de computadores e eletrônicos teria sido mais afetada pelos avanços tecnológicos.

Portanto, tal estudo revelou que quase 88% das perdas de empregos na indústria estadunidense, entre 2000 e 2010, foram devidas à automação e ao aumento da produtividade.

Alguns casos são muito claros.

Vejamos o exemplo da indústria siderúrgica, objeto de tanta reclamação, por parte de Trump. Ela perdeu mais de 400.000 empregos diretos, 75% de sua força de trabalho, entre 1962 e 2005.

Porém, sua produção não diminuiu, de acordo com um estudo publicado na American Economic Review, em 2017. O motivo maior da perda de empregos foi uma nova tecnologia chamada de “mini-mill”, caracterizada por aciaria com fornos a arco elétrico (EAF) e lingotamento contínuo.

Os efeitos da nova tecnologia predominaram, mesmo após o controle de práticas de gestão; o comércio internacional; e taxas de sindicalização, constataram os autores do estudo, Allan Collard-Wexler, de Duke, e Jan De Loecker, da Universidade de Princeton.

Por conseguinte, a criação do chamado “Rust Belt” não tem muita relação com a China ou outros países. Tem mais relação com o desejo dos próprios capitalistas estadunidenses de investirem em automação para reduzir custos e aumentar lucros.

Secundariamente, muito secundariamente, esse empenho em reduzir custos e aumentar lucros também deslocou muitas indústrias estadunidenses, europeias e japonesas para a China.

Ironicamente, China é, hoje, o país que mais investe em automação e no aumento da produtividade de sua indústria e da sua economia, de um modo geral.

De 1995 a 2021, o investimento total em P&D da China saltou de US$ 18,2 bilhões para US$ 620,1 bilhões — um aumento de 3.299% em comparação com os 277% dos EUA, segundo o Instituto Rathenau, da Holanda. A China se tornou o mais importante polo global de pesquisa científica avançada.

Segundo a The Economist, cientistas chineses lideram o mundo na produção de artigos de alto impacto e na contribuição para publicações científicas famosas, selecionadas após rigorosa revisão por pares.

Esse movimento vem sendo ocasionado, entre outros motivos, pelo envelhecimento da população chinesa e pela redução crescente da oferta de mão-de-obra, antes amplamente elástica. A mão-de obra chinesa está encarecendo. A mão de obra mais barata está, hoje, no Sudeste Asiático.

Mas qual a diferença desse processo chinês, em relação ao estadunidense? Ele também não vai gerar desemprego e precariedade laboral na China, como nos EUA e outros países?

A diferença da China está no planejamento inteligente de longo prazo e nas prioridades políticas.

De acordo com a diretriz estrutural divulgada, ao final de 2024, pelo Comitê Central do Partido Comunista da China e pelo Conselho de Estado, a China deverá implementar uma estratégia que vai priorizar a geração de empregos (“job first Iniciative”), fortalecerá as políticas de emprego, enfrentará as contradições estruturais, aprofundará as reformas institucionais, e que também vai proteger o mercado contra o risco de desemprego em larga escala e promover uma melhoria efetiva na qualidade do emprego e um crescimento líquido suficiente de postos de trabalho.

Segundo a diretriz: “o emprego é o meio de vida mais básico e está relacionado aos interesses vitais da população, ao desenvolvimento sólido da economia e da sociedade e à estabilidade do país a longo prazo”.

A ideia é a de que os investimentos em novas tecnologia, no bem-estar da população (educação e saúde) e no crescimento do consumo interno vão permitir à China gerar uma quantidade significativa de bons empregos líquidos, mesmo com a implantação das chamadas “indústrias escuras”, fábricas baseadas em IA, totalmente automatizadas, sem luz, sem calefação, sem ar-condicionado, sem pausas e com máquinas e robôs que se coordenariam apenas com luz infravermelha.

Neste ano, prevê-se a geração líquida de cerca de 12 milhões de novos e bons empregos urbanos na China.

A China, uma autocracia ou suposta autocracia, coloca o bom emprego e o ser humano como prioridade da sua estratégia econômica. Essa é uma decisão política de um país, no qual as forças do mercado estão submetidas ao interesse público e social.

Já os EUA, tanto em administrações de Democratas ou de Republicanos, são uma democracia, ou uma suposta democracia, no qual o bem público e os interesses sociais estão submetidos às necessidades do mercado, isto é, aos desejos e interesses de uma dúzia de bilionários.

Não surpreende, portanto, que uma “democracia” desse tipo gere desemprego, desigualdade, pobreza e precariedade laboral digital.

Não surpreende, também, que se coloque a culpa de tudo em emigrantes e estrangeiros.

*Marcelo Zero é sociólogo e especialista em Relações Internacionais

*Este artigo não representa obrigatoriamente a opinião do Viomundo.

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