Marcelo Zero: A grande ameaça

Tempo de leitura: 4 min

A Grande Ameaça

Por Marcelo Zero*

Os negritos ao longo do artigo são do próprio autor)

“A democracia dos EUA provavelmente entrará em colapso durante o segundo governo Trump, no sentido de que deixará de atender aos padrões para a democracia liberal: sufrágio adulto completo, eleições livres e justas e ampla proteção das liberdades civis.

O colapso da democracia nos Estados Unidos não dará origem a uma ditadura clássica em que as eleições são uma farsa e a oposição é presa, exilada ou morta. Mesmo no pior cenário, Trump não será capaz de reescrever a Constituição ou anular a ordem constitucional. Ele será limitado por juízes independentes, federalismo, militares profissionalizados do país e fortes barreiras à reforma constitucional. Haverá eleições em 2028, e os republicanos podem perdê-las.

Mas o autoritarismo não requer a destruição da ordem constitucional. O que está por vir não é uma ditadura fascista ou de partido único, mas um “autoritarismo competitivo” — um sistema em que os partidos competem nas eleições, mas o abuso de poder do titular inclina o campo de jogo contra a oposição.

A maioria das autocracias que surgiram desde o fim da Guerra Fria se enquadram nessa categoria, incluindo o Peru de Alberto Fujimori, e os contemporâneos El Salvador, Hungria, Índia, Tunísia e Turquia. Sob o ‘autoritarismo competitivo’, a arquitetura formal da democracia, incluindo eleições multipartidárias, permanece intacta. As forças de oposição são legais e abertas, e disputam seriamente o poder. As eleições são frequentemente batalhas ferozmente disputadas, nas quais os incumbentes têm que suar muito. E de vez em quando, os incumbentes perdem, como aconteceu na Malásia em 2018 e na Polônia em 2023. Mas o sistema não é democrático, porque os incumbentes manipulam o jogo ao aparelhar a máquina do governo para atacar oponentes e cooptar críticos. A competição é real, mas injusta.

O autoritarismo competitivo transformará a vida política nos Estados Unidos. Como a onda inicial de ordens executivas duvidosamente constitucionais de Trump deixou claro, o custo da oposição pública aumentará consideravelmente: os doadores do Partido Democrata podem ser alvos do IRS; empresas que financiam grupos de direitos civis podem enfrentar maior escrutínio tributário e legal ou encontrar seus empreendimentos bloqueados por reguladores. Veículos de comunicação críticos provavelmente enfrentarão processos de difamação custosos ou outras ações legais, bem como políticas de retaliação contra suas empresas controladoras. Os americanos ainda poderão se opor ao governo, mas a oposição será mais difícil e arriscada, levando muitas elites e cidadãos a decidirem que a luta não vale a pena. Uma falha em resistir, no entanto, pode abrir caminho para o entrincheiramento autoritário — com consequências graves e duradouras para a democracia global.

O ESTADO APARELHADO

O segundo governo Trump poderá violar as liberdades civis básicas de maneira a subverter inequivocamente a democracia. O presidente, por exemplo, pode ordenar que o exército atire em manifestantes, como ele supostamente queria fazer durante seu primeiro mandato. Ele também poderá cumprir sua promessa de campanha de lançar a “maior operação de deportação da história americana“, atacando milhões de pessoas, em um processo repleto de abusos, que inevitavelmente levará à detenção equivocada de milhares de cidadãos dos EUA.

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Mas muito do autoritarismo vindouro assumirá uma forma menos visível: a politização e aparelhamento da burocracia governamental.

Os estados modernos são entidades poderosas.

O governo federal dos EUA emprega mais de dois milhões de pessoas e tem um orçamento anual de quase US$ 7 trilhões. Autoridades governamentais servem como árbitros importantes da vida política, econômica e social. Eles ajudam a determinar quem é processado por crimes, quem terá seus impostos auditados, quando e como regras e regulamentos são aplicados, quais organizações recebem status de isenção de impostos, quais agências privadas obtêm contratos para credenciar universidades e quais empresas obtêm licenças, concessões, contratos, subsídios, isenções tarifárias e resgates críticos.

Mesmo em países como os Estados Unidos, que têm governos relativamente pequenos e laissez-faire, essa autoridade cria uma infinidade de oportunidades para os líderes recompensarem aliados e punirem oponentes. Nenhuma democracia está totalmente livre dessa politização. Mas quando os governos aparelham o Estado usando seu poder para sistematicamente prejudicar e enfraquecer a oposição, eles minam a democracia liberal. A política se torna como uma partida de futebol em que os árbitros e seus auxiliares trabalham para um time sabotar seu rival’‘.

Este é um trecho de recente artigo publicado na Foreign Affairs, por Steven Levitsky e Lucan A. Way, intitulado The Path to American Authoritarianism. Steven publicou, junto com Daniel Ziblatt, o famoso livro “How Democracies Die”.

Esclareço que tanto Levitsky quando a Foreign Affairs são de tendência conservadora, o que mostra que a preocupação com Trump estende-se ao establishment tradicional dos EUA.

Segundo os autores, a democracia sobreviveu ao primeiro mandato de Trump porque ele não tinha experiência, plano ou equipe. Ele não controlava o Partido Republicano quando assumiu o cargo em 2017, e a maioria dos líderes republicanos ainda estava comprometida com as regras democráticas do jogo. Trump governou com republicanos e tecnocratas do establishment, e eles o restringiram amplamente. Nenhuma dessas coisas é mais verdade. Desta vez, Trump deixou claro que pretende governar com quadros leais a ele e ao MAGA.

Deve-se destacar que o aparelhamento do Estado norte-americano estava já previsto no Projeto 2025, da Heritage Foundation, think tank de extrema-direita.

Não há dúvida, que esse aparelhamento político está seguindo a pleno vapor, nos EUA.

