João Pedro Stedile: Transformação ecológica, agricultura e a sobrevivência da humanidade

Tempo de leitura: 6 min
Ilustração: Instituto Tricontinental de Pesquisa Social

Transformação ecológica, agricultura e a sobrevivência da humanidade

João Pedro Stedile*, editorial da Wenhua Zongheng

Os três artigos desta edição internacional da Wenhua Zongheng (文化纵横) apresentam visões complementares sobre questões fundamentais para a sobrevivência da humanidade: a produção de alimentos, a agroecologia, a restauração do meio ambiente e as energias renováveis.

Comprometidos com as causas do seu povo e de toda humanidade, os autores chineses nos relatam experiências concretas da realidade de seu país.

Infelizmente, no Ocidente, as perspectivas intelectuais e os debates chineses da realidade são absolutamente ignorados, inclusive nos meios de esquerda.

Assim, penso que essa revista presta um serviço inestimável de trazer a leitura de nossas companheiras e companheiros chineses, traduzidos em vários idiomas.

A esquerda mundial está em dívida com esse debate. São raros os intelectuais que se preocupam e aprofundam tais reflexões.

Já os partidos de esquerda, em geral, ficam presos a frases feitas, slogans e clichês, como diria Mao Zedong em suas advertências.

Por outro lado, o debate nas universidades – e na maior parte da sociedade – se restringe ao diagnóstico, sem colocar o dedo na ferida e sem analisar os movimentos do capital sobre os bens da natureza, que são usados para obter rendas extraordinárias. Tais processos inconsequentes acabam por se transformar em crimes ambientais e mudanças climáticas.

Ainda no século XIX, Marx havia feito observações sobre o meio ambiente e sobre como o capitalismo industrial poderia afetá-lo.

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Rosa Luxemburgo aprofundou essa análise, considerando que ao capital lhe interessava apropriar-se de forma privada dos bens da natureza, como parte de sua acumulação primitiva.

Mais tarde, Lenin e Bukharin consideraram que a etapa imperialista do capitalismo certamente provocaria agressões aos bens da natureza, em sua sanha de busca por matérias-primas para suas fábricas e para a expansão do mercado capitalista.

Quando aconteceram os processos revolucionários na Rússia, Europa Oriental e China, e, posteriormente, as revoluções populares em Cuba e Vietnã, as preocupações com a natureza e o meio ambiente ficaram em segundo plano, pois estes países precisavam, em um primeiro momento, resolver os problemas fundamentais do povo, com investimentos produtivos que gerassem progresso econômico e bem estar para toda população.

Desta forma, chegamos à década de 1970 com um vazio programático da pauta ambiental. Em plena Guerra Fria, os Estados Unidos – com seu governo e seus capitalistas – impulsionaram a chamada Revolução Verde em todo o mundo.

Esse nome advém da necessidade ideológica de se contrapor às revoluções populares, “vermelhas”, que haviam acontecido. Por outro lado, argumentavam que a adoção dos agroquímicos provocaria uma revolução no aumento da produtividade das áreas agrícolas, garantindo alimentos para todos.

Naquela época, os Estados Unidos já eram hegemônicos com sua máquina cultural e de meios de comunicação em quase todo o mundo e facilmente convenceram os governos e países a adotarem sua “revolução” sem nenhuma visão crítica.

Em 1970, o Sr. Norman Borlaug – um agrônomo pesquisador do trigo – recebe o Prêmio Nobel da Paz, transformando-se no principal propagandista da adoção de agroquímicos da assim chamada “Revolução Verde”.

Hoje, é possível analisar criticamente a Revolução Verde como um modelo de produção voltado para o grande capital, que buscava expandir seus domínios sobre vastas regiões agrícolas.

Esse modelo transformou tais áreas em mercados consumidores de insumos industriais das empresas transnacionais estadunidenses, levando-as a comprar sementes híbridas, agroquímicos, fertilizantes, agrotóxicos e máquinas agrícolas.

Ele se baseia na monocultura e em grandes escalas de produção, sendo aplicado sem critérios e desconsiderando suas consequências para o meio ambiente.

De certa forma, esse modelo também influenciou os países em processo de construção do socialismo.

