João Pedro Stedile: Transformação ecológica, agricultura e a sobrevivência da humanidade

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Ilustração: Instituto Tricontinental de Pesquisa Social

Transformação ecológica, agricultura e a sobrevivência da humanidade

João Pedro Stedile*, editorial da Wenhua Zongheng

Os três artigos desta edição internacional da Wenhua Zongheng (文化纵横) apresentam visões complementares sobre questões fundamentais para a sobrevivência da humanidade: a produção de alimentos, a agroecologia, a restauração do meio ambiente e as energias renováveis.

Comprometidos com as causas do seu povo e de toda humanidade, os autores chineses nos relatam experiências concretas da realidade de seu país.

Infelizmente, no Ocidente, as perspectivas intelectuais e os debates chineses da realidade são absolutamente ignorados, inclusive nos meios de esquerda.

Assim, penso que essa revista presta um serviço inestimável de trazer a leitura de nossas companheiras e companheiros chineses, traduzidos em vários idiomas.

A esquerda mundial está em dívida com esse debate. São raros os intelectuais que se preocupam e aprofundam tais reflexões.

Já os partidos de esquerda, em geral, ficam presos a frases feitas, slogans e clichês, como diria Mao Zedong em suas advertências.

Por outro lado, o debate nas universidades – e na maior parte da sociedade – se restringe ao diagnóstico, sem colocar o dedo na ferida e sem analisar os movimentos do capital sobre os bens da natureza, que são usados para obter rendas extraordinárias. Tais processos inconsequentes acabam por se transformar em crimes ambientais e mudanças climáticas.

Ainda no século XIX, Marx havia feito observações sobre o meio ambiente e sobre como o capitalismo industrial poderia afetá-lo.

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Rosa Luxemburgo aprofundou essa análise, considerando que ao capital lhe interessava apropriar-se de forma privada dos bens da natureza, como parte de sua acumulação primitiva.

Mais tarde, Lenin e Bukharin consideraram que a etapa imperialista do capitalismo certamente provocaria agressões aos bens da natureza, em sua sanha de busca por matérias-primas para suas fábricas e para a expansão do mercado capitalista.

Quando aconteceram os processos revolucionários na Rússia, Europa Oriental e China, e, posteriormente, as revoluções populares em Cuba e Vietnã, as preocupações com a natureza e o meio ambiente ficaram em segundo plano, pois estes países precisavam, em um primeiro momento, resolver os problemas fundamentais do povo, com investimentos produtivos que gerassem progresso econômico e bem estar para toda população.

Desta forma, chegamos à década de 1970 com um vazio programático da pauta ambiental. Em plena Guerra Fria, os Estados Unidos – com seu governo e seus capitalistas – impulsionaram a chamada Revolução Verde em todo o mundo.

Esse nome advém da necessidade ideológica de se contrapor às revoluções populares, “vermelhas”, que haviam acontecido. Por outro lado, argumentavam que a adoção dos agroquímicos provocaria uma revolução no aumento da produtividade das áreas agrícolas, garantindo alimentos para todos.

Naquela época, os Estados Unidos já eram hegemônicos com sua máquina cultural e de meios de comunicação em quase todo o mundo e facilmente convenceram os governos e países a adotarem sua “revolução” sem nenhuma visão crítica.

Em 1970, o Sr. Norman Borlaug – um agrônomo pesquisador do trigo – recebe o Prêmio Nobel da Paz, transformando-se no principal propagandista da adoção de agroquímicos da assim chamada “Revolução Verde”.

Hoje, é possível analisar criticamente a Revolução Verde como um modelo de produção voltado para o grande capital, que buscava expandir seus domínios sobre vastas regiões agrícolas.

Esse modelo transformou tais áreas em mercados consumidores de insumos industriais das empresas transnacionais estadunidenses, levando-as a comprar sementes híbridas, agroquímicos, fertilizantes, agrotóxicos e máquinas agrícolas.

Ele se baseia na monocultura e em grandes escalas de produção, sendo aplicado sem critérios e desconsiderando suas consequências para o meio ambiente.

De certa forma, esse modelo também influenciou os países em processo de construção do socialismo.

Hoje, estamos imersos na mais grave crise ambiental da história da humanidade. As mudanças climáticas e suas consequências — como enchentes, inundações, furacões, ventanias, secas e o derretimento das calotas polares — colocam em risco milhares de espécies de vida vegetal e animal, além de desestabilizarem a natureza em todo o planeta.

Essa situação afeta o mundo inteiro, independentemente das ações de cada país. Afinal, somos todos parte de uma casa comum.

Nada é mais pertinente do que a advertência de Fidel Castro em um histórico discurso de apenas cinco minutos durante a Conferência do Meio Ambiente, no Rio de Janeiro, em junho de 1992, quando afirmou: “Lamento informar que, se não colocarmos freios à movimentação e ganância do capital, há um ser vivo em risco de sobrevivência em nosso planeta: o ser humano!”