Portanto, a ameaça citada por Levitsky e Lucan A. Way é real.

Mas não é apenas uma ameaça à democracia estadunidense; é também uma ameaça às democracias do mundo, pois Trump pretende articular a extrema-direita, em nível internacional.

Para tanto, conta não apenas com o apoio do novo aparelho de Estado dos EUA, mas também com o decisivo suporte das Big Techs norte-americanas.

Hoje mesmo, o vice-presidente JD. Vance deu “bronca” nos europeus por combaterem os partidos de extrema-direita daquela região, alguns francamente nazistas.

Essa ameaça à democracia mundial virá de duas formas:

1- Pelo enfraquecimento da multipolaridade e pelas agressões e paralisações das instituições multilaterais (OMS, OMC etc.), o que comprometerá ainda mais uma governança mundial inclusiva e eficaz, que leve em consideração os interesses do Sul Global. Multilateralismo nada mais é que democracia em nível global.

2- Pelas tentativas de inviabilização de democracias progressistas, principalmente aquelas que não se dobrem aos imperativos geopolíticos e geoeconômicos do novo Império.

Nesse sentido, acredito que a guerra híbrida contra o governo Lula já foi deslanchada, com o objetivo de desequilibrar o BRICS e recolocar a América Latina sob a hegemonia exclusiva dos EUA.

A resposta a essas ameaças globais não pode ser isolada. Será necessário concertação internacional para defender as regras civilizatórias que permitem, ainda que com muitos limites, a construção de uma ordem internacional pacífica, previsível, simétrica e democrática.

O Brasil, na presidência do BRICS, pode contribuir com essa resistência à ordem mundial hobbesiana que Trump intenta implantar.

Como já observei anteriormente, muitos trágicos ditadores começam como risíveis bravateiros.

*Marcelo Zero é sociólogo e especialista em Relações Internacionais.

*Este texto não representa obrigatoriamente a opinião do Viomundo.

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Zé Maria

Dossiê 39° do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social

https://thetricontinental.org/wp-content/uploads/2022/12/20221214_D59_PT_Web.pdf

“Fundamentalismo e Imperialismo na América Latina: Ações e Resistências“

“A desarticulação da Teologia da Libertação, para além dos limites da esquerda organizada, foi consequência de um projeto imperialista, que enxergou ali uma ameaça no campo subjetivo e que colocava em risco os avanços das políticas neoliberais na América Latina.

Nesse contexto, a aliança entre o pentecostalismo e o fundamentalismo religioso dá um novo contorno à experiência religiosa do nosso povo e passa a se chamar ‘neopentecostalismo’, que ganha um espaço maior entre as décadas de 1980 e 1990 e se expande com muita força dos anos 2000 em diante.

O boom do neopentecostalismo fortaleceu o avanço do imperialismo e do neoliberalismo por meio das várias tendências da fé, nomeadamente a ‘Teologia do Domínio’ e o ‘Evangelho da Prosperidade’.

A Teologia do Domínio, ou reconstrucionismo, surge nos anos 1970 nos Estados Unidos e busca a reconstrução da teocracia, oferecendo uma cosmovisão cristã para a obtenção e manutenção do poder de evangélicos em esferas públicas.

Essa corrente está muito associada à ideia de ‘Guerra Espiritual’, a luta contra um inimigo que pode atuar em diversas áreas da vida, muito vinculada à leitura do Antigo Testamento.

[Segundo essa cosmovisão,] O cristão, portanto, não deve mais evitar o mundo – dado teológico dos pentecostalismos anteriores – e tudo o que ele representa de ‘mal’, como o ‘pecado’ e a ‘tentação’, mas estar no mundo de forma ativa, em guerra contra esse ‘mal’, inclusive ocupando espaços de poder.

Uma outra tendência é a chamada Teologia da Prosperidade, ou a acumulação de bens materiais como sinal de bênção divina.
‘Ser filho/a de Deus é sinônimo de vitória’.

Embora essa ideia ganhe força entre os neopentecostais, ela possui suas raízes no protestantismo histórico, que compreendia que os vislumbres das ‘bênçãos de Deus’ podem se refletir também no ‘aqui e agora’ na forma de ‘prosperidade financeira’, como uma espécie de ‘recompensa pela disciplina’ e ética protestante do trabalho.

O discurso fundamentalista das Igrejas encontra um terreno fértil neste momento histórico no qual a classe trabalhadora se encontra na defensiva com os ataques do neoliberalismo à vida social e às formas de subsistência.

As massas trabalhadoras não consolidaram seus direitos sociais de forma estrutural, não permitindo um empoderamento desta enquanto organização revolucionária.

Além disso, o processo de desindustrialização e reestruturação do mundo laboral fez com que muitos trabalhadores perdessem, além de seu emprego, seu espaço de sociabilidade e luta coletiva, uma vez que nas fábricas eles tinham a possibilidade de se organizarem coletivamente para melhorar suas condições de vida.

A igreja absorveu a necessidade de socialização, transformando as pautas coletivas em pautas individuais, ressignificando a identidade de trabalhadores – transformando-os em irmãos – e retirando, do ponto de vista econômico e ideológico, a centralidade do proletariado organizado enquanto sujeito revolucionário.

O neoliberalismo contribui para a naturalização dos acontecimentos, em que o pobre ou a pobreza são justificados por uma situação de sorte ou azar na vida; as Igrejas fundamentalistas corroboram essa visão, conectando a ideia de sorte ou azar com a dedicação ou falta de fé.

A construção ideológica da perda da centralidade econômica e política do proletariado, e a consequente quebra da visão do socialismo e da revolução como horizonte na busca pela superação da situação de opressão, fez com que as teologias críticas e transformadoras perdessem espaço para formas individualistas do povo pobre e oprimido viver sua fé.

