Como Bolsonaro planejou extinguir a reserva Yanomami
Por Lira Neto*, no Diário do Nordeste
O plano teve início há cerca de 30 anos. Em 19 de outubro de 1993, uma terça-feira, em Brasília, o deputado Jair Bolsonaro, do Partido Progressista Reformador (PPR), legenda então liderada nacionalmente por Paulo Maluf, apresentou, na Câmara Federal, um projeto de decreto legislativo.
Protocolado sob o número 365, a proposição buscava tornar sem efeito um decreto presidencial, homologado no ano anterior por Fernando Collor de Mello sob recomendação da Funai, criando a reserva Yanomami. O projeto de Bolsonaro, que à época exercia o primeiro mandato de deputado federal, tinha apenas dois curtos artigos.
“Torna sem efeito o Decreto de 25 de maio de 1992, que homologa a demarcação administrativa da terra indígena Yanomami”, dizia o primeiro deles.
“Este Decreto Legislativo entra em vigor na data de sua publicação, revogando as disposições em contrário”, sentenciava o segundo.
Nos meses anteriores à apresentação do projeto, o deputado novato estivera em destaque nos jornais, por ter sugerido, em visita ao município gaúcho de Santa Maria, o fechamento do Congresso Nacional e a implantação de uma ditadura no país, nos moldes da instituída no Peru por Alberto Fujimori, segundo noticiou o jornal Zero Hora.
“Sou a favor, sim, de uma ditadura, de um regime de exceção”, confirmou, em plenário, quando confrontado pelos colegas na volta à capital federal.
De acordo com o que ficou registrado nos Anais da Câmara, choveram protestos, apartes, indignações. Foi um escarcéu.
“Corremos o risco de promover o deputado Jair Bolsonaro se começarmos a falar demais sobre ele”, observou no calor da contenda, profético, um parlamentar.
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Ameaçado de cassação por falta de decoro, a figura caricaturesca de Bolsonaro foi motivo de reportagens, assunto para inúmeras notinhas em colunas políticas, convites para entrevistas em programas de tevê. A exposição gratuita alimentou novas bravatas.
“Para acabar a crise brasileira, basta três batalhões de infantaria”, argumentou ele à época, segundo o Jornal do Brasil, atraindo ainda mais atenções públicas para si.
Publicado na edição do Diário do Congresso Nacional de 10 de novembro de 1993, o projeto de Bolsonaro para a extinção da reserva Yanomami dormitou nas comissões internas da Câmara e, aparentemente natimorto, foi arquivado ao final da legislatura, conforme previsto no artigo 105 do regimento da casa.
Em 1995, reeleito como o terceiro deputado federal mais votado no Rio de Janeiro, Bolsonaro solicitou o desarquivamento da proposição. E conseguiu.
Encarregado de reanalisar o texto na Comissão de Defesa Nacional, o deputado Elton Rohnelt, do Partido Social Cristão (PSC) de Roraima, ex-diretor de uma madeireira e dono de uma empresa de mineração, deu parecer positivo.
No currículo extraparlamentar de Rohnelt constava a invasão, na década de 1980, sob sua assumida liderança, por parte de 40 mil garimpeiros às terras dos Yanomamis. De acordo com o relatório da Comissão da Verdade, houve centenas de mortos em decorrência do ataque.
Bolsonaro tinha pressa. Com apoio de 257 colegas deputados, o que lhe garantia o número regimental necessário, solicitou urgência para a votação do projeto em plenário.
Em 30 de agosto de 1995, o presidente da Câmara, Luis Eduardo Magalhães, do Partido da Frente Liberal (PFL), acatou a solicitação, sob protestos da bancada oposicionista.
Fernando Gabeira, deputado pelo Partido Verde (PV), ponderou: tema tão sensível não poderia ser analisado de afogadilho.
“A demarcação das terras indígenas é tão delicada quanto a promoção da paz entre os palestinos e israelenses”, comparou, de acordo com o registro dos anais parlamentares.
