Gilmar Mauro: ‘Temos que falar de revolução com sorriso nos lábios; passou da hora de a esquerda se reconectar com a juventude’

Tempo de leitura: 15 min
“Agora, hoje a reforma agrária não pode ser feita ao estilo clássico. Tem que ter um projeto”, defende Gilmar Mauro. Foto: Divulgação

Temos que falar de revolução com um sorriso nos lábios’, propõe Gilmar Mauro

Para o integrante da Coordenação Nacional do MST, passou da hora da esquerda se reconectar com a juventude

Por Katia Marko e Clara Aguiar, no Brasil de Fato* via MST

Muitos jovens estão desesperançados e sem perspectivas concretas de futuro. E nisso reside, segundo Gilmar Mauro, uma das explicações para a abstenção elevada nas eleições e mesmo para os votos descarregados na extrema direita. E disso fala nesta longa e intensa conversação com Brasil de Fato RS.

Na linha de frente da agroecologia, o paranaense que virou militante do MST no ano seguinte – 1985 – à fundação do movimento, apressa-se a esclarecer que o termo não remete a um modelo superado de cultivar a terra.

“Quando falamos de agroecologia, às vezes as pessoas pensam que estamos querendo voltar ao passado”, acentua ele que, desde menino, trabalhou “atrás de juntas de boi no Paraná”.

Mauro quer, como explica, acesso às tecnologias que diminuem “a penosidade do trabalho agrícola”.

Preocupado com as mudanças climáticas, não tem ilusões quanto às soluções propostas pelo sistema regido pelo capital.

“Para diminuir a quantidade de gases de efeito estufa, você deve abolir todas as tecnologias da Segunda Revolução Industrial, quais sejam as tecnologias do automotivo, o uso de petróleo, hidrocarburetos em geral, acabar com as guerras, a indústria do plástico. Qual a empresa capitalista que vai deixar de fazer isso? E qual Estado, nação capitalista, vai deixar de fazer isso?”, indaga.

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Brasil de Fato RS – Você tem chamado a atenção para o agravamento da crise ambiental. E nós, aqui no Rio Grande do Sul, vivemos isso na pele com a enchente de maio e junho. Mas, nas eleições municipais, essa pauta passou muito longe das opções do eleitorado. As pessoas estão cegas para essa realidade?

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Gilmar Mauro – Há cinco anos conversei com cientistas e eles, então, não estavam tão convencidos da emergência.

Depois de cinco anos, evidentemente, com os últimos fenômenos ocorridos, não só no Rio Grande do Sul, mas em São Sebastião/SP, do crime de Mariana e de Brumadinho, da Espanha e várias partes do mundo, a situação climática se agravou demais. Nem as esquerdas se deram conta da situação.

Talvez agora, em função das queimadas na Amazônia e da fumaça preta em São Paulo, começaram a acender luzes. Mas na população, infelizmente, o tema não está sendo discutido.

Tenho dito que o futuro já chegou. Morre muito mais gente hoje por desastres climáticos, seja calor extremo, frio extremo, chuvas intensas, furacões, etc e também pandemia.

É bom lembrar que esse problema gera pandemias como vivemos a da covid e outras pandemias que se avizinham com o processo de degelo e da destruição ambiental.

Temos gases de efeito estufa na atmosfera já suficientes para derreter as geleiras. Muito particularmente o CO2 e o óxido nitroso, de uma durabilidade muito grande. Também o metano. Teríamos que parar de emitir urgentemente novos gases na atmosfera e plantar bilhões de árvores para tentarmos atenuar o problema.

Apesar de 95% dos municípios gaúchos terem sido afetados pela enchente, os eleitores foram na contramão do cuidado com o meio ambiente. Como analisar isso? É a descrença da política institucional?

Várias questões se articulam. Não é só uma. Há uma descrença na questão eleitoral e na institucionalidade. A esquerda, em determinado momento da história, colocou-se como antissistêmica. Hoje a esquerda é sistema no Brasil e faz tempo.

O antissistema é a extrema direita. Todo mundo sabe que é fake, mas se colocou nessa condição.

Dois, se você somar abstenções, votos nulos e brancos, a grande maioria da população não acredita nesse sistema.

E o terceiro aspecto é a falta de perspectivas concretas, principalmente no caso da juventude. Muitos jovens não se interessam hoje por fazer universidade. Perguntam “para quê”? Minha Casa, Minha Vida, parece estar fora do horizonte da juventude.