A direita cristã retomou e absorveu a religião como mecanismo de dominação, utilizando-se, muitas vezes, de metodologias da própria esquerda, tornando-se útil à classe trabalhadora e realizando um trabalho de base cotidiano muito eficiente.

As igrejas evangélicas pentecostais e neopentecostais absorveram as necessidades concretas e cotidianas do povo, ao darem respostas objetivas e subjetivas para parte considerável da classe trabalhadora por meio de cultos catárticos cheios de louvor, funcionando praticamente como festa, cultura e lazer nas periferias, além de muitas vezes serem o único espaço coletivo de convivência.”
https://thetricontinental.org/pt-pt/dossie-59-fundamentalismo-religioso-e-imperialismo-latinoamerica/
“A ‘teologia do domínio’ refere-se a uma linha de
interpretação e pensamento teológico sobre o papel
da igreja na sociedade contemporânea.
A ‘teologia do domínio’ também é conhecida como
‘reconstrucionismo cristão’ e ‘teonomia’.
A teologia do domínio afirma que o cristianismo bíblico
governará todas as áreas da sociedade, pessoais e
corporativas.
O reconstrucionismo cristão argumenta que a
sociedade será reconstruída pela Lei de Deus como
pregada no evangelho e na Grande Comissão.
A teonomia é uma visão pós-milenista que acredita que
todas as leis morais contidas no Antigo Testamento
ainda são obrigatórias hoje. Embora possam parecer
um pouco díspares, todos estão intimamente ligados
ao ponto de as pessoas geralmente usarem os termos
de forma intercambiável.
Aqueles que sustentam esses pontos de vista
acreditam que é dever dos cristãos criar um reino
mundial modelado segundo a Lei Mosaica.
Eles acreditam que Cristo não retornará à terra até
que tal reino seja estabelecido.
O objetivo principal, então, da teologia do domínio e
do reconstrucionismo cristão é a ‘dominação
política e religiosa do mundo através da
implementação das leis morais’, e suas
punições subsequentes, do Antigo Testamento (as
leis sacrificiais e cerimoniais foram cumpridas no
Novo Testamento).
Este não é um sistema governamental regido pela igreja,
mas sim um governo conformado com a Lei de Deus,
A teologia do domínio/reconstrucionismo cristão é
amplamente baseada em uma visão pós-milenista do
pactualismo.
O pós-milenismo é a crença de que Cristo retornará
à Terra após o reinado de mil anos do reino de Deus,
e o pactualismo refere-se à crença de que a história
bíblica é dividida em ‘três grandes alianças’ supostamente
descritas nas Escrituras – de ‘redenção’, ‘obras’ e ‘graça’.
Os adeptos acreditam que atualmente existimos sob o
‘pacto da graça’, que a igreja e israel são a mesma coisa,
e que agora estamos no Reino milenar de Deus.
Assim, O homem, sob o pacto da graça, é responsável
por governar o mundo, ou seja, manter o domínio sobre
ele em obediência às leis de Deus.”
https://www.gotquestions.org/Portugues/teologia-do-dominio.html
“Segundo a ‘Doutrina do Reconstrucionismo’,
Ao longo do tempo, no planeta Terra, o cristão
perdeu o domínio sobre ‘Sete Montes’.
E precisa reconquistá-los para reconstruir o Planeta
com base nos valores cristãos, para prepará-lo para
o retorno de Jesus Cristo.
Esses Sete Montes são:
‘Família, Religião, Educação, Mídia, Lazer, Negócios e…
Governo’.
Esse é um resumo da estratégia que está por trás do
que se batizou de ‘Teologia do Domínio’, ou
‘Dominionismo’ ou, ainda, ‘Reconstrucionismo’.
Embora não seja uma novidade na ‘estratégia política’
evangélica, especialmente de algumas igrejas
neopentocostais, nunca antes ela esteve tão presente
no debate eleitoral como agora.

A ‘Teologia do Domínio’ desenvolveu-se primeiro nos
Estados Unidos da América, e de lá foi importada.
O termo ‘Reconstrucionismo’, com sentido semelhante,
foi primeiramente sugerido por Rousas John Rushdoony,
um pastor presbiteriano que morreu em 2001.
Rushdoony pregava a necessidade de construção de
uma ‘educação cristã’ que visasse formar líderes
com essa formação em todas as áreas estratégicas
da sociedade.
Nos anos 1970, tais ideias foram incorporadas pelo
Partido Republicano norte-americano, na busca por
ampliar o seu eleitorado.
É a partir daí que o reconstrucionismo desenvolve-se
para o dominionismo ou Teologia do Domínio.
E começa a ser marcado por um discurso extremamente
nacionalista e ultraconservador.
Em uma estratégia de ‘guerra santa’, é preciso conquistar
os ‘Sete Montes’.
Estabelecida a ‘estratégia de guerra do bem contra o mal’,
então, é preciso conquistar e reconstruir os ‘Sete Montes’.
A família seria somente aquela que cabe no conceito
tradicional defendido: pai homem, mãe mulher e filhos.
A religião somente as igrejas de matriz evangélica.
A educação não laica.
A mídia, empresas jornalísticas ligadas a esses valores
e produzindo esses conteúdos.
Lazer, o que incorpore tais ideais religiosos.
Negócios feitos por fieis que possam financiar a estratégia.
E governo, o que se identifique com tudo isso:
criação de partidos, eleição de bancadas e de governantes
que ou professem a fé ou aceitem ser ferramenta dela
para se atingir tal propósito.”
https://www.congressoemfoco.com.br/coluna/29842/teologia-do-dominio-entenda-o-que-e-e-o-papel-de-michelle-na-campanha
https://www.ricardogondim.com.br/meditacoes/deus-nos-livre-de-um-brasil-evangelico/
https://www.brasildefato.com.br/2023/01/13/artigo-o-fundamentalismo-evangelico-e-a-ameaca-a-democracia-desafios-para-o-novo-governo/
Compilação dos textos em:
https://www.academia.edu/114849138/O_que_%C3%A9_a_teologia_do_dom%C3%ADnio_teonomia_reconstrucionismo_crist%C3%A3o

.