“Há vidas humanas extremamente vitimadas por uma política de genocídio em nosso país”, advertiu a deputada Socorro Gomes, do Partido Comunista do Brasil, eleita pelo Pará.
O também paraense Gerson Peres, correligionário de Bolsonaro do PPR e votando pela liderança, divergiu da conterrânea: “Não temos mais nada a discutir, isso é o que queremos. Acompanhamos o nosso companheiro deputado Jair Bolsonaro. O PPR, portanto, encaminha o voto ‘sim’”.
Após intensa discussão, o regime de urgência foi rejeitado: 290 deputados votaram contra; 125, a favor. Houve 10 abstenções.
Depois de regressar às comissões internas, recebendo pareceres negativos dos deputados Fernando Gabeira e Almino Afonso (PSB), o projeto foi mais uma vez arquivado. Nem assim Bolsonaro desistiu do objetivo.
“A Cavalaria brasileira foi muito incompetente”, ele esbravejou, na sessão da Câmara de 16 de abril de 1998, então filiado ao Partido Progressista Brasileiro (PPB). “Competente, sim, foi a Cavalaria norte-americana, que dizimou seus índios no passado e hoje em dia não tem esse problema no país”.
Eleito pelo PPB para um terceiro mandato no final daquele mesmo ano, Bolsonaro repetiu a manobra e pediu um segundo desarquivamento do projeto. De novo, a proposta estacionou nas instâncias internas, sendo arquivada pela terceira vez ao final daquela legislatura.
No início de 2003, decorridos dez anos da proposição inicial, já no quarto mandato e filiado ao Progressistas — fusão do PPR com o Partido Progressista (PP) —, o deputado continuava com a mesma ideia fixa.
Solicitou mais um desarquivamento, mas o projeto de extinção da reserva Yanomami não avançou na Comissão de Constituição e Justiça e Cidadania. Foi de novo posto de molho, para ser arquivado, em definitivo, no final de 2007, após 14 anos de idas e vindas.
Passaram-se outros dez anos. Em 2017, candidato à presidência da República pelo Partido Social Liberal (PSL), Bolsonaro deixou claro o propósito de dar combate aos povos originários: “Não vai ter um centímetro demarcado para reserva indígena”, anunciou.
No cargo de presidente, em 2020, propôs o Projeto de Lei 191 — o “Projeto de Lei do Genocídio”, como batizado pelos adversários —, também assinado pelos ministros das Minas e Energia, almirante Bento Albuquerque, e da Justiça, Sergio Moro, autorizando o garimpo e o agronegócio em áreas indígenas.
Pressões da sociedade civil e das comunidades indígenas mantiveram o texto na gaveta. Enquanto isso, conforme revelou o site The Intercept Brasil, 21 ofícios com pedidos de ajuda dos yanomamis foram ignorados.
Em 2021, 28 anos depois de ter dado entrada na Câmara do projeto para a extinção da reserva Yanomami, Bolsonaro esteve pessoalmente em uma área de garimpo ilegal, instalada dentro da terra indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima.
Bem ali ao lado, os Yanomamis definhavam. Na ocasião, o ex-presidente pagou as contas da viagem e da confraternização com os garimpeiros — 163 mil reais — com o cartão corporativo.
O resultado é o que estamos vendo todos nós, estarrecidos. De extinção da reserva, o plano passara a ser, tudo indica, o de extermínio total dos Yanomamis.
*Lira Neto é escritor e jornalista, mestre em Comunicação e Semiótica pela PUC São Paulo.
Leia também:
Pedro Carvalhaes: A indiferença bolsonarista à tragédia Yanomami
Jeferson Miola: Genocídio do povo Yanomami clama por justiça de transição
Comentários
Zé Maria
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“Razões Jurídicas para Responsabilização Penal
pelo Genocídio Yanomami”
Por Lenio Luiz Streck*, em Consultor Jurídico (CONJUR)
Dias atrás escrevi artigo sobre razões jurídicas (Teoria do Delito) para responsabilização dos autores dos atos golpistas do dia 8 de janeiro (https://www.conjur.com.br/2023-jan-13/lenio-streck-teoria-delito-motivos-decisao-stf)
Dias depois Juarez Tavares me instigou a escrever sobre o “caso yanomami”, a partir de um comentário do jornalista Demétrio Magnoli na Globo News [“Pausa para Vomitar”,
diria o saudoso Jornalista Paulo Nogueira].
