Juan Torres López: E se o caso de Trump não for uma simples loucura pessoal?
Tempo de leitura: 9 min
E se o caso de Trump não for uma simples loucura pessoal?
Por Juan Torres López*, no Rebelión
A opinião que mais aparece quando ouço falar de Donald Trump, mesmo de acadêmicos ou pessoas bem informadas, é que ele é louco.
É verdade que o comportamento dele, tão diferente do daqueles a quem nos acostumamos a ver como líderes mundiais, nos leva a pensar assim.
Ele é errático, bizarro, rude, sem instrução, um mentiroso compulsivo, sem vergonha e grosseiro, não tem a menor empatia com os fracos e se orgulha de governar o país mais poderoso do mundo como se fosse sua agência imobiliária.
Ele admite que quer ser um ditador, ignora as decisões judiciais contra ele, insulta seus adversários sem compaixão ou restrição e os ameaça, e até despreza e humilha seus próprios parceiros.
Suas ideias são extremistas, faz alarde de sua religiosidade e seus valores morais, quando seu relacionamento com prostitutas e prostíbulos de todos os tipos é conhecido.
Sua vida e trajetória comercial é a de um personagem sem princípios ou limites, obcecado em conquistar quem está à sua frente. Inúmeras biografias e documentários já expuseram isso, e basta vê-lo em ação para ver seu jeito de ser, e como ele age e trata outras pessoas.
No entanto, temo que seja errado pensar que o que ele está fazendo e o que fará mais tarde é simplesmente expressão de loucura, de seu comportamento pessoal aberrante e reacionário.
Pode ser que Trump seja de fato um louco, um bilionário que pode dar-se ao luxo de qualquer capricho e se gabar como um pavão do poder que tem, sendo, como é, tão ignorante.
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Eu me inclino a pensar que o que Donald Trump está fazendo é muito mais do que um comportamento pessoal, e a melhor prova disso é que as ações que ele realiza vêm de longe, antes mesmo, inclusive, de que ele aspirasse a ser presidente.
“Em meus dois últimos livros, Más difícil todavia (2023) e Para que haya futuro (2024), escrevi em detalhes sobre o que acho que está acontecendo e por que Trump está fazendo o que está fazendo. Então, vou resumir aqui muito brevemente o que penso.”
Primeiramente, tendo a pensar que Trump é apenas mais uma peça de um processo que vem de mais longe com o objetivo de desmantelar democracias e sistemas de legitimação que, desde os anos oitenta do século passado, geraram a aceitação pelas classes sociais empobrecidas dos processos que as haviam despojado.
A razão ou necessidade de fazê-lo é simples: o nível de concentração de riqueza e desigualdade alcançado é tão extraordinário que já é incompatível com a democracia representativa e o debate social transparente.
Alguém tão insuspeito de esquerdismo como Martin Wolf explicou e documentou isso perfeitamente em seu livro A Crise do Capitalismo Democrático (Deusto, 2023).
Em segundo lugar, considero que a nova presidência de Trump é mais um momento de um processo de desglobalização e protecionismo que se arrasta há muito tempo, embora agora esteja certamente decorrendo de uma forma mais exagerada e radical.
Contabilizado em seu sentido mais amplo, em Alerta de Comércio Global foram registradas quase 59.000 medidas restritivas ao comércio em todo o mundo desde 2009.
Como acabei de lembrar em um artigo recente, Obama já foi descrito por The Wall Street Journal como “um presidente protecionista”.
Biden não apenas não alterou as medidas que Trump havia adotado em seu primeiro mandato, senão que até as ampliou em alguns casos e, sobretudo, com a China.
Escreveu-se sobre ele que praticava “protecionismo cortês” e “educado” e que sua política comercial era “trumpismo com rosto humano”, sem “tweets raivosos ou alegações absurdas, mas com tarifas de segurança nacional”.
É verdade que Trump exacerbou a política protecionista (resta saber até onde ela vai), mas é um erro acreditar que isso é apenas “coisa dele”.
Creio que temos de ler bem o que Donald Trump está fazendo agora. Quando ele alardeia pomposamente ao mundo que impõe tarifas mesmo a uma ilha onde vivem apenas pinguins ou a países com os quais os Estados Unidos quase não têm comércio, ele não está fazendo isso porque está implementando uma nova política comercial, mas para deixar patente a maneira diferente pela qual esse poder com a vontade de permanecer sendo imperial vai se dirigir ao mundo a partir de agora.
Ou melhor, ao universo, porque ele fala de uma “tarifa universal”, termo que pode não ser acidental quando os grandes capitais tecnológicos estão planejando se apropriar do espaço, de outras estrelas e asteroides, para fazer negócios.
Em terceiro lugar, o que Trump está fazendo mais claramente é exonerar o capital, na medida do possível, dos custos que as mudanças climáticas e a desigualdade exagerada que foi gerada nas últimas décadas inevitavelmente terão.
Suas declarações a esse respeito podem parecer espalhafatosas, exageradas, incrivelmente negacionistas e até desumanas, dado o desprezo com o qual fala sobre pobreza, ou as medidas que ele tomou em questões ambientais, sanitárias e sociais.