Do ponto de vista estrutural, há uma mudança muito grande nas chamadas classes trabalhadoras. Aquele operário fabril clássico, que tinha um lugar fixo para ir trabalhar, e, portanto, para ele, a casa fazia todo o sentido, também está se esgotando.

Aliás, na juventude, a própria instituição do casamento ou do ter filhos é uma coisa já em desuso. É viver o hoje intensamente. Não se sabe se terá o amanhã.

As esquerdas, em geral, não estão colocando perspectivas de futuro, o que leva a uma espécie de limbo.

Você não tem perspectiva, você não fala em projeto, e não adianta a esquerda vir com essa pautinha de empreendedorismo de esquerda, porque não é isso, muito pelo contrário. Inclusive há pesquisas indicando que grande parte da população quer carteira assinada, quer direitos.

“Quando decidimos plantar 100 milhões de árvores em 10 anos, tínhamos consciência que isso não resolveria o problema da questão ambiental e a crise climática” – Foto: Divulgação MST

Aqui, durante as enchentes, houve outra enxurrada, a das fake news. Uma desinformação muito grande, acho até que, comparada com a das eleições de 2018, foi ainda maior. De alguma forma, isso também contribuiu, não só para a eleição de grande número de prefeitos da direita e extrema direita, como para a abstenção. Avalias que essa desinformação também contribui para isso?

Claro. E continua. Mas fake news sempre existiram, principalmente nas eleições.

Coloquei ingredientes aqui, num certo sentido, crítico às esquerdas, mas é óbvio que, do outro lado, a direita está jogando pesado. Ela hoje tem uma militância política, atua nas fake news e nas ruas também.

Acho que eles leram (o pensador italiano Antonio) Gramsci. Estão disputando conselhos tutelares, diretorias de escola, todos os espaços.

As organizações que nós produzimos foram produzidas por um tempo histórico que já não existe mais. Esse é um problema. Foram produzidas por um tempo em que o desenvolvimento do capitalismo permitia ganhos para a classe trabalhadora em geral.

Mas você tinha situações e correlações de força em escala internacional que permitiram um avanço, por exemplo, da social democracia em todo o mundo.

Você tem uma União Soviética por um lado, você tem a reconstrução da Europa por outro e a social democracia cresceu e muito.

Estamos em um tempo em que, além de não obtermos conquistas concretas para a classe trabalhadora, estamos perdendo conquistas históricas, frutos de muita luta. E os nossos instrumentos políticos e organizativos estão em uma fase defensiva, grande parte deles com um viés social democrata e, portanto, sem espaço.

Não é uma questão de eu gostar ideologicamente ou não da socialdemocracia. É uma questão objetiva desse tempo histórico.

E essa situação está colocando os limites desse grande espectro de esquerda, que inclui também social democracia e democratas mas que estão perdendo espaço e força no Brasil e no mundo inteiro.

Não dá para botar na lata do lixo o que a gente produziu. Não sou liquidacionista. O que produzimos é o que melhor que conseguimos mas não dá conta da atualidade.

Vou dar um exemplo: em cada bairro e lugarejo desse país você vai encontrar farmácia, vai encontrar igreja, vai encontrar biqueira, vai encontrar um monte de coisa. Mas pergunto: e cadê a portinha do movimento sindical? Cadê a portinha do partido? Cadê a portinha do movimento popular? Não há espaço vazio e esse espaço está sendo ocupado pelos setores de direita.

Não é que a juventude foi para a direita, não. É uma disputa política. Vamos ter que nos preparar se quisermos mudar esse país e o mundo, inclusive se quisermos ajudar a preservar a espécie humana.

Para alcançar essa mudança, qual esquerda precisa emergir?

Não há uma receitinha. Se conseguirmos fazer um bom diagnóstico, não só das eleições, mas das mudanças estruturais no mundo do trabalho, precisaremos apontar (algo) para que a esquerda comece a discutir com mais profundidade as causas do problema. Colocar o dedo na ferida.

Não tenho nenhuma dúvida que a continuidade do modo de produção capitalista vai significar a destruição da humanidade.

Falei que há gases de efeito estufa suficientes para derreter as geleiras e provocar a desertificação de algumas áreas ou a savanização da Amazônia, impactos muito grandes.

A COP (Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas) diz que precisamos parar de emitir 50% de gases de efeito estufa até 2030 e 100% até 2050.