Zé Maria

Dossiê 39° do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social

https://thetricontinental.org/wp-content/uploads/2022/12/20221214_D59_PT_Web.pdf

“Fundamentalismo e Imperialismo na América Latina: Ações e Resistências“

“A desarticulação da Teologia da Libertação, para além dos limites da esquerda organizada, foi consequência de um projeto imperialista, que enxergou ali uma ameaça no campo subjetivo e que colocava em risco os avanços das políticas neoliberais na América Latina.

Nesse contexto, a aliança entre o pentecostalismo e o fundamentalismo religioso dá um novo contorno à experiência religiosa do nosso povo e passa a se chamar ‘neopentecostalismo’, que ganha um espaço maior entre as décadas de 1980 e 1990 e se expande com muita força dos anos 2000 em diante.

O boom do neopentecostalismo fortaleceu o avanço do imperialismo e do neoliberalismo por meio das várias tendências da fé, nomeadamente a ‘Teologia do Domínio’ e o ‘Evangelho da Prosperidade’.

A Teologia do Domínio, ou reconstrucionismo, surge nos anos 1970 nos Estados Unidos e busca a reconstrução da teocracia, oferecendo uma cosmovisão cristã para a obtenção e manutenção do poder de evangélicos em esferas públicas.

Essa corrente está muito associada à ideia de ‘Guerra Espiritual’, a luta contra um inimigo que pode atuar em diversas áreas da vida, muito vinculada à leitura do Antigo Testamento.

[Segundo essa cosmovisão,] O cristão, portanto, não deve mais evitar o mundo – dado teológico dos pentecostalismos anteriores – e tudo o que ele representa de ‘mal’, como o ‘pecado’ e a ‘tentação’, mas estar no mundo de forma ativa, em guerra contra esse ‘mal’, inclusive ocupando espaços de poder.

Uma outra tendência é a chamada Teologia da Prosperidade, ou a acumulação de bens materiais como sinal de bênção divina.
‘Ser filho/a de Deus é sinônimo de vitória’.

Embora essa ideia ganhe força entre os neopentecostais, ela possui suas raízes no protestantismo histórico, que compreendia que os vislumbres das ‘bênçãos de Deus’ podem se refletir também no ‘aqui e agora’ na forma de ‘prosperidade financeira’, como uma espécie de ‘recompensa pela disciplina’ e ética protestante do trabalho.

O discurso fundamentalista das Igrejas encontra um terreno fértil neste momento histórico no qual a classe trabalhadora se encontra na defensiva com os ataques do neoliberalismo à vida social e às formas de subsistência.

As massas trabalhadoras não consolidaram seus direitos sociais de forma estrutural, não permitindo um empoderamento desta enquanto organização revolucionária.

Além disso, o processo de desindustrialização e reestruturação do mundo laboral fez com que muitos trabalhadores perdessem, além de seu emprego, seu espaço de sociabilidade e luta coletiva, uma vez que nas fábricas eles tinham a possibilidade de se organizarem coletivamente para melhorar suas condições de vida.

A igreja absorveu a necessidade de socialização, transformando as pautas coletivas em pautas individuais, ressignificando a identidade de trabalhadores – transformando-os em irmãos – e retirando, do ponto de vista econômico e ideológico, a centralidade do proletariado organizado enquanto sujeito revolucionário.

O neoliberalismo contribui para a naturalização dos acontecimentos, em que o pobre ou a pobreza são justificados por uma situação de sorte ou azar na vida; as Igrejas fundamentalistas corroboram essa visão, conectando a ideia de sorte ou azar com a dedicação ou falta de fé.

A construção ideológica da perda da centralidade econômica e política do proletariado, e a consequente quebra da visão do socialismo e da revolução como horizonte na busca pela superação da situação de opressão, fez com que as teologias críticas e transformadoras perdessem espaço para formas individualistas do povo pobre e oprimido viver sua fé.

A direita cristã retomou e absorveu a religião como mecanismo de dominação, utilizando-se, muitas vezes, de metodologias da própria esquerda, tornando-se útil à classe trabalhadora e realizando um trabalho de base cotidiano muito eficiente.