Hoje, estamos imersos na mais grave crise ambiental da história da humanidade. As mudanças climáticas e suas consequências — como enchentes, inundações, furacões, ventanias, secas e o derretimento das calotas polares — colocam em risco milhares de espécies de vida vegetal e animal, além de desestabilizarem a natureza em todo o planeta.

Essa situação afeta o mundo inteiro, independentemente das ações de cada país. Afinal, somos todos parte de uma casa comum.

Nada é mais pertinente do que a advertência de Fidel Castro em um histórico discurso de apenas cinco minutos durante a Conferência do Meio Ambiente, no Rio de Janeiro, em junho de 1992, quando afirmou: “Lamento informar que, se não colocarmos freios à movimentação e ganância do capital, há um ser vivo em risco de sobrevivência em nosso planeta: o ser humano!”

Os artigos desta edição da Wenhua Zongheng ajudam os leitores e leitoras a entender como a China lidou com esses problemas nas últimas três décadas.

Ding Ling e Xu Zhun examinam os impactos contraditórios da Revolução Verde na China e argumentam pela necessidade de uma transformação ecológica em direção a uma “civilização ecológica”, uma visão promovida pelos líderes do país.

Enquanto isso, Xiong Jie e Tings Chak estudam o processo de restauração do Lago Erhai, uma das muitas áreas que foram danificadas nas últimas décadas de rápido desenvolvimento econômico e de certos modelos de produção agrícola.

Por fim, Feng Kaidong e Chen Junting analisam a história do desenvolvimento da indústria de veículos elétricos na China, um componente importante na transição para uma economia de novas energias, ao mesmo tempo que promove processos de industrialização no Sul Global.

Os pesquisadores e pesquisadoras trazem depoimentos detalhados sobre diversas regiões da China e suas implicações para o resto do mundo, sobretudo os países do Sul Global.

É urgente que as organizações populares, camponesas, partidos de esquerda e governos progressistas de todo o mundo assumam essa agenda como central para os projetos de desenvolvimento em nossos países.

Pesa sobre nós a responsabilidade de produzir alimentos em equilíbrio com a natureza, protegendo-a para as gerações futuras e evitando as consequências das mudanças climáticas.

Também temos a obrigação de produzir alimentos saudáveis, sem agrotóxicos, para toda a população. Para isso, é necessário adotar a agroecologia como um modelo de produção que se contrapõe ao modelo capitalista e às suas empresas transnacionais.

Precisamos combater o desmatamento e os incêndios florestais, além de criar programas massivos e populares de reflorestamento com árvores nativas e frutíferas em todos os espaços possíveis, tanto no meio rural quanto nas cidades.

Políticas concretas de proteção de nascentes, rios e lagos de água doce são fundamentais.

É imprescindível adotar políticas públicas que defendam os interesses de toda a população e dos camponeses.

Será necessário desenvolver sistemas de agroindústrias em cooperativas em escalas locais, garantindo alimentos saudáveis sem aditivos químicos ou processos ultraprocessados que causam enormes problemas de saúde à população.

Por fim, defendo a criação de uma lista de propostas e programas concretos que promovam um pensamento crítico e um acúmulo de reflexões, ajudando os militantes e suas organizações a se preocuparem com isso e a adotarem programas verdadeiramente revolucionários nessa direção.

A adoção de um modelo produtivo baseado na agroecologia e na policultura, em vez da monocultura e seus agrotóxicos, é uma necessidade urgente para salvar o planeta e é também uma política claramente anticapitalista.

Os capitalistas não querem abandonar seu programa de Revolução Verde. Eles continuarão expandindo suas imensas fazendas e praticando o monocultivo, utilizando sementes transgênicas, agroquímicos e agrotóxicos, com máquinas cada vez maiores e que expulsam mão de obra do campo.

Quando falam em defesa da natureza, propõem apenas a emissão de créditos de carbono das florestas, convertendo oxigênio em títulos de capital que não alteram a realidade agrária de nossos países.

É um absurdo utilizar as florestas existentes como instrumentos de capital especulativo, permitindo que os capitalistas disputem entre si a renda extraordinária gerada.

Esse modelo capitalista não produz alimentos, mas apenas commodities agrícolas — mercadorias passíveis de especulação no mercado futuro e nas bolsas de valores. Isso não é agricultura: é apenas o domínio do capital sobre os bens da natureza.