Mas para diminuir essa quantidade de gases de efeito estufa, você deve abolir todas as tecnologias da Segunda Revolução Industrial, quais sejam as tecnologias do automotivo, o uso de petróleo, hidrocarburetos em geral, acabar com as guerras, a indústria do plástico.

Aí eu pergunto: qual a empresa capitalista que vai deixar de fazer isso? E qual Estado, nação capitalista, vai deixar de fazer isso? O capital precisa se acumular e se expandir permanentemente. Se não, deixa de ser capital.

E para acumular e se expandir permanentemente, precisa extrair matérias primas e transformar tudo e todos em mercadoria o tempo todo, inclusive as catástrofes.

Quem vai reconstruir o Rio Grande do Sul? As pontes, as estradas? Quem recuperou os estragos da Segunda Guerra Mundial? É disso que estamos falando.

Abolir as tecnologias da Segunda Revolução Industrial provocaria uma brutal contração no PIB em escala planetária. O capitalismo vai fazer isso? Esses países vão fazer isso? Não.

Se eu andar a pé com vocês, a gente não produz PIB. Agora, se andarmos de carro e tiver trânsito, como nas grandes cidades, a gente eleva o PIB.

Se bebermos água da fonte, não elevamos o PIB. Mas se a água estiver suja pra caramba e precisar de tratamento, crescemos no PIB. É a lógica do sistema do capital.

Então, a esquerda vai ter que discutir essa questão.

Aliás, termino aqui, com uma frase do Wilhelm Reich, um psicanalista alemão que, entre outras obras, escreveu Psicologia de Massas do Fascismo: ´Os velhos têm a história nas costas, a juventude à frente`.

Essa esquerda vai ter que dialogar com a juventude. É a única capaz de enfrentar esses problemas e propor um outro projeto.

Agora, não podem jogar os velhos na lata do lixo. Evidentemente, eles podem dar uma contribuição muito importante também para esse processo de reconstrução de uma nova esquerda, de um novo projeto político e ideológico.

Ainda sobre as eleições: este ano o MST resolveu investir mais fortemente e elegeu 133 candidatos a vereador, prefeito e vice-prefeito. Como que se deu essa decisão de investir mais nessa questão institucional?

O MST sempre esteve participando dos processos eleitorais apoiando aliados e aliadas na luta pela reforma agrária. Mas a própria luta concreta do MST é a busca pela institucionalização de conquistas.

Você faz a ocupação buscando institucionalizar o assentamento, o crédito, a moradia, e assim por diante.

Nós, como classe trabalhadora, buscamos, através da luta, que é a única linguagem que as classes dominantes entendem melhor, a busca de conquistas concretas para que, efetivamente, elas sejam institucionalizadas como direitos.

E eu quero fazer um recorte: não é todo o MST que foi nesse debate.

Optamos por entendermos que, principalmente as eleições municipais, são momentos importantes de fazer um debate político. Para além dos assentamentos, para além dos acampamentos, de envolver as circunvizinhanças desses espaços onde atuamos.

Até porque, sozinhos, só com a nossa base, dificilmente teríamos condições de eleger uma grande quantidade de gente.

Então, há um debate nas cidades que fazemos na defesa da reforma agrária, da alimentação saudável, da agroecologia, e agora também no espaço municipal. Como parte de um trabalho de base. Espero que não só no período eleitoral mas que venha para ficar.

Aqui em São Paulo, vejo um monte de gente com o boné do MST, na avenida Paulista, nos domingos. Não faço nem ideia de quem seja. De vez em quando dou um grito ´É isso, é terra!`

Virou moda…

O público se aproxima do MST por diferentes razões. Tem duas coisas importantes: uma é fazer a luta institucional, para que essa luta institucional nos ajude a fortalecer o braço da luta popular; outra é fazer a luta popular para que nos ajude a acumular forças do ponto de vista institucional dentro de uma perspectiva de projeto estratégico que queremos para o MST.

Na nossa pauta corporativa, mas também de uma pauta política mais ampla para amplos setores da classe trabalhadora.

E quais são os fatores que podem dar melhores condições eleitorais? Quais políticas públicas podem impulsionar essas candidaturas do campo democrático popular?

É importante sempre demarcar uma posição política e ideológica. Para que se disputa? Isso é fundamental, porque senão caímos numa lógica do indivíduo.