As igrejas evangélicas pentecostais e neopentecostais absorveram as necessidades concretas e cotidianas do povo, ao darem respostas objetivas e subjetivas para parte considerável da classe trabalhadora por meio de cultos catárticos cheios de louvor, funcionando praticamente como festa, cultura e lazer nas periferias, além de muitas vezes serem o único espaço coletivo de convivência.”
https://thetricontinental.org/pt-pt/dossie-59-fundamentalismo-religioso-e-imperialismo-latinoamerica/
“A ‘teologia do domínio’ refere-se a uma linha de
interpretação e pensamento teológico sobre o papel
da igreja na sociedade contemporânea.
A ‘teologia do domínio’ também é conhecida como
‘reconstrucionismo cristão’ e ‘teonomia’.
A teologia do domínio afirma que o cristianismo bíblico
governará todas as áreas da sociedade, pessoais e
corporativas.
O reconstrucionismo cristão argumenta que a
sociedade será reconstruída pela Lei de Deus como
pregada no evangelho e na Grande Comissão.
A teonomia é uma visão pós-milenista que acredita que
todas as leis morais contidas no Antigo Testamento
ainda são obrigatórias hoje. Embora possam parecer
um pouco díspares, todos estão intimamente ligados
ao ponto de as pessoas geralmente usarem os termos
de forma intercambiável.
Aqueles que sustentam esses pontos de vista
acreditam que é dever dos cristãos criar um reino
mundial modelado segundo a Lei Mosaica.
Eles acreditam que Cristo não retornará à terra até
que tal reino seja estabelecido.
O objetivo principal, então, da teologia do domínio e
do reconstrucionismo cristão é a ‘dominação
política e religiosa do mundo através da
implementação das leis morais’, e suas
punições subsequentes, do Antigo Testamento (as
leis sacrificiais e cerimoniais foram cumpridas no
Novo Testamento).
Este não é um sistema governamental regido pela igreja,
mas sim um governo conformado com a Lei de Deus,
A teologia do domínio/reconstrucionismo cristão é
amplamente baseada em uma visão pós-milenista do
pactualismo.
O pós-milenismo é a crença de que Cristo retornará
à Terra após o reinado de mil anos do reino de Deus,
e o pactualismo refere-se à crença de que a história
bíblica é dividida em ‘três grandes alianças’ supostamente
descritas nas Escrituras – de ‘redenção’, ‘obras’ e ‘graça’.
Os adeptos acreditam que atualmente existimos sob o
‘pacto da graça’, que a igreja e israel são a mesma coisa,
e que agora estamos no Reino milenar de Deus.
Assim, O homem, sob o pacto da graça, é responsável
por governar o mundo, ou seja, manter o domínio sobre
ele em obediência às leis de Deus.”
https://www.gotquestions.org/Portugues/teologia-do-dominio.html
“Segundo a ‘Doutrina do Reconstrucionismo’,
Ao longo do tempo, no planeta Terra, o cristão
perdeu o domínio sobre ‘Sete Montes’.
E precisa reconquistá-los para reconstruir o Planeta
com base nos valores cristãos, para prepará-lo para
o retorno de Jesus Cristo.
Esses Sete Montes são:
‘Família, Religião, Educação, Mídia, Lazer, Negócios e…
Governo’.
Esse é um resumo da estratégia que está por trás do
que se batizou de ‘Teologia do Domínio’, ou
‘Dominionismo’ ou, ainda, ‘Reconstrucionismo’.
Embora não seja uma novidade na ‘estratégia política’
evangélica, especialmente de algumas igrejas
neopentocostais, nunca antes ela esteve tão presente
no debate eleitoral como agora.

A ‘Teologia do Domínio’ desenvolveu-se primeiro nos
Estados Unidos da América, e de lá foi importada.
O termo ‘Reconstrucionismo’, com sentido semelhante,
foi primeiramente sugerido por Rousas John Rushdoony,
um pastor presbiteriano que morreu em 2001.
Rushdoony pregava a necessidade de construção de
uma ‘educação cristã’ que visasse formar líderes
com essa formação em todas as áreas estratégicas
da sociedade.
Nos anos 1970, tais ideias foram incorporadas pelo
Partido Republicano norte-americano, na busca por
ampliar o seu eleitorado.
É a partir daí que o reconstrucionismo desenvolve-se
para o dominionismo ou Teologia do Domínio.
E começa a ser marcado por um discurso extremamente
nacionalista e ultraconservador.
Em uma estratégia de ‘guerra santa’, é preciso conquistar
os ‘Sete Montes’.
Estabelecida a ‘estratégia de guerra do bem contra o mal’,
então, é preciso conquistar e reconstruir os ‘Sete Montes’.
A família seria somente aquela que cabe no conceito
tradicional defendido: pai homem, mãe mulher e filhos.
A religião somente as igrejas de matriz evangélica.
A educação não laica.
A mídia, empresas jornalísticas ligadas a esses valores
e produzindo esses conteúdos.
Lazer, o que incorpore tais ideais religiosos.
Negócios feitos por fieis que possam financiar a estratégia.
E governo, o que se identifique com tudo isso:
criação de partidos, eleição de bancadas e de governantes
que ou professem a fé ou aceitem ser ferramenta dela
para se atingir tal propósito.”
https://www.congressoemfoco.com.br/coluna/29842/teologia-do-dominio-entenda-o-que-e-e-o-papel-de-michelle-na-campanha
https://www.ricardogondim.com.br/meditacoes/deus-nos-livre-de-um-brasil-evangelico/
https://www.brasildefato.com.br/2023/01/13/artigo-o-fundamentalismo-evangelico-e-a-ameaca-a-democracia-desafios-para-o-novo-governo/
Compilação dos textos em:
https://www.academia.edu/114849138/O_que_%C3%A9_a_teologia_do_dom%C3%ADnio_teonomia_reconstrucionismo_crist%C3%A3o

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Zé Maria

https://loja.editoraforum.com.br/image/cache/catalog/2021/capas/LV-autoritarismo_liquido-capa_3d-loja-362×540.png

É o Fenômeno que, há algum tempo, o Jurista

Pedro Serrano chama de “Autoritarismo Líquido”.

https://cdn.prod.website-files.com/64bae8d1148d38db889cb75a/65ccf97010576642a2c58c24_capa_corrigida_maikon_8-15-p-500.png
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“Autoritarismo Líquido”

Entrevista: PEDRO ESTEVAM SERRANO*, no INB OnLine.

Concedida à Pesquisadora Júlia Albergaria,
do Instituto Norberto Bobbio (INB)

O autoritarismo é um fenômeno que se manifesta em diversos momentos da história da humanidade.

Contudo, em cada uma das épocas que se apresenta, as características do autoritarismo são apresentadas de formas distintas.

Atualmente, diversos intelectuais têm se dedicado a estudar os processos e elementos que caracterizam os levantes de líderes autoritários.

A partir de perspectivas distintas, as conclusões que chegam são diferentes umas das outras.

O professor Pedro Estevam Alves Pinto Serrano é uma referência importante no estudo desse tema e a categoria do Autoritarismo Líquido, por ele utilizada, é uma abordagem inovadora.

Por essa razão, a pesquisadora do INB, Júlia Albergaria, conversou com o professor Pedro a respeito dos significados do Autoritarismo Líquido, bem como a sua importância na ampliação do horizonte de pesquisas.