A agricultura é a ciência e a arte de cultivar a terra, para, em equilíbrio com a natureza, produzir aquilo que o ser humano necessita, especialmente os alimentos que são a energia da vida.

Os capitalistas estão destruindo a agricultura e, ao fazê-lo, estão comprometendo o futuro e a possibilidade de produzir alimentos para toda a população. Isso gera lucro, mas à custa da exploração dos trabalhadores e das trabalhadoras, e de crimes ambientais contra a natureza.

Estou certo de que as reflexões que nossos companheiros chineses nos trazem ajudarão a aprofundar esse debate em todas as organizações populares e de esquerda sobre este importante desafio de nosso tempo.

*João Pedro Stedile é economista e membro da Coordenação Nacional do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST).

Wenhua Zongheng (文化纵横) é uma revista proeminente de pensamento político e cultural contemporâneo na China. A revista publica artigos de intelectuais de todo o país, com diferentes perspectivas ideológicas, e é uma referência importante para o desenvolvimento do pensamento chinês.

O Instituto Tricontinental de Pesquisa Social e o Coletivo Dongsheng fizeram uma parceria com Wenhua Zongheng para publicar uma edição internacional da revista e oferecer aos nossos leitores e leitoras uma oportunidade de interagir com o rico e complexo panorama intelectual da China moderna.

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Zé Maria

.

Excerto Final do Livro de Friederich Engels
“O Papel do Trabalho na Transformação
do ‘Macaco’ [‘Primata Pré-Histórico’]
em ‘Homem’ [‘Ser Humano’]”:

“O desenvolvimento do cérebro e dos sentidos a seu serviço,
a crescente clareza de consciência, a capacidade de abstração
e de discernimento cada vez maiores, reagiram por sua vez sobre
o trabalho e a palavra, estimulando mais e mais o seu desenvolvimento.

Quando o homem se separa definitivamente do macaco [leia-se, daqui em diante, Primata ou Primatas Pré-Histórico(s)] esse desenvolvimento
não cessa de modo algum, mas continua, em grau diverso e em diferentes
sentidos entre os diferentes povos e as diferentes épocas, interrompido
mesmo às vezes por retrocessos de caráter local ou temporário, mas
avançando em seu conjunto a grandes passos, consideravelmente
impulsionado e, por sua vez, orientado em um determinado sentido por
um novo elemento que surge com o aparecimento do homem acabado:
a Sociedade.

Foi necessário, seguramente, que transcorressem centenas de milhares
de anos — que na história da Terra têm uma importância menor que um
segundo na vida de um homem — antes que a Sociedade Humana surgisse
daquelas manadas de macacos que trepavam pelas árvores.
Mas, afinal, surgiu.
E que voltamos a encontrar como sinal distintivo entre a manada de macacos e a sociedade humana?
Outra vez, o Trabalho.

A manada de macacos contentava-se em devorar os alimentos de uma área
que as condições geográficas ou a resistência das manadas vizinhas
determinavam.
Transportava-se de um lugar para outro e travava lutas com outras manadas
para conquistar novas zonas de alimentação; mas era incapaz de extrair
dessas zonas mais do que aquilo que a natureza generosamente lhe
oferecia, se excetuarmos a ação inconsciente da manada ao adubar o solo
com seus excrementos.
Quando foram ocupadas todas as zonas capazes de proporcionar alimento,
o crescimento da população simiesca [de Símios] tornou-se já impossível;
no melhor dos casos o número de seus animais mantinha-se no mesmo nível.
Mas todos os animais são uns grandes dissipadores de alimentos;
além disso, com freqüência, destroem em germe a nova geração de
reservas alimentícias.
Diferentemente do caçador, o lobo não respeita a cabra montês que
lhe proporcionaria cabritos no ano seguinte;
as cabras da Grécia, que devoram os jovens arbustos antes de poder
desenvolver-se, deixaram nuas todas as montanhas do pais.

Essa “exploração rapace” [de Rapina, Predadora], levada a efeito pelos
animais desempenha um grande papel na transformação gradual das
espécies, ao obrigá-las a adaptar-se a alimentos que não são os habituais
para elas, com o que muda a composição química de seu sangue e se
modifica toda a constituição física do animal; as espécies já plasmadas desaparecem.

