Luis Felipe Miguel: De um golpe a outro

Tempo de leitura: 7 min
Diego Rivera, O levante (1931)

De um golpe a outro

Precisamos lembrar do golpe que faz aniversário em 1.º de abril para enfrentar os golpistas de hoje.

Por Luis Felipe Miguel, em seu Substack

O presidente Lula determinou, mais uma vez, que o governo silencie sobre o aniversário do golpe de 1964. Segundo a imprensa, o objetivo é apaziguar os militares, que, em troca, também seriam discretos nas tradicionais comemorações em exaltação à ditadura que eles comandaram.

Seria uma barganha quase justa, se não estivessem em jogo algumas questões fundamentais: o respeito à democracia, a primazia do poder civil.

Trata-se de um grave erro, que se repete ao longo de todo o atribulado e incompleto processo de democratização do Brasil. Contemporizar com a ideologia antidemocrática da cúpula militar pode evitar tensões no curto prazo, mas é garantia de que o desejo de tutela sobre o poder civil reapareça ao dobrar a esquina. É o proverbial “empurrar para debaixo do tapete”.

Durante boa parte da Nova República, ainda era possível julgar que estava dando certo. Os civis governavam e os militares davam uns grunhidos aqui e ali, mas não incomodavam muito.

Parecia que bastava deixá-los viver em um mundo à parte, com suas escolas que ensinavam uma versão própria da história, a violência normalizada em suas casernas, os privilégios na forma de pensão e outros penduricalhos e, sobretudo, impunidade.

Impunidade em relação ao passado, graças à anistia autoconcedida, e também ao presente, com sua justiça própria, com atribuições alargadas (julgando também crimes cometidos contra civis e tipificados nas leis civis) e quase sempre camarada.

O fato é que a experiência da ditadura liquidou de vez qualquer traço de respeitabilidade que os militares pudessem manter no Brasil. Não custa lembrar que, tão logo tomaram o poder, os golpistas de 1964 promoveram uma limpa nas próprias Forças Armadas, eliminando todos os oficiais legalistas ou progressistas.

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Formou-se um monolito ideológico, que persiste até hoje, com um discurso anticomunista envolvendo uma profunda desconfiança em relação ao povo, à cultura e aos processos democráticos. De fato, se algo mudou na mentalidade militar, da ditadura para cá, foi o esvaziamento do nacionalismo desenvolvimentistas. Hoje, nossos generais estão satisfeitos com uma posição subordinada no cenário internacional e aderem sem pudores ao credo ultraliberal.

Continuam orgulhosos da ditadura e certos de que têm o direito de mandar no país.

Por quanto tempo pretendemos conviver com militares que julgam que podem cercear as ações do poder civil?

Pior ainda: por quanto tempo pretendemos conviver com militares que se sentem melindrados com a defesa da democracia e o repúdio ao terrorismo de Estado?

Na verdade, o repúdio à ditadura devia ser pré-requisito para qualquer um que quisesse ascender ao oficialato superior.

Claro que é difícil pensar nisso quando o ministro da Defesa nomeado por Lula é alguém que apoiou o regime militar – e, até onde se tem registro, nunca fez uma autocrítica desta posição.

A ditadura nos deu duas décadas de violência, arbitrariedades e corrupção desenfreada. Outras décadas se passaram desde então. A cúpula fardada não foi capaz de fazer uma autocrítica – nem do golpe, nem da tortura, nem da censura, nem da concentração de renda, nem do entreguismo, nem da roubalheira. Quase 40 anos após a redemocratização, o Estado brasileiro mantém Forças Armadas que ainda têm orgulho e nostalgia da ditadura.

Nos governos civis, os militares lutaram, com sucesso, para manter impunidade, capacidade de influência política (leia-se poder de ameaça), privilégios corporativos injustificáveis e acesso a bons negócios.

Quando um ex-oficial subalterno de poucas luzes mas metido a malandro teve chance de chegar ao poder, os generais não tiveram dúvidas. Colaram nele, em busca de vingança, sinecuras e oportunidades de negócio.

Tráfico de drogas, contrabando, receptação, contratos superfaturados, esquemas com as milícias, mas também genocídio yanomami, sabotagem às medidas de saúde pública, golpismo, fábricas de mentiras – em suma, tudo, no governo Bolsonaro, teve dedo de militares.