Autoritarismo Líquido no Século XX

INB: No século XX, as contribuições do filósofo Zygmunt Bauman são
notórias. Não à toa, a utilização da categoria ‘liquidez’, inventada por ele,
é utilizada para compreender diversos fenômenos. Qual é a importância
deste referencial teórico para o diagnóstico dos desafios contemporâneos?

PEDRO SERRANO: Eu creio que o Autoritarismo Líquido é uma categoria ultra
relevante. Eu gosto muito do pensamento de Bauman, mas quando utilizo a
expressão Autoritarismo Líquido é mais um empréstimo, uma espécie de
figura de linguagem, do que propriamente a utilização do conceito ‘liquidez’
formulado por ele. Sou o responsável por utilizar pela primeira vez a
expressão Autoritarismo Líquido mas não sou o único que trabalha com essa
categoria. No grupo de estudo Sistema de Justiça e Estado de Exceção, o
pesquisador Luis Manuel Fonseca Pires, assim como diversos doutorandos e
mestrandos, também se valem do ‘Autoritarismo Líquido’.

Contudo, o sentido que dou para a palavra ‘líquido’ está relacionado com
algo fractal e fragmentário. Isto é, atualmente não há mais um autoritarismo
que siga os mesmos parâmetros do autoritarismo do século XX. Neste
momento havia ditaduras, bonapartismos, a ascendência e consolidação do
nazifascismo. Ou seja, o estado de exceção se manifestava por governos de
exceção. Agora, o Estado de Exceção se manifesta por medidas de exceção
fragmentárias no interior do sistema.

Cheguei à essa conclusão a partir da leitura de textos produzidos por
diversos autores, inclusive Norberto Bobbio. Quando fiz o meu primeiro pós-
doutorado no tema, o meu orientador, um pensador conservador português
interessantíssimo, fez a seguinte observação: ‘Pedro parte de categorias de
Norberto Bobbio e não de categorias marxianas’. Isso é real. Inclusive, um
dos trabalhos que iniciou minha reflexão há muitos anos atrás foi o Contra os
Novos Despotismos: escritos sobre o berlusconismo – fui o primeiro no Brasil
a trazer o tema -, quando essa obra era apenas um conjunto de artigos que
ainda não haviam sido editados em um livro. Outro trabalho que eu tive
acesso, ainda em forma de artigos, foi ‘Os Poderes Selvagens: A Crise da
Democracia Italiana’ de Luigi Ferrajoli. É interessante como ambos os
autores identificaram uma nova forma de autoritarismo crescendo na Itália,
embora Bobbio caracterize o fenômeno como novos despotismos e Ferrajoli
como poderes selvagens ou processo desconstituinte. Também é notável
como Bobbio entendia o berlusconismo como uma experiência
universalizada, não restrita ao contexto italiano.

Também fui muito influenciado pelo pensamento de Giorgio Agamben, um
outro autor italiano que escreveu sobre Estado de Exceção. Pensadores
posteriores como Marie Goupy e Carpentier foram outros intelectuais que
me impactaram. Posteriormente aos meus primeiros estudos, tive contato
com a obra de Gunther Frankenberg, professor de Direito Público, Filosofia
do Direito e Direito Comparado na Universidade Johann Wolfgang Goethe em
Frankfurt. Um ponto de destaque em suas reflexões consiste em tratar a
exceção como técnica, o que eu acho muito intrigante. Ronald Dworkin
também observa esse fenômeno em seu trabalho ‘Is Democracy Possible
Here?’, no qual o conceito utilizado é o de perda do ‘common ground’.

Um fato curioso é que o meu primeiro artigo sobre ‘Autoritarismo Líquido’ é
de 2006 e naquela época Dworkin publicou ‘Is Democracy Possible Here?’.
Vários juristas e filósofos políticos observavam um fenômeno que resultaria
em uma possível crise da democracia constitucional no pós-guerra. Este é o
elemento jurídico mais relevante: uma crise na democracia constitucional,
uma crise nos direitos humanos, etc.

Para aprofundar mais o marco teórico, gostaria de citar Ernst Fraenkel. Este
é o autor do melhor livro que eu conheço que discute, no plano instrumental
da teoria do estado e da teoria do direito, como eram as ditaduras e regimes
autoritários no século XX. Trata-se do livro ‘The Dual State: A Contribution
to the Theory of Dictatorship’, uma contribuição à sua teoria das ditaduras,
em que Fraenkel demonstra como há uma tendência de achar que as ditaduras
são ‘revivals’ dos Estados absolutistas ou de polícia. Ele discute como essa
tendência é, na verdade, fruto de um equívoco. Existem autores do campo da
teoria geral do Estado e da teoria do direito que tratam as ditaduras como
estado de polícia, pura e simplesmente. Na realidade, não é assim.

O Estado absolutista se caracterizava pela total anomia, pela ausência de
norma reguladora do exercício do poder político. Talvez essa seja uma
definição possível, nos limites de uma perspectiva liberal, do que é
autoritarismo na modernidade. Isso porque, o autoritarismo opera na lógica
de sobrepor o poder político aos direitos. Em contrapartida, a noção de que
os direitos devem ser superiores ao poder soberano está presente na escola
ibérica da paz, no começo do século XVI, no pensamento dos huguenotes
franceses – depois, objeto de consolidação por John Locke – no decorrer do
século XVI, nas guerras religiosas quando praticamente lançava-se a ideia
de constituição e constitucionalismo.