Não há dúvida de que essa exploração rapace contribuiu em alto grau para
a humanização de nossos antepassados, pois ampliou o número de plantas
e as partes das plantas utilizadas na alimentação por aquela raça de
macacos que superava todas as demais em inteligência e em capacidade
de adaptação.

Em uma palavra, a alimentação, cada vez mais variada, oferecia ao
organismo novas e novas substâncias, com o que foram criadas as
condições químicas para a transformação desses macacos em seres
humanos.
Mas tudo isso não era Trabalho no verdadeiro sentido da palavra.

O Trabalho começa com a elaboração de instrumentos [Ferramentas].

E o que representam os instrumentos mais antigos, a julgar pelos restos
que nos chegaram dos homens pré-históricos, pelo gênero de vida
dos povos mais antigos registrados pela história, assim como pelo dos
selvagens atuais mais primitivos?

São instrumentos de caça e de pesca, sendo os primeiros utilizados também
como armas.

Mas a caça e a pesca pressupõem a passagem da alimentação
exclusivamente vegetal à alimentação mista, o que significa um novo passo
de sua importância na transformação do macaco em homem.

A alimentação cárnea ofereceu ao organismo, em forma quase acabada,
os ingredientes mais essenciais para o seu metabolismo.
Desse modo abreviou o processo da digestão e outros processos da vida
vegetativa do organismo (isto é, os processos análogos ao da vida dos
vegetais), poupando, assim, tempo, materiais e estímulos para que pudesse
manifestar-se ativamente a vida propriamente animal.
E quanto mais o homem em formação se afastava do reino vegetal, mais se
elevava sobre os animais.
Da mesma maneira que o hábito da alimentação mista converteu o gato
e o cão selvagens em servidores do homem, assim também o hábito de
combinar a carne com a alimentação vegetal contribuiu poderosamente
para dar força física e independência ao homem em formação.

Mas onde mais se manifestou a influência da dieta cárnea [Proteica]
foi no cérebro, que recebeu assim em quantidade muito maior do que
antes as substâncias necessárias à sua alimentação e desenvolvimento, com o que se foi tomando maior e mais rápido o seu aperfeiçoamento
de geração em geração.

Devemos reconhecer — e perdoem os senhores vegetarianos — que não foi
sem ajuda da alimentação cárnea que o homem chegou a ser homem;
e o fato de que, em uma ou outra época da história de todos os povos
conhecidos, o emprego da carne na alimentação tenha chegado ao
canibalismo (ainda no século X os antepassados dos berlinenses,
os veletabos e os viltses, devoravam os seus progenitores) é uma
questão que não tem hoje [1876] para nós a menor importância.

O consumo de carne na alimentação significou dois novos avanços
de importância decisiva:
o uso do fogo [para cozimento] e a domesticação dos animais.

O primeiro reduziu ainda mais o processo da digestão, já que permitia
levar a comida à boca, como se disséssemos, ‘meio digerida’;
o segundo multiplicou as reservas de carne, pois agora, ao lado da caça,
proporcionava uma nova fonte para obtê-la em forma mais regular.

A domesticação de animais também proporcionou, com o leite e seus
derivados, um novo alimento, que era pelo menos do mesmo valor que
a carne quanto à composição.

Assim, esses dois adiantamentos converteram-se diretamente para
o homem em novos meios de emancipação.

Não podemos deter-nos aqui em examinar minuciosamente
suas conseqüências.

O homem, que havia aprendido a comer tudo o que era comestível,
aprendeu também, da mesma maneira, a viver em qualquer clima.
Estendeu-se por toda a superfície habitável da Terra, sendo o único
animal capaz de fazê-lo por iniciativa própria.
Os demais animais que se adaptaram a todos os climas — os animais
domésticos e os insetos parasitas — não o conseguiram por si, mas
unicamente acompanhando o homem.

E a passagem do clima uniformemente cálido da pátria original para zonas
mais frias, onde o ano se dividia em verão e inverno, criou novas exigências,
ao obrigar o homem a procurar habitação e a cobrir seu corpo para
proteger-se do frio e da umidade.

Surgiram assim novas esferas de Trabalho, e com elas novas atividades,
que afastaram [evolutivamente] ainda mais o homem dos animais.