Contudo, quanto tempo levou para as grandes empresas suspenderem seus programas de diversidade e inclusão? Quais grandes líderes empresariais expressaram sua oposição às medidas de Trump? Onde estão as corporações que falavam de capitalismo responsável com rosto humano?
Como se explica que, ao longo do percurso, todas as boas intenções e programas de investimento que eles tinham até poucos dias atrás para combater as mudanças climáticas estejam sendo eliminados?
Como é possível ou é explicado que tenha bastado algumas declarações e alguma ordem executiva de Trump para que essas questões não fossem mais consideradas uma ameaça?
Por fim, também acho que o que Trump está fazendo é muito semelhante, senão o mesmo, àquilo que outros presidentes anteriores, e principalmente Biden, já haviam começado a fazer para lidar com o declínio do império dos EUA, embora seja verdade que, agora, de forma estrondosa e em meio a insultos e ameaças.
Não nos esqueçamos que foi Biden quem sabotou o gasoduto Nord Stream, uma infraestrutura vital para um de seus grandes aliados, cometendo um ato que, se outros o tivessem feito, teriam sido processados como terroristas.
O que estamos começando a ver (a cada dia de modo mais claro e aberto) é como os Estados Unidos tentam salvar seus móveis quando o modelo que, desde os anos oitenta do século passado, vem permitindo-lhe viver de empréstimos gratuitos perante o resto do mundo.
Seria patético e risível, se não fosse pelo sofrimento humano que isso acarreta, ver como o governo dos Estados Unidos trapaceia ao contabilizar os saldos externos, registrando apenas os balanços comerciais e deixando de lado os de serviços e capitais, que é onde está hoje o coração do comércio internacional.
Ou esquecendo que, se tem déficits comerciais com muitos países, não é por culpa deles, como diz Trump, mas porque as empresas estadunidenses foram a terceiros países para ganhar mais dinheiro, e de lá exportam o que poderia ter sido computado como receita de exportação dos EUA, se tivessem permanecido em seu país.
Ao concluir a Segunda Guerra Mundial, os Estados Unidos detinham mais de 80% do ouro do planeta, seu PIB era equivalente à metade do conjunto de todos os países, e controlava 60% do comércio mundial e quase 50% dos investimentos diretos do mundo.
Foi-lhes fácil fazer que aceitassem que sua moeda funcionasse como reserva de valor e garantir sem problemas sua total conversibilidade em ouro.
Entretanto, com o passar do tempo, os países que haviam sido quase totalmente destruídos na guerra começaram a ressurgir e suas indústrias se tornaram poderosas, expandindo sua produção e exportações.
O dólar entrou em colapso e, como Yanis Varoufakis nos lembrou em um artigo recente, Nixon deu um brutal golpe de mão em 1971. Na minha opinião, muito mais difícil e prejudicial do que o que Trump está dando neste momento, e que tantas pessoas estão qualificando como “o maior golpe da história em comércio internacional”.
Nixon primeiro desvalorizou o dólar e depois acabou com sua conversibilidade em ouro, forçando assim sua moeda a ser usada sem a necessidade de a economia dos Estados Unidos garanti-la, não já com o metal precioso, mas nem mesmo com produção ou investimentos.
Vocês podem imaginar se tivessem uma máquina em casa que emitisse as notas verdes que quase todo mundo gostaria de ter em mãos para comerciar?
Quem seria capaz de resistir a tal privilégio e não contrair dívidas constantes, desde que pudesse imprimi-las sem quaisquer limitações?
É por isso que se diz que os líderes dos Estados Unidos confessam aos dos outros países: o dólar é a nossa moeda, mas é um problema de vocês.
Apesar disso, mesmo assim não foi possível resolver a crise estrutural que vinha ocorrendo e que constituía um perigo existencial para o capitalismo (entre outras razões, por causa da existência alternativa e ameaçadora da antiga União Soviética).
Os conflitos se multiplicavam, os trabalhadores estavam ganhando cada vez mais força e os salários disparavam, a produção em massa não era mais vendida, a inflação aumentava e os lucros caíam…
O edifício que havia permitido aos Estados Unidos se consolidar como a grande potência que dominava o mundo estava desmoronando.
Outro presidente republicano, Ronald Reagan, se encarregou de tomar medidas e adotar outra que foi também muito mais brutal e prejudicial para o resto das economias do que as atuais de Donald Trump: o Federal Reserve disparou as taxas de juros (chegaram a 20% em 1981), afogando a produção, multiplicando o desemprego e a dívida e provocando deliberadamente uma crise generalizada.
Mais uma vez, para manter seu poder de outra maneira, os Estados Unidos sacudiram a poeira de suas costas e descarregaram sobre os outros todo o peso dos problemas que haviam sido produzidos pelo regime em que se baseava seu poder.
Repito que as bravatas vazias de Trump, suas declarações grosseiras, a forma tão cientificamente inconsistente de fazer propostas e a recusa em levar em conta um único de seus potenciais efeitos adversos, podem nos induzir a considerar que estamos diante de um histriônico cuja loucura veio à tona.