Nesse contexto, surge uma definição válida até hoje, que também é adotada
por Bobbio em seus trabalhos sobre política: autoritário é o regime no qual
o poder político se sobrepõe aos direitos. No entanto, quando as ditaduras
começaram a surgir no século XX, ocorreu uma espécie de revival desse
mecanismo de poder. No plano instrumental não foi assim e é isso que
Fraenkel esclarece. No momento pós revoluções liberais, os mecanismos
autoritários são mais complexos. Nesse contexto, o autoritarismo se
caracteriza como um Estado duplo. Há também um Estado que não é
anômico e sim normativo, essencial para a manutenção e reprodução do
capitalismo e das relações econômicas. Por exemplo, este Estado regula as
relações de direito civil, as relações comerciais, as relações de família,
o direito penal comum que protege a propriedade e a liberdade, etc. Liberdade
e segurança no sentido físico. Em todas as ditaduras do século XX, desde o
nazifascismo até a ditadura militar brasileira, este mesmo Estado esteve
presente.

É notável como todas essas ditaduras tinham a característica de ter um
Estado normativo que convivia com o que Fraenkel chama de um Estado de
prerrogativa. Contudo, eu prefiro utilizar a tradição jurídica europeia e
denominar esse quadro como Estado de exceção, que convive em diferentes
campos – como o do direito público, dos direitos humanos, da constituição e
da instrumentalização dos direitos fundamentais – com uma suspensão do
direito e dos direitos. Assim cria-se uma zona de anomia. Inclusive esse é um
déficit, ao meu ver, na análise de Agamben. Ele não alcança essa
complexidade instrumental do estado de exceção. O estado de exceção não
é mera anomia, ele é convivência de um Estado normativo com anomia.

INB: É como se houvesse uma simultaneidade, não é?

PEDRO SERRANO: Exatamente. E isso é um elemento importante,
entendermos o porquê temos esse autoritarismo hoje em dia. Mas de fato,
nota-se que havia uma anomia declarada. Um exemplo ocorre na ascensão
do nazismo. O Estado de exceção é declarado primeiro por Hitler. Mas logo
depois o Parlamento aprova a Lei de Concessão de Plenos Poderes de 1933
que efetivamente instaura a ditadura hitlerista. No Brasil há o caso
emblemático da ditadura militar, com a edição dos Atos Institucionais AI-1,
AI-2, AI-3, AI-4, AI-5. Isso demonstra que havia uma declaração formal da
suspensão da constituição e dos direitos.

A presença dessas duas características – a duplicidade/convivência e a
declaração – pode ser observada nas ditaduras do século XX. Porém,
quando iniciei minhas pesquisas, comecei a observar que essa declaração
não havia mais na atualidade, ainda que o autoritarismo estivesse presente.
E ele está presente no interior do regime democrático. No plano
instrumental, se manifesta por meio de medidas de exceção e não por meio
de um governo de exceção. É por essa razão que digo que o ‘Autoritarismo
Líquido’ é fragmentário: não há mais concentração, não há mais a
declaração de uma suspensão de direitos da Constituição, não há mais a
figura do ditador e a figura da ditadura, embora a nova forma de
autoritarismo seja tão nefasta quanto a que existia no século XX.

Esse autoritarismo hoje opera por uma suspensão de direitos de forma muito
mais cirúrgica, eficiente e dirigida. O caso Lula é um grande exemplo, pois
houve um direcionamento da suspensão de direitos ao líder político da
esquerda brasileira, impossibilitando uma eleição realmente livre em 2018.
Na Hungria, na Turquia e em todos os lugares que essa forma de
autoritarismo líquido se apresentou, prevalece essa característica – a
produção cada vez mais intensa de medidas de exceção que vão erodindo
os direitos, a Constituição e a democracia. Mas não é uma suspensão direta
como havia nos governos de exceção. É uma erosão paulatina.

O Autoritarismo Líquido na Atualidade

INB: É possível identificar em grande parte da literatura nacional e
internacional esforços para caracterizar o autoritarismo nos tempos atuais.
Nesse sentido, ele têm comumente aparecido sobre a égide da opacidade e
da camuflagem, como se fosse uma espécie de autoritarismo velado e
menos explícito. O senhor considera esse raciocínio apto a descrever a
situação política brasileira dos últimos anos?

PEDRO SERRANO: Eu acho que sim. Os graus de intensidade são diversos,
uma vez que a democracia tem graus diferentes de intensidade em cada
país que utiliza de seu sistema. Isso é interessante quando utilizamos a
categoria do Autoritarismo Líquido, pois uma das consequências da liquidez
é justamente a modificação rápida e intensa do estado de coisas. A figura do
soberano e do inimigo mudam com facilidade e rapidez.

Como disse anteriormente, trata-se de uma prática muito mais cirúrgica;
não há uma suspensão geral de direitos de toda sociedade. Suspende-se o
direito daquele indivíduo ou grupo tido como inconveniente em
determinadas circunstâncias. Às vezes, esses grupos nem são
inconvenientes, mas tal prática é útil para estabelecer a ideia autoritária do
‘inimigo comum’.

A opacidade a que você se refere realmente existe, mas eu prefiro chamar
de liquidez. Porque ela sempre está no plano instrumental e o que me
interessa é o plano instrumental, como a coisa funciona. Às vezes o mesmo
órgão que produz a medida de exceção também pode produzir, na semana
seguinte, uma medida democrática. Isso mostra como as medidas de
exceção convivem no interior da democracia. Em um país como o Brasil,
houveram certos momentos em que tinha-se uma produção intensa de
medidas de exceção, o que leva a um governo mais autoritário do que outros
modelos de autoritarismo líquido ao redor do mundo. Porém, em outros
momentos isso não ocorreu. É por isso que é difícil utilizar essa figura fluída,
que reconhece que o autoritarismo não é mais condensado.

Não é fácil classificar e apontar ‘aqui tem uma ditadura, aqui não’. Essa
forma autoritária opera liquefazendo as fronteiras entre o que é democracia
e o que é ditadura. Existem outros nomes para esse fenômeno que eu não
adotei, mas eu podia ter adotado. Um exemplo é o conceito de democracia
iliberal, mas para mim isso precisa ser problematizado. Este é um termo
meio contraditório e que dialoga pouco com a teoria da tradição do direito
oriunda da europa continental, que mais nos influencia. Por isso, achei que
dialogar com a tradição do Estado de exceção e observar as suas mudanças
no século XXI era mais interessante. Chamar de Autoritarismo Líquido é uma
consequência desse processo. Mas o fato é que o nome não é muito
relevante, podemos até chamar de autoritarismo fragmentário.