Graças à cooperação da mão, dos órgãos da linguagem e do cérebro,
não só em cada indivíduo, mas também na sociedade, os homens foram
aprendendo a executar operações cada vez mais complexas, a propor-se
e alcançar objetivos cada vez mais elevados.

O Trabalho mesmo se diversificava e aperfeiçoava de geração em geração,
estendendo-se cada vez a novas atividades.

À caça e à pesca veio juntar-se a Agricultura, e mais tarde a fiação e
a tecelagem, a elaboração de metais, a olaria e a navegação.

Ao lado do comércio e dos ofícios apareceram, finalmente, as artes e
as ciências;
das tribos saíram as nações e os Estados.
Apareceram o direito e a política, e com eles o ‘reflexo fantástico das coisas
no cérebro do homem’: a Religião.

Frente a todas essas criações, que se manifestavam em primeiro lugar
como produtos do cérebro e pareciam dominar as sociedades humanas,
as produções mais modestas, fruto do trabalho da mão, ficaram relegadas
a segundo plano, tanto mais quanto numa fase muito recuada do
desenvolvimento da sociedade (por exemplo, já na família primitiva),
a cabeça que planejava o trabalho já era capaz de obrigar mãos alheias
a realizar o trabalho projetado por ela.

O rápido progresso da civilização foi atribuído exclusivamente à cabeça,
ao desenvolvimento e à atividade do cérebro.
Os homens acostumaram-se a explicar seus atos pelos seus pensamentos,
em lugar de procurar essa explicação em suas necessidades (refletidas,
naturalmente, na cabeça do homem, que assim adquire consciência delas).

Foi assim que, com o transcurso do tempo, surgiu essa concepção idealista
do mundo que dominou o cérebro dos homens, sobretudo a partir do
desaparecimento do mundo antigo, e continua ainda a dominá-lo, a tal ponto
que mesmo os Naturalistas da Escola Darwiniana mais chegados ao
Materialismo são ainda incapazes de formar uma idéia clara acerca da
origem do homem, pois essa mesma influência idealista lhes impede de ver
o papel desempenhado aqui pelo Trabalho.

Os animais, como já indicamos de passagem, também modificam com sua
atividade a natureza exterior, embora não no mesmo grau que o homem;
e essas modificações provocadas por eles no Meio Ambiente repercutem,
como vimos, em seus causadores, modificando-os por sua vez.

Nada ocorre na Natureza em forma isolada.
Cada Fenômeno afeta a outro, e é por seu turno influenciado por este;
e é em geral o esquecimento desse movimento e dessa interação universal
o que impede a nossos naturalistas perceber com clareza as coisas mais
simples.

Já vimos como as cabras impediram o reflorestamento dos bosques
na Grécia;
em Santa Helena, as cabras e os porcos desembarcados pelos primeiros
navegantes chegados à ilha exterminaram quase por completo a vegetação
ali existente, com o que prepararam o terreno para que pudessem
multiplicar-se as plantas levadas mais tarde por outros navegantes e
colonizadores.
Mas a influência duradoura dos animais sobre a natureza que os rodeia
é inteiramente involuntária e constitui, no que se refere aos animais,
um fato acidental.

Mas, quanto mais os homens se afastam [evolutivamente] dos animais,
mais sua influência sobre a Natureza adquire um caráter de uma ação
intencional e planejada, cujo fim é alcançar objetivos projetados de
antemão.

Os animais destroçam a vegetação do lugar sem dar-se conta do que fazem.
Os homens, em troca, quando destroem a vegetação o fazem com o fim
de utilizar a superfície que fica livre para semear trigo, plantar árvores
ou cultivar a videira, conscientes de que a colheita que irão obter superará
várias vezes o semeado por eles.

O homem traslada de um pais para outro plantas úteis e animais
domésticos, modificando assim a Flora e a Fauna de Continentes
inteiros [Vide os Coelhos na Austrália, por exemplo].
Mais ainda: as plantas e os animais, cultivadas aquelas e criados estes
em condições artificiais, sofrem tal influência da mão do homem que
se tornam irreconhecíveis.

