A encruzilhada chilena rumo à nova Constituição
As lutas sociais conseguiram, por uma combinação de ação coletiva de rua e avanço eleitoral, produzir o mais democráticos processo constituinte da história do Chile, que será votado dia 4 de setembro. Mas uma contra-ofensiva da direita e a vacilação do governo ameaçam abrir espaço para o retrocesso
Por Joana Salém Vasconcelos*, em Jacobin Brasil
A transformação política que o Chile tem vivido desde 2019 está hoje plasmada no texto da nova Constituição, que vai a plebiscito em 4 de setembro.
A proposta foi redigida por uma Convenção Constitucional com vários ineditismos, entre eles uma maioria de convencionales independentes (ativistas e intelectuais sem partido), vindos de fora da política profissional, a paridade de gênero (experiência única no mundo) e a reserva de assentos para povos indígenas.
Trata-se do processo constituinte mais democrático e participativo da história do país, que nunca havia experimentado nada parecido.
Todas as constituições chilenas anteriores (as do século XIX e as de 1925 e de 1980) foram redigidas por pequenos comitês fechados ou cúpulas autoritárias centralizadas, compostas por poucos homens brancos (winkas, diriam os indígenas).
O “plebiscito de saída” do atual processo constituinte ainda irá aprovar ou rechaçar o texto.
O documento final é um legítimo herdeiro do novo-constitucionalismo latino-americano, incorporando a plurinacionalidade, os direitos da natureza, a economia solidária, as agendas feminista e ecológica, bem como os direitos sociais e do trabalho, em uma perspectiva social-democrata.
Este plebiscito é, portanto, o clímax de um tortuoso caminho de reinvenção do país para superar sua crise multidimensional (econômica, política, social, cultural, simbólica, identitária e até territorial), consequência de um modelo de sociedade neoliberal, gerida por um Estado subsidiário, arquitetado pela ditadura de Pinochet e perpetuado pelo pacto de transição.
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O que dizem as pesquisas
Atualmente, porém, para surpresa dos analistas, pesquisas indicam vitória do rechaço (entre 45% a 58% das intenções, a depender da pesquisa) contra a aprovação do novo texto (que varia de 32% a 42%).
Surpresa porque esse resultado contraria o fluxo histórico dos últimos três anos (ou até dos últimos quinze), marcados por crescentes mobilizações multitudinárias por direitos sociais, que culminaram com o esgotamento e colapso tardio da Constituição pinochetista de 1980 e seu legado ditatorial.
Especialistas e políticos pelo Apruebo questionam as pesquisas que dão vitória ao Rechazo por falhas metodológicas e erros persistentes de resultado das pesquisas anteriores, como por exemplo as que indicavam a vitória de José Antônio Kast no pleito que elegeu Gabriel Boric presidente do Chile em dezembro de 2021.
Alguns dizem que as pesquisas não correspondem ao clima das campanhas de rua e das conversas de porta em porta, muito mais favoráveis ao novo texto. Apontam que a metodologia por telefone em horário comercial tem um viés de exclusão dos mais pobres, amplificando o peso das classes médias no resultado.
Tal enviesamento é ainda mais relevante em uma votação obrigatória, a primeira depois de uma década de pleitos facultativos, em que os setores ausentes nas pesquisas serão ainda mais massivos na urna.
O resultado do plebiscito, portanto, é muito mais incerto do que parece. A vitória do rechaço representaria a contramão de tudo o que o povo chileno demonstrou nos últimos três anos, nas ruas (as múltiplas revoltas do chamado estallido social) e nas urnas (plebiscito de entrada em 2020, eleições constituintes e eleições presidenciais em 2021).
Representaria uma guinada brusca em relação ao caminho escolhido pelas maiorias do país e reiterado em muitos momentos históricos recentes. Não é impossível, evidente, mas seria contraditório com os sinais da vontade popular dos últimos anos.
Por outro lado, é fato que o rechaço ampliou sua popularidade e as forças da transformação perderam espaço na fotografia atual da batalha pela hegemonia. E por que isso ocorreu?
O desastrado giro de Boric
Desde a posse de Boric, está em curso uma forte e sistemática campanha de deslegitimação da nova Constituição, organizada por setores poderosos das classes dominantes e seus conglomerados de imprensa.
Com a derrota de Kast, deslegitimar a Convenção foi a principal, senão a única, estratégia política da direita contra o itinerário aberto pela revolta social de 2019.
Impossibilitados de disputar a Convenção por dentro, já que as direitas não obtiveram o terço necessário de convencionales para obstruir as agendas das esquerdas na nova carta, só puderam correr por fora para tentar sabotar o processo pela deslegitimação.
Não só parte significativa da grande imprensa, historicamente atrelada às famílias mais ricas do Chile, está engajada nessa campanha, como também os dispositivos de redes sociais de Kast e seus apoiadores, os dois partidos de direita tradicionais (RN e UDI) e os novos (Evopoli e Republicano), assim como grandes empresas e think tanks direitistas.
Isso não seria, contudo, suficiente para inverter os ventos mudancistas se não fosse a crise de legitimidade do governo de Boric frente a sua própria base social, que o elegeu para ver mudanças muito mais rápidas, profundas e assertivas.
Contra essas expectativas, Boric mostrou-se um líder de centro, e não da “nova esquerda”, que orientou sua militância quando estudante e seu primeiro mandato como deputado.
A fragilidade do governo Boric se deve à reprodução das políticas da direita e da Concertación referentes a temas caros e inegociáveis para os movimentos populares.