Também seria possível dar outros nomes. Ainda assim, não uso a categoria
bonapartista. Marx talvez tenha sido o primeiro a identificar o Estado de
exceção na modernidade, embora não utilize a palavra, o conceito. É
evidente que há um diálogo com ele, mas não se trata de um pensamento
marxista ou marxiano. Então usar a categoria do bonapartismo não seria
adequado. Até porque eu acho que é possível haver Autoritarismo Líquido de
esquerda, como eu classifico a Venezuela, por exemplo.

Comunicação, Tecnologia e Tendências Autoritárias

INB: A sociedade hoje é atravessada por novas tecnologias de comunicação
em massa. Esse fenômeno coexiste com o aumento de tendências
autoritárias. Na sua opinião, qual é a relação do autoritarismo líquido com o
surgimento de novas tecnologias?

PEDRO SERRANO: Eu ainda não tenho um orientando que tope investigar
essa questão, sabe? É através dos nossos alunos que conhecemos as
novidades e na orientação acabamos aprendendo com eles. Mas eu posso
dizer alguns pontos que refleti sobre isso, embora sejam genéricos e não
tenham sido objeto de um estudo sistematizado.

Eu diria que toda a forma de existência humana possui linguagem. Nesse
sentido é sempre possível relacionar uma forma política à linguagem que ela
pertence e as suas características. Veja como as redes sociais, que na
minha opinião compõem o maior fenômeno que temos de comunicação
contemporânea, também têm uma característica fragmentária. As redes
não são formas comunicativas que atingem um todo na sociedade, elas
atingem bolhas, grupos sociais. Então, por exemplo, um Bolsonaro, um Hitler
ou um general latino americano, normalmente eram acompanhados de dois
ou três personagens que faziam parte da sua atuação comunicativa. O mais
comum era comunicar um caráter dual, era ser situação e oposição e, ao
mesmo tempo, transgressão. Então esse sujeito tanto era do sistema, uma
vez que era o governante, quanto era anti-sistema. O discurso de Hitler, é
exemplificativo: o seu inimigo era um mix de judeu, comunista, misturado
com o capitalismo financeiro. Portanto ao mesmo tempo que era o sistema
ele se direcionava contra o sistema.

Esses elementos estão presentes em Bolsonaro. Ele foi um governante,

o maior líder [‘Duce’] do país que proferia discursos anti-sistema. Então,
nessa dualidade sempre há a figura do populista autoritário. Mas hoje, o que
a gente tem é uma fragmentação disso. A extrema direita se adaptou por
suas próprias características muito facilmente a essa linguagem
fragmentária das redes sociais. Se o sujeito pertence ao agrobusiness, ele
se apresenta como empreendedor rural, um homem do campo que come
pastel, churrasco e gosta de música sertaneja; se ele opera no mercado, ele
se apresenta como alguém que defende o capitalismo liberal; se ele faz
parte de algum grupo religioso, ele se apresenta como um sujeito que
defende uma moralidade religiosa etc.

Eu acabo de ler um livro interesantíssimo do ativista antifascista Joe Mulhall
chamado ‘Tambores à Distância: Viagem ao Centro da Extrema Direita
Mundial’, no qual ele observa como a extrema direita se vale da mentira.
Em uma democracia, se você quer saber se uma pessoa é comunista, basta
perguntar, que ele vai dizer ‘sou comunista’. Agora, se você quer saber
se alguém é facista, a pessoa não vai dizer. A extrema direita utiliza
mecanismos que trazem opacidade aos seus pontos de vista,
principalmente quando é observada. Ela esconde seus pontos de vista e
muitas vezes mente a respeito deles. Mulhall, ao observar essa
característica, adota como método de pesquisa a infiltração. Ele se infiltra
em grupos de extrema direita e narra essa experiência com uma linguagem
mais jornalística do que academicista.

Assim, a extrema direita se adapta bem aos contextos criados pelas novas
tecnologias. A função da mentira é reduzir os efeitos sociais da sua posição.
Quem é de esquerda no Brasil ou progressista de centro-esquerda, sabe
muito bem do que eu estou falando. Assumir posições sempre traz um ônus
social. Se você for favorável ao governo Lula, há um ônus social, se você for
bolsonarista, também. A internet possibilita reduzir esse ônus, porque
permite uma atuação anônima, sem identidade estabelecida: as pessoas
não estão presentes fisicamente. A linguagem fragmentária também
contribui para a complexidade da situação.

Na internet é possível estabelecer mecanismos de comunicação
fragmentários, que tornam mais difíceis a percepção dessa contradição.
O militante de extrema direita, nesse ambiente, consegue mais opacidade,
reduz ou até elimina o ônus social de assumir posições de ódio ou posições
contrárias à qualquer visão humanista. Então, esses mecanismos de
comunicação se adaptaram excepcionalmente bem à extrema direita, que
sempre teve como característica a mentira no sentido amplo da palavra.
Promove-se uma perda da referência comum. Para quem é humanista é mais
difícil, porque produz-se um tipo de mensagem que é muito mais difícil de ser
fragmentada. Assim, a expansão do autoritarismo líquido é facilitada, pois as
formas de comunicação são líquidas e fragmentárias.

*Pedro Serrano é graduado em Direito, Mestre e Doutor em Direito do Estado
pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), com Pós
Doutoramento pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa.
É professor no curso de Direito da Pontifícia Universidade Católica de
São Paulo (PUC-SP).

https://inb.org.br/autoritarismo-liquido-com-pedro-serrano/
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