Não foram até hoje encontrados os antepassados silvestres de nossos
cultivos cerealistas.
Ainda não foi resolvida a questão de saber qual o animal que deu origem
aos nossos cães atuais, tão diferentes uns de outros, ou às atuais raças
de cavalos, também tão numerosos.
Ademais, compreende-se de logo que não temos a intenção de negar
aos animais a faculdade de atuar em forma planificada, de um modo
premeditado.
Ao contrário, a ação planificada existe em germe onde quer que o
protoplasma — a albumina viva — exista e reaja, isto é, realize
determinados movimentos, embora sejam os mais simples, em
resposta a determinados estímulos do exterior.
Essa reação se produz, não digamos já na célula nervosa, mas inclusive
quando ainda não há célula de nenhuma espécie.
O ato pelo qual as plantas insetívoras se apoderam de sua presa aparece
também, até certo ponto, como um ato planejado, embora se realize de
um modo totalmente inconsciente.

A possibilidade de realizar atos conscientes e premeditados desenvolve-se
nos animais em correspondência com o desenvolvimento do sistema
nervoso e adquire já nos mamíferos um nível bastante elevado.

Durante as caçadas organizadas na Inglaterra pode-se observar sempre
a infalibilidade com que a raposa utiliza seu perfeito conhecimento do lugar
para ocultar-se aos seus perseguidores, e como conhece e sabe aproveitar
muito bem todas as vantagens do terreno para despistá-los.

Entre nossos animais domésticos, que chegaram a um grau mais alto
de desenvolvimento graças à sua convivência com o homem podem ser
observados diariamente atos de astúcia, equiparáveis aos das crianças,
pois do mesmo modo que o desenvolvimento do embrião humano no ventre
materno é uma réplica abreviada de toda a história do desenvolvimento
físico seguido através de milhões de anos pelos nossos antepassados
do reino animal, a partir do estado larval, assim também o desenvolvimento
espiritual da criança representa uma réplica, ainda mais abreviada,
do desenvolvimento intelctual desses mesmos antepassados, pelo menos
dos mais próximos.

Mas nem um só ato planificado de nenhum animal pôde imprimir na natureza
o selo de sua vontade. Só o homem pôde e pode fazê-lo.

Resumindo: só o que podem fazer os animais é utilizar a Natureza e
modificá-la pelo mero fato de sua presença nela.

O homem, ao contrário, modifica a Natureza e a obriga a servir-lhe,
domina-a.
E ai está, em última análise, a diferença essencial entre o homem e
os demais animais, diferença que, mais uma vez, resulta do Trabalho.

Contudo, não nos deixemos dominar pelo entusiasmo em face de ‘nossas vitórias’ sobre a Natureza.

Após cada uma dessas ‘vitórias’ a Natureza adota sua Vingança.

É verdade que as primeiras conseqüências dessas ‘vitórias’ são as previstas
por nós, mas em segundo e em terceiro lugar aparecem conseqüências
muito diversas, totalmente imprevistas e que, com freqüência, anulam
as primeiras.

Os homens que na Mesopotâmia, na Grécia, na Ásia Menor e outras regiões
devastavam os bosques para obter terra de cultivo nem sequer podiam
imaginar que, eliminando com os bosques os centros de acumulação
e reserva de umidade, estavam assentando as bases da atual aridez
dessas terras.
Os italianos dos Alpes, que destruíram nas encostas meridionais os bosques
de pinheiros, conservados com tanto carinho nas encostas setentrionais,
não tinham idéia de que com isso destruíam as raízes da indústria de
laticínios em sua região;
e muito menos podiam prever que, procedendo desse modo, deixavam
a maior parte do ano secas as suas fontes de montanha, com o que lhes
permitiam, chegado o período das chuvas, despejar com maior fúria
suas torrentes sobre a planície.

Os que difundiram o cultivo da batata na Europa não sabiam que com esse
tubérculo farináceo difundiam por sua vez a Escrofulose [*].
Assim, a cada passo, os fatos recordam que nosso domínio sobre a Natureza
não se parece em nada com o domínio de um conquistador sobre o povo
conquistado, que não é o domínio de alguém situado fora da natureza,
mas que nós, por nossa carne, nosso sangue e nosso cérebro, pertencemos
à Natureza, encontramo-nos em seu seio, e todo o nosso domínio sobre ela
consiste em que, diferentemente dos demais seres, somos capazes de
conhecer suas leis e aplicá-las de maneira adequada.