Os artigos desta edição da Wenhua Zongheng ajudam os leitores e leitoras a entender como a China lidou com esses problemas nas últimas três décadas.

Ding Ling e Xu Zhun examinam os impactos contraditórios da Revolução Verde na China e argumentam pela necessidade de uma transformação ecológica em direção a uma “civilização ecológica”, uma visão promovida pelos líderes do país.

Enquanto isso, Xiong Jie e Tings Chak estudam o processo de restauração do Lago Erhai, uma das muitas áreas que foram danificadas nas últimas décadas de rápido desenvolvimento econômico e de certos modelos de produção agrícola.

Por fim, Feng Kaidong e Chen Junting analisam a história do desenvolvimento da indústria de veículos elétricos na China, um componente importante na transição para uma economia de novas energias, ao mesmo tempo que promove processos de industrialização no Sul Global.

Os pesquisadores e pesquisadoras trazem depoimentos detalhados sobre diversas regiões da China e suas implicações para o resto do mundo, sobretudo os países do Sul Global.

É urgente que as organizações populares, camponesas, partidos de esquerda e governos progressistas de todo o mundo assumam essa agenda como central para os projetos de desenvolvimento em nossos países.

Pesa sobre nós a responsabilidade de produzir alimentos em equilíbrio com a natureza, protegendo-a para as gerações futuras e evitando as consequências das mudanças climáticas.

Também temos a obrigação de produzir alimentos saudáveis, sem agrotóxicos, para toda a população. Para isso, é necessário adotar a agroecologia como um modelo de produção que se contrapõe ao modelo capitalista e às suas empresas transnacionais.

Precisamos combater o desmatamento e os incêndios florestais, além de criar programas massivos e populares de reflorestamento com árvores nativas e frutíferas em todos os espaços possíveis, tanto no meio rural quanto nas cidades.

Políticas concretas de proteção de nascentes, rios e lagos de água doce são fundamentais.

É imprescindível adotar políticas públicas que defendam os interesses de toda a população e dos camponeses.

Será necessário desenvolver sistemas de agroindústrias em cooperativas em escalas locais, garantindo alimentos saudáveis sem aditivos químicos ou processos ultraprocessados que causam enormes problemas de saúde à população.

Por fim, defendo a criação de uma lista de propostas e programas concretos que promovam um pensamento crítico e um acúmulo de reflexões, ajudando os militantes e suas organizações a se preocuparem com isso e a adotarem programas verdadeiramente revolucionários nessa direção.

A adoção de um modelo produtivo baseado na agroecologia e na policultura, em vez da monocultura e seus agrotóxicos, é uma necessidade urgente para salvar o planeta e é também uma política claramente anticapitalista.

Os capitalistas não querem abandonar seu programa de Revolução Verde. Eles continuarão expandindo suas imensas fazendas e praticando o monocultivo, utilizando sementes transgênicas, agroquímicos e agrotóxicos, com máquinas cada vez maiores e que expulsam mão de obra do campo.

Quando falam em defesa da natureza, propõem apenas a emissão de créditos de carbono das florestas, convertendo oxigênio em títulos de capital que não alteram a realidade agrária de nossos países.

É um absurdo utilizar as florestas existentes como instrumentos de capital especulativo, permitindo que os capitalistas disputem entre si a renda extraordinária gerada.

Esse modelo capitalista não produz alimentos, mas apenas commodities agrícolas — mercadorias passíveis de especulação no mercado futuro e nas bolsas de valores. Isso não é agricultura: é apenas o domínio do capital sobre os bens da natureza.

A agricultura é a ciência e a arte de cultivar a terra, para, em equilíbrio com a natureza, produzir aquilo que o ser humano necessita, especialmente os alimentos que são a energia da vida.

Os capitalistas estão destruindo a agricultura e, ao fazê-lo, estão comprometendo o futuro e a possibilidade de produzir alimentos para toda a população. Isso gera lucro, mas à custa da exploração dos trabalhadores e das trabalhadoras, e de crimes ambientais contra a natureza.

Estou certo de que as reflexões que nossos companheiros chineses nos trazem ajudarão a aprofundar esse debate em todas as organizações populares e de esquerda sobre este importante desafio de nosso tempo.

*João Pedro Stedile é economista e membro da Coordenação Nacional do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST).

Wenhua Zongheng (文化纵横) é uma revista proeminente de pensamento político e cultural contemporâneo na China. A revista publica artigos de intelectuais de todo o país, com diferentes perspectivas ideológicas, e é uma referência importante para o desenvolvimento do pensamento chinês.

O Instituto Tricontinental de Pesquisa Social e o Coletivo Dongsheng fizeram uma parceria com Wenhua Zongheng para publicar uma edição internacional da revista e oferecer aos nossos leitores e leitoras uma oportunidade de interagir com o rico e complexo panorama intelectual da China moderna.

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