E todas as vezes que precisam demonstrar algo de sua expertise profissional, as Forças Armadas brasileiras dão vexame.

Foi o caso da missão no Haiti. O PT no governo ansiava combater o “desemprego estrutural” das Forças Armadas – a ideia, desenvolvida por estudiosos das relações civis-militares, de que a intervenção na política nacional é uma tentação muito grande para oficiais que têm pouco o que fazer em relação às suas tarefas específicas de proteção da integridade do território nacional. Assim, é necessário dar a eles com que se ocupar: quase uma terapia.

O esforço levou seja à participação em missões de paz das Nações Unidas, como no Haiti, seja ao auxílio em missões de segurança pública sob determinação da autoridade civil, como no Rio.

O resultado, já se sabe, foi o oposto do esperado. De Augusto Heleno a Braga Netto, os chefes destas missões tornaram-se depois líderes do retrocesso democrático no Brasil. Ao que parece, em vez de estabelecer um novo profissionalismo, elas reforçaram a tendência salvacionista tão presente no espírito militar brasileiro. Reforçaram também a impressão de que nossos militares são bem pouco competentes naquele que deveria ser seu metiê.

Teve um tempo em que essa ineptude profissional era atribuída à formação bacharelesca. O desempenho acadêmico pesaria muito para as promoções, mais que os resultados obtidos em campos de batalha inexistentes, e o Brasil formaria “intelectuais fardados”.

Bom, se um dia foi assim, certamente não é mais. De Mourão a Heleno, de Villas-Boas a Braga Netto, na cúpula militar imperam a ignorância e a incultura.

Um país com as dimensões e as riquezas do Brasil não pode prescindir de forças de defesa próprias. Mas é urgente traçar uma política de regeneração das Forças Armadas, expurgando a cúpula, punindo corruptos e golpistas, mudando a educação militar e as políticas de promoção.

Pena que Lula prefere manter, no Ministério da Defesa, um civil frouxo e conivente com todos os desmandos fardados.

Exatamente porque a questão militar está longe de ser equacionasda, é preciso lembrar do golpe.

No tempo em que apoiar abertamente a ditadura não tinha virado modinha, em que ninguém tinha coragem de apresentar torturadores como Brilhante Ustra como ídolos, seus defensores gostavam de dizer que ela não tinha sido tão ruim. “Ditabranda”, chegou a falar a Folha de S. Paulo.

Não é verdade. A ditadura silenciou, perseguiu, exilou, baniu, prendeu, torturou e matou seus opositores. Milhares de brasileiros foram suas vítimas. O crime que cometeram? Discordar dos generais no poder, sonhar com um país diferente.

Também não é correto dizer que só se tornou ditadura “de verdade” após o AI-5, em 1968. Desde o início, as violências estiveram presentes.

Os expurgos no funcionalismo começaram no dia seguinte ao golpe, nas Forças Armadas, como já dito.

Todos os oficiais que defendiam a obediência à Constituição e foram contra o golpe foram expulsos. Mas também no Judiciário, no Itamarati, na educação, no serviço civil em geral foram eliminados muitos daqueles considerados excessivamente democratas, críticos e independentes. As lideranças operárias foram perseguidas, os sindicatos foram expurgados – desde os primeiros dias do novo regime.

O dirigente comunista e herói do povo brasileiro, Gregório Bezerra preso em quartel do Recife em 1964

A censura à imprensa e às artes foi rigorosa. Tratava-se de afastar o pensamento crítico e também de impedir a denúncia dos malfeitos do regime. A lenda de que “não havia corrupção” na ditadura (quando na verdade foi um dos períodos mais corruptos de nossa história) é um dos frutos da censura.

A repressão na educação fazia parte do mesmo esforço de cerceamento do pensamento crítico. A ditadura fez o que pôde para destruir a escola pública, contribuindo para criar a indústria do ensino pago no país. Informantes infiltrados nas universidades impediam a livre discussão acadêmica. O famigerado decreto 477, em 1969, criminalizou a discussão política entre os estudantes.

A política econômica – que gerou o propagandeado “milagre” – era baseada no aumento da taxa de exploração. Salários baixos, condições de trabalho inseguras e desrespeito aos direitos eram garantidos com o silenciamento dos sindicatos, sob risco de intervenção cada vez que ousavam defender os trabalhadores.