Com efeito, aprendemos cada dia a compreender melhor as leis da Natureza
e a conhecer tanto os efeitos imediatos como as conseqüências remotas de
nossa intromissão no curso natural de seu desenvolvimento.
Sobretudo depois dos grandes progressos alcançados neste século pelas
Ciências Naturais, estamos em condições de prever e, portanto, de
controlar cada vez melhor as remotas conseqüências naturais de nossos
atos na produção, pelo menos dos mais correntes.

E quanto mais isso seja uma realidade, mais os homens sentirão
e compreenderão sua Unidade com a Natureza, e mais inconcebível
será essa idéia absurda e Antinatural da Antítese entre o Espírito e
a Matéria, o Homem e a Natureza, a Alma e o Corpo, idéia que começa
a difundir-se pela Europa sobre a base da Decadência da Antigüidade Clássica e que adquire seu máximo desenvolvimento no cristianismo.

Mas, se foram necessários milhares de anos para que o homem aprendesse,
em certo grau, a prever as remotas Conseqüências Naturais no sentido da
Produção, muito mais lhe custou aprender a calcular as remotas
Conseqüências Sociais desses mesmos atos.

Falamos acima da batata e de seus efeitos quanto à difusão da escrofulose.

Mas que importância pode ter a escrofulose, comparada com os resultados
que teve a redução da alimentação dos trabalhadores a batatas puramente sobre as condições de vida das massas do povo de países inteiros, com
a fome que se estendeu em 1847 pela Irlanda em conseqüência de uma
doença provocada por esse tubérculo e que levou à sepultura um milhão
de irlandeses que se alimentavam exclusivamente, ou quase
exclusivamente, de batatas e obrigou a que emigrassem para além-mar
outros dois milhões?

Quando os árabes aprenderam a distilar o álcool, nem sequer ocorreu-lhes
pensar que haviam criado uma das armas principais com que iria ser
exterminada a população indígena do continente americano, então ainda
desconhecido.

E quando mais tarde Colombo descobriu a América não sabia que ao mesmo
tempo dava nova vida à Escravidão, há muito tempo desaparecida na Europa, e assentado as bases do Tráfico dos Negros.

Os homens que nos séculos XVII e XVIII haviam trabalhado para criar
a máquina a vapor não suspeitavam de que estavam criando um instrumento
que, mais do que nenhum outro, haveria de subverter as condições sociais
em todo o mundo e que, sobretudo na Europa, ao concentrar a riqueza nas
mãos de uma minoria e ao privar de toda propriedade a imensa maioria da
população, haveria de proporcionar primeiro o domínio social e político à
burguesia, e provocar depois a luta de classe entre a burguesia e o
proletariado, luta que só pode terminar com a liquidação da burguesia e
a abolição de todos os antagonismos de classe.

Mas também aqui, aproveitando uma experiência ampla, e às vezes cruel,
confrontando e analisando os materiais proporcionados pela história, vamos
aprendendo pouco a pouco a conhecer as conseqüências sociais indiretas e
mais remotas de nossos atos na produção, o que nos permite estender
também a essas conseqüências o nosso domínio e o nosso controle.

Contudo, para levar a termo esse controle é necessário algo mais do que
o Simples Conhecimento.
É necessária uma Revolução que transforme por completo o Modo de
Produção existente até hoje e, com ele, a Ordem Social Vigente.

Todos os modos de produção que existiram até o presente só procuravam
o efeito útil do trabalho em sua forma mais direta e Imediata.

Não faziam o menor caso das conseqüências remotas, que só surgem mais
tarde e cujos efeitos se manifestam unicamente graças a um processo de
repetição e acumulação gradual.
A primitiva propriedade comunal da terra correspondia, por um lado, a um
estádio de desenvolvimento dos homens no qual seu horizonte era limitado,
em geral, às coisas mais imediatas, e pressupunha, por outro lado, certo
excedente de terras livres, que oferecia determinada margem para
neutralizar os possíveis resultados adversos dessa economia primitiva.

Ao esgotar-se o excedente de terras livres, começou a decadência da
propriedade comunal.

Todas as formas mais elevadas de produção que vieram depois conduziram
à divisão da população em classes diferentes e, portanto, no antagonismo
entre as classes dominantes e as classes oprimidas.

Em conseqüência, os interesses das classes dominantes converteram-se no elemento propulsor da produção, enquanto esta não se limitava a manter, bem ou mal, a mísera existência dos oprimidos.