Entre os exemplos mais agudos estão a política de Estado de emergência e militarização do Sul do Chile em repressão aos povos indígenas (continuadas do governo Piñera, sem interrupção); a demora em apresentar uma reforma tributária que financie seu programa de direitos sociais, tornando-o cada dia mais desacreditado; a ausência de uma reforma da previdência desprivatizante e a posição contrária ao “quinto retiro” das contas de pensão, favorecendo as AFP e contradizendo os discursos que os mesmos Boric, Vallejo e Jackson faziam no Congresso em favor dos retiros anteriores, há menos de dois anos; a pífia e ornamental reforma da instituição policial (carabineros) que frustrou amplas expectativas de progresso na pauta de direitos humanos; para não falar da política econômica de estabilização neoliberal que não se diferencia em nada dos governos dos últimos 30 anos.
Sendo assim o rechaço navega nas águas da crise de Boric, crise gerada por sua guinada ao centro, com piscadelas à esquerda cada vez menos críveis.
O texto da nova Constituição, esse sim, tem elementos inovadores de um “novo progressismo” latino-americano, que para o Chile representa um renascer das cinzas da constituição pinochetista.
Se por um lado não devemos desprezar o aspecto revolucionário do giro histórico chileno, de vanguarda do neoliberalismo à vanguarda da transformação social latino-americana, tampouco devemos nos deslumbrar com o texto, que só poderá ser aplicado em sua integralidade com lutas árduas, que derrubem fortalezas econômicas, de classe, território e poder patriarcal.
As linhas de ataque da direita
São três principais linhas de ataque das direitas à nova Constituição, num turbilhão de fake news, pânico moral e desinformação, cozinhados no caldo ideológico conservador com nuances ora extremistas, ora tecnocráticas.
Primeiro: a mentira de que a plurinacionalidade significaria a quebra da pátria, a divisão do país em diferentes países, ou seja: o fim da chilenidade.
O episódio desastrado da ministra Izkia Siches na Araucanía na primeira semana de governo Boric serviu perfeitamente a esse propósito. Afinal, diz a direita, como uma chefe de Estado é proibida de circular em território nacional?
Para a campanha de desinformação e fake news, a plurinacionalidade impediria que chilenos circulassem no território nacional, agora controlado por outros povos.
Segundo: o pânico moral em torno dos direitos sexuais e reprodutivos estabelecidos na nova Constituição, bem como os direitos à diversidade sexual, medidas transversais que, no novo texto, perpassam o Estado em sua estrutura, do sistema judicial e educacional às polícias e Forças Armadas.
Como aqui, lá a direita ganha espaço com as distorções engendradas pela histeria contra a chamada “ideologia de gênero”. O conservadorismo popular e os tabus religiosos em matéria de direitos reprodutivos, inclusive o direito ao aborto definido na nova carta, alimenta a agenda direitista do rechaço.
E terceiro: a direita afirma, como num velho disco riscado, que a nova Constituição gerará caos e anarquia, enfraquecendo o Estado nacional, porque propõe a descentralização dos poderes, o fortalecimento das regiões, províncias e comunas com orçamento e autonomias, sem falar do fomento à participação comunitária na formulação e deliberação das políticas públicas.
A bandeira da descentralização que marcou a agenda dos convencionales é convertida pela direita em sinônimo de desintegração da unidade nacional, fragilização do Estado e consequente insegurança. Sem falar que este pacote viria junto com a desmilitarização das polícias.
O dia seguinte
Afinal, o que ocorrerá no dia seguinte ao 4 de setembro? Ganhando o Apruebo, haverá uma enorme catarse democrática contra o legado de Pinochet, um clímax transformador que representa um verdadeiro ajuste de contas com o golpe de 1973.
Ao mesmo tempo, a aplicação da nova Constituição será lenta e demandará a aprovação subsequente de leis e regulamentações, que certamente serão disputadas palmo a palmo. A aplicação integral, profunda, do texto implica em perda de privilégios e poderes para as classes dominantes e demandará mobilização popular constante.
O oficialismo, porém, já pactuou o “aprovar para reformar”. Os aspectos mais transformadores do texto dificilmente entrarão na pauta do governo no sentido de impulsionar uma política de mudança profunda.
Os pactos entre a coligação de Boric e os partidos da Concertación é cada vez mais orgânico e mostra que as verdadeiras novas esquerdas, uma vez mais, disputarão por fora, nas ruas, a contrapelo do governo que elegeram.
E se ganha o Rechazo? Será um trauma profundo para o país, que se mobilizou intensa e consistentemente nos últimos anos para construir esse texto. Nesse caso, a situação é muito mais incerta.
O presidente Boric defendeu publicamente que, em caso de vitória do rechaço, uma nova eleição para deputados constituintes e uma nova convenção devem ser convocadas.
Parte da direita, porém, defende um novo plebiscito para definir se haverá ou não nova carta e recuperar a chance de reformar a de 1980 pelo Congresso, onde ainda é forte. Seria como cair da escada de costas.
Qual o destino do texto da nova Constituição, qual o mecanismo de mudança constitucional e o que ocorrerá com a atual carta da ditadura? Tudo isso ficaria em aberto e em estado de incerteza, com o gosto amargo de retrocesso histórico.
*Joana Salém Vasconcelos é doutora em História Econômica pela USP, professora da Faculdade Cásper Líbero e organizadora do livro “La vía chilena al socialismo 50 años después: historia y memória” (CLACSO, 2020).
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Comentários
Zé Maria
Excerto
“As pesquisas não correspondem ao clima das campanhas de rua
e das conversas de porta em porta, muito mais favoráveis ao novo texto.
A metodologia por telefone em horário comercial tem um viés de exclusão
dos mais pobres, amplificando o peso das classes médias no resultado.”
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Tem certeza que isso
tá ocorrendo no Chile?
Não é no Brasil?
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