Uma astúcia da ditadura empresarial-militar foi manter um simulacro de competição eleitoral. Tinha eleição, embora não para os cargos mais importantes, as regras mudassem conforme as conveniências do regime, o debate fosse cerceado, eleitos indesejáveis tivessem seus mandatos cassados discricionariamente, o Poder Legislativo pudesse ser fechado quando os generais achavam conveniente, boa parte da legislação fosse imposta na forma de medidas de exceção.

O simulacro de democracia não apenas servia a fins de propaganda como dava ao regime um instrumento para medir o ânimo da população.

O resultado foi que, após os mais de 20 anos de regime autoritário, o Brasil se encontrava com um novo sistema partidário e uma nova elite política – que se havia acostumado agir sob tutela de poderes mais fortes.

Uma parte das dficuldades da nossa transição se explica por isso.

A falta de enfrentamento das consequências da ditadura e, em particular, a falta de punição para todos os responsáveis pelos crimes nela cometidos estão entre os fatores principais da debilidade da democracia no Brasil.

E o golpe de 1964 e a ditadura que ele inaugurou inspiram – algumas vezes ostensivamente, outras de forma velada – os golpistas de hoje.

A desmoralização profunda das Forças Armadas, por seu envolvimento nas lambanças bolsonaristas, abriu a chance de agir – de punir golpistas e corruptos, de mexer na formação dos oficiais, de reafirmar valores básicos (como o que diz que militares não se metem em política), de reforçar o poder civil.

Infelizmente, viciado em apaziguar, capitular e recuar, o governo optou por despediçar a oportunidade.

O presidente Lula, que assumiu tendo como maior compromisso reconstituir as condições para a democracia no Brasil, se encolhe diante daqueles que mantêm uma faca no pescoço de qualquer governo democrático que surja por aqui.

Enfrentar a questão militar não é fácil – ninguém diz que é. Mas, se ela não for enfrentada, qualquer democracia que se queira construir será capenga, débil e efêmera.

É preciso educar os militares para o respeito ao poder civil e à democracia, o que exige disposição para enfrentamentos que não podem mais ser adiados.

Falar da ditadura é o primeiro passo para garantir a democracia. É necessário. Mas não é suficiente.

Por muito tempo, invejamos a Argentina, em que a memória da ditadura sempre esteve presente. A Argentina em que os militares saíram do poder avacalhados (pelo fiasco nas Malvinas) e sem condições de impor grandes exigências aos civis que os sucederam, a Argentina que pôs os generais no banco dos réus e levou ex-ditadores para a prisão, a Argentina em que o drama dos filhos dos oposicionistas mortos nos porões da ditadura e de suas famílias nunca deixou de ser tema de jornais, filmes, programas de televisão.

Mas em 2023 o eleitorado argentino escolheu como presidente um farsante extremista, que tem como vice alguém cujo principal ponto da agenda é o revisionismo histórico e o perdão aos condenados pelos crimes da repressão política.

Não basta falar: é preciso disputar os valores ético-políticos.

O governo que nós elegemos devia liderar essa disputa, não se amedrontar.

É triste a ausência de Lula e do governo, mas vamos continuar lutando. Lembrando, ensinando, mostrando. Repetindo a lição, mesmo com o cansaço de ter que voltar ao básico: tortura é ruim, direitos devem ser respeitados, justiça e igualdade são essenciais para uma boa sociedade, as liberdades devem estar ao alcance de todas e todas.

Para que nunca mais se repita.

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Comentários

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marcio gaúcho

Os militares estão sempre à espreita, na busca de novas recompensas financeiras e materiais, facilidades e posição destacada junto aos poderes. De preferência acima deles. O governo Lula foi eleito por uma minoria de votos majoritários para impedir que o bolsonarismo/nazifascismo tomasse raízes e assento. Como esquerda não existe, pois para se manter governando tem de se submeter ao centro e à direita, em coalisão. Os “verde-olivas” sempre serão fascistas, pois o são em todo o planeta. Porém, aqui são pouco inteligentes, mas muito espertinhos!

Zé Maria

1º de Abril: Dia do Bolsonarismo, Sem Dúvida.

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