Isso encontra sua expressão mais acabada no Modo de Produção
Capitalista, que prevalece hoje na Europa Ocidental.

Os capitalistas individuais, que dominam a produção e a troca, só podem
ocupar-se da utilidade mais imediata de seus atos.

Mais ainda: mesmo essa utilidade — porquanto se trata da utilidade da
mercadoria produzida ou trocada — passa inteiramente ao segundo plano,
aparecendo como Único Incentivo o Lucro obtido na venda.
* * *
A ciência social da burguesia, a economia política clássica, só se ocupa
preferentemente daquelas conseqüências sociais que constituem o objetivo
imediato dos atos realizados pelos homens na produção e na troca.

Isso corresponde plenamente ao regime social cuja expressão teórica
é essa ciência.
Porquanto os Capitalistas isolados produzem ou trocam com o Único Fim
de Obter Lucros Imediatos, só podem ser levados em conta, primeiramente,
os resultados mais próximos e mais imediatos.

Quando um industrial ou um comerciante vende a mercadoria produzida
ou comprada por ele e obtém o lucro habitual, dá-se por satisfeito e
não lhe interessa de maneira alguma o que possa ocorrer depois com essa
mercadoria e seu comprador.

O mesmo se verifica com as conseqüências naturais dessas mesmas ações.
Quando, nas ilhas caribenhas, os plantadores espanhóis queimavam os
bosques nas encostas das montanhas para obter com a cinza um adubo
que só lhes permitia fertilizar uma geração de cafeeiros de alto rendimento
pouco lhes importava que as chuvas torrenciais dos trópicos varressem
a camada vegetal do solo, privada da proteção das arvores, e não deixassem
depois de si senão rochas desnudas!

Com o atual modo de produção, e no que se refere tanto às conseqüências
naturais como às conseqüência sociais dos atos realizados pelos homens,
o que interessa prioritariamente são apenas os primeiros resultados,
os mais palpáveis.

E logo até se manifesta estranheza pelo fato de as conseqüências remotas
das ações que perseguiam esses fins serem multo diferentes e, na maioria
dos casos, até diametralmente opostas;
de a harmonia entre a oferta e a procura converter-se em seu antípoda,
como nos demonstra o curso de cada um desses ciclos industriais de décadas, e como puderam convencer-se disso os que com o ‘crack’
viveram na Alemanha um pequeno prelúdio;
de a Propriedade Privada baseada no trabalho próprio converter-se
necessariamente, ao desenvolver-se, na ausência de posse de toda
propriedade pelos trabalhadores, enquanto toda a riqueza se concentra
mais e mais nas mãos dos que não trabalham.” …

FREDERICO DOS ANJOS
CIENTISTA VISIONÁRIO

Escrito em 1876.
1ª Edição: Neue Zeit, 1896.
Origem da presente transcrição:
Edição Soviética de 1952, de acordo
com o Manuscrito, em Alemão.
Traduzido do Espanhol.
https://www.marxists.org/portugues/marx/1876/mes/macaco.htm
.
.
[*] A Escrofulose ou Tuberculose Linfática foi uma doença causada
pelo oomiceto Phytophthora infestans – microrganismo semelhante
a um fungo, vulgarmente conhecido por Míldio da Batateira – que se
espalhou pela Europa juntamente com o cultivo da batata (https://pt.wikipedia.org/wiki/Phytophthora_infestans).
Em Meados do Século 19, a batata era o alimento básico da população
trabalhadora irlandesa.
À época, um grande volume de batatas foi contaminada pelo
microorganismo, tornando-as impróprias para o consumo
causando fome generalizada na Irlanda.

A Escrofulose causou a morte de cerca de 2 milhões de irlandeses,
a maioria pobres, além de reduzir a alimentação dos trabalhadores
e provocar outras doenças e mortes por desnutrição no país, o que
levou à migração em massa de cerca de 1 Milhão de Pessoas, entre
1845 e 1849. Daí passando a ser denominada Fome da Batata Irlandesa
que chegou naquele tempo a diminuir a População da Irlanda entre 20%
a 25%. (https://pt.wikipedia.org/wiki/Grande_fome_de_1845%E2%80%931849_na_Irlanda)

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