Juarez se diz chocado — corretamente — com o que disse Demétrio, para quem o caso dos yanomamis não caracterizaria crime de genocídio por ausência da intenção de extermínio do grupo étnico.
Veja-se o grau de responsabilidade de um comentarista político.
Lembremos dos estragos causados pelos comentaristas (juristas e jornalistas) acerca do sentido do artigo 142 da CF.
Deu no que deu.
Sobre isso, escrevi aqui tratando da Hermenêutica de Curupira (https://www.conjur.com.br/2023-jan-23/lenio-streck-hermeneutica-curupira-viva-oab-ba).
Todos conhecemos a lei do genocídio (Lei 2.889/56, com suas alterações) e o Estatuto de Roma, que empregam a expressão “intenção” em sentido genérico.
As palavras possuem sentido de acordo com o contexto.
Disputar uma cadeira na Câmara não quer dizer “disputar um pedaço de um móvel do parlamento”!
A polifonia das palavras a gente aprende quando, saindo para a rua pela primeira vez, ouvimos alguém dizendo “mamãe, mamãe”…
Damo-nos conta, então, de que a nossa mãe não é a única.
E que manga pode ser fruta, peça de roupa e goleiro do Botafogo.
E aqui entra a ciência penal, da qual Juarez é expert, seguramente o maior dos experts que conhecemos.
Essa expressão — intenção — tem que ser adequada aos conceitos de dolo do Código Penal, que servem de ‘holding’ para todas as leis especiais.
Isso é velho.
O dolo direto pode comportar duas espécies:
dolo direto de primeiro grau, quando o sujeito atua e dirige sua vontade no sentido do alcançar um objetivo final,
e dolo direto de segundo grau, quando o agente atua e dirige sua vontade para realizar um fato que constitui uma circunstância necessária à produção do objetivo final.
Depois, porém, da introdução da teoria da imputação objetiva no direito penal, alimentada pelo fundamento do aumento do risco, como proposto por Roxin, alterou-se um pouco a definição do dolo direto de segundo grau, ‘para comportar a atuação do agente, que dirige sua vontade para realizar um fato que encerra uma condição de risco que irá conduzir’, com certeza, ao alcance do resultado final.
Assim, com Juarez, é possível dizer, contrariando Demétrio, que a atuação do governo, sob o comando de Bolsonaro, com suas ações, embora não se dirigisse à matança direta dos indígenas, ‘materializou-se na realização de condições de risco que, certamente, conduziriam ao resultado de extermínio do grupo étnico’.
E foi o que aconteceu.
Onde se enquadra, então, a intenção de que trata a lei do genocídio?
No assim denominado dolo direto de segundo grau.
Isto é, Bolsonaro — e seus coautores — ao permitirem o garimpo, ao deixar de mandar socorro, ao incentivar a invasão e degradação das condições ambientais, ‘dirigiram sua vontade no sentido de realizar condições de risco que certamente levariam o grupo à extinção’.
Por isso Demétrio não tem razão.
Juarez Tavares é quem tem razão.
O enquadramento é bem possível.
E nem se trata de invocar dolo eventual.
O que houve foi uma ‘ação ilegal consciente e com consciência de que certamente produziria um resultado como a morte e doenças de uma etnia’.
O resto todos sabem.
* Lenio Luiz Streck é jurista, professor, doutor em Direito,
autor de “Hermenêutica Jurídica E(m) Crise e Verdade e Consenso”.
https://www.conjur.com.br/2023-jan-13/lenio-streck-teoria-delito-motivos-decisao-stf
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