Eu mesmo, às vezes, sou tentado a simplificar meu pensamento e acreditar que é tão somente isso o que há diante de mim.
Ainda hoje li um brilhante comentarista da política estadunidense, Roger Senserrich, afirmando que “as elites econômicas dos Estados Unidos estavam atônitas diante da dimensão do desastre”.
Talvez ele tenha razão, mas tenho muita dificuldade em acreditar que tudo o que Trump faz possa ser realizado contra o poder econômico.
O que vejo, ao contrário, é que a seu redor estiveram e estão as pessoas mais ricas do mundo, aquelas que com seu financiamento extraordinariamente generoso permitiram que ele se tornasse presidente.
As mesmas que forneceram o dinheiro para que a Heritage Foundation desenvolvesse o Projeto de Transição Presidencial de 2025, que Trump está implementando quase ao pé da letra, que comentei há apenas um ano em um artigo que intitulei A extrema direita veio para ficar.
Pode ser que eu esteja cometendo um erro e vendo mais coisas do que as que existem, mas o que as análises que venho realizando há anos me dizem é que estamos diante de um fenômeno de longo alcance.
Em meu entender, o que está acontecendo é que os Estados Unidos estão tentando se reassentar para enfrentar um planeta que sabem que não poderão mais dominar como potência imperial exclusiva.
Supõe-se que o poderio crescente e imparável da China vai moldar de novo um mundo bipolar, e os Estados Unidos vão derrubar o tabuleiro com violência, mais uma vez, para forçar as economias e seus governos a realocar em seu redor suas posições estratégicas, na condição mais débil possível e em benefício dos Estados Unidos.
Uma estratégia que, na esfera econômica, deveria concluir com um processo generalizado de realocação de capitais e indústrias nos Estados Unidos, como única forma de garantir sua hegemonia.
Em princípio, não vejo obstáculos intransponíveis para que isso aconteça, desde que:
a) Que a China e o bloco que inevitavelmente se formará em torno dela sejam isolados e obrigados a iniciar uma corrida armamentista, que venha a deteriorar sua capacidade tecnológica e industrial.
b) Enfraqueça ao extremo a Europa e faça com que ela desapareça ainda mais do mapa como operador estratégico e concorrente comercial.
c) Mantenha a Rússia suficientemente afastada, e
d) Encontrem-se novas fontes de vantagem competitiva e geoestratégica (daí, Panamá ou Groenlândia).
Dito isto, penso que é também necessário salientar as grandes dificuldades que a tentativa de salvaguardar a supremacia dos Estados Unidos enfrenta hoje em dia. Entre outros:
a) É um processo que precisa do médio prazo para produzir resultados, já que no curto prazo pode vir a ser tão traumático a ponto de produzir rupturas globais inusitadas, com danos tão graves que nem mesmo os Estados Unidos poderão evitar.
b) Levar adiante este processo de realinhamento pelas mãos da extrema-direita para avançar no desmantelamento das democracias que está se alastrando pelo mundo é uma faca de dois gumes, uma verdadeira bomba de efeito perverso e retardado com consequências muito perigosas. Afinal, as democracias são um elemento de contenção de conflitos. O totalitarismo, por outro lado, o cria. E a polarização generalizada pode estourar, com consequências incalculáveis, antes de que os Estados Unidos consigam redefinir o campo de jogo que melhor lhes convenha e fortaleçam suficientemente sua economia.
c) A situação interna nos Estados Unidos pode se tornar explosiva e tudo pode ocorrer por lá a qualquer momento.
d) Os Estados Unidos têm cada vez menos possibilidade de se impor à China em termos econômicos ou tecnológicos e, certamente, também em termos financeiros. A opção que lhe resta é a militar, e não há muito a dizer sobre os riscos que isso acarreta quando se fala de potências nucleares.
Em suma, se o que estamos vendo é o comportamento de um louco que confronta a todos, é mais provável que, mais cedo ou mais tarde, a situação seja revertida; pelo menos, o suficiente para evitar a inevitável crise que traria consigo a guerra comercial e o colapso econômico que ocorrerá se Trump não for detido o mais rápido possível.
Se minha hipótese estiver correta, o que veremos será algo maior e muito pior.
Será o mesmo que já aconteceu em ocasiões anteriores: uma tabula rasa, a geração deliberada de uma grande crise econômica e de uma democracia que permite que tudo mude para que o que se busca preservar não seja modificado: o domínio de uma potência em declínio acelerado, e até em risco de extinção se não reagir, perante um bloco rival em ascensão e com força crescente.
Tenho dúvidas, mas se tivesse que apostar eu o faria por esta segunda hipótese.
Tentarei escrever sobre como poderíamos nos comportar diante de tudo isso, especialmente na Europa, nos próximos dias.
*Juan Torres López, professor catedrático em economia na Universidade de Sevilha, Espanha. É autor de vários livros sobre economia internacional. Ele tem o próprio site e contribui com o portal digital espanhol Rebelión.
*Tradução ao português: Jair de Souza
*Este artigo não representa obrigatoriamente a opinião do Viomundo.
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