O primeiro aspecto é garantir essa coesão política, ideológica e de projeto político. Se não, vira oportunismo tóxico. E o segundo é difundir na sociedade temas importantes, como a agrofloresta, os problemas ambientais, a comida saudável, a reforma agrária.

A coisa mais moderna a ser feita nesse país é uma reforma agrária.

Hoje, o Brasil planta em 80 milhões de hectares. Destes, 45 milhões com soja e 21 milhões de hectares com milho. Sobram 14 milhões para as outras coisas. E o país utiliza 150 milhões de hectares com pastagens.

Ou seja, nos transformamos numa monocultura de exportação de commodities agrícolas, destruindo a natureza, os recursos naturais, utilizando adubos químicos, nitrogenados e uma quantidade de veneno imensa, colocando fogo nos nossos biomas.

Essa é a lógica, a dos grandes fazendeiros colocando fogo nos biomas para ampliar esse tipo de destruição para obter lucro.

Reforma agrária é fundamental no nosso país e no mundo e a disputa por terra, território e água é a disputa mais intensa que será vista no próximo período. Aliás, não se explica a guerra da Palestina sem discutir terra e território.

O MST tem seu Plano da Reforma Agrária Popular que será rediscutido no seu encontro nacional no ano que vem. E nesse projeto, além da reforma agrária, há várias propostas, como a da agroecologia e o plano de plantar 100 milhões de árvores em todo o Brasil. Essa proposta ajudaria a mudar esse sistema de produção do país?

Sem dúvida. Defendemos um modelo de agricultura para o Brasil (para o qual) é preciso fazer uma revolução. A revolução da agricultura é a única perspectiva que salvará a própria agricultura de um colapso, que está desenhado, que está se dando.

Em São Paulo, onde moro, é preciso irrigar a cana. Cultivos como laranja estão migrando em função do Aquífero Guarani. Estão perfurando grandes poços. O aquífero não dá conta de repor a água utilizada.

Em um curto espaço de tempo vamos ter uma crise hídrica muito grave, fruto desse tipo de monocultura e de destruição.

Afirmamos, categoricamente, que é possível alimentar toda a humanidade de forma agroecológica. Hoje, 65% do que se consome de comida na humanidade envolve quatro produtos: arroz, milho, trigo e soja. Se você colocar 90% dos alimentos de toda a humanidade, são 15 tipos de produtos.

Para termos um dado comparativo: o MST hoje, os pequenos agricultores, entregam no PAA (Programa de Aquisição de Alimentos do governo federal) 400 tipos diferentes de alimentos.

É que a indústria, além de centralizar economicamente – e por isso o conceito de agronegócio – é a montante do processo de produção, que é a indústria para agricultura, maquinários, venenos, sementes transgênicas que fornecem para a agricultura e a jusante do processo de produção, que é a indústria de transformação controlada por pequenos grupos em escala planetária que lucram financeiramente com a produção agrícola.

O processo está se financeirizando cada vez mais. Temos uma agricultura familiar que tem como produzir alimentos de todos os tipos sem veneno. Mas, para isso, é preciso mudar a cultura alimentar. A cultura dos ultraprocessados, subjetivamente e objetivamente, construiu isso.

A terra, os recursos naturais, a água, as sementes, devem ser patrimônio público da humanidade, Não pode ser propriedade privada. É preciso mudar os paradigmas tecnológicos.

Quando falamos de agroecologia, às vezes as pessoas pensam que estamos querendo voltar ao passado. Entrei no MST em 1985. Antes, eu trabalhava na terra. Desde criança, trabalhei atrás de juntas de boi no Paraná. Não é dessa agricultura que estou falando. Queremos tecnologia que diminua a penosidade do trabalho agrícola e que agrida o mínimo possível a natureza.

Quando decidimos plantar 100 milhões de árvores em 10 anos, tínhamos consciência que isso não resolveria o problema da questão ambiental e a crise climática. Mas plantar 100 milhões de árvores é plantar cuidado.

Quando nós decidimos fazer marmita e fazer doações solidárias no período da pandemia e outros, sabíamos que não iríamos resolver os problemas da fome no país. Mas distribuir marmita e comida é plantar solidariedade.

É aquela ideia de Marx, mas também de Paulo Freire, que ´nós nos fazemos ao fazermos as coisas`. Quando mandamos militantes do MST para a Palestina, para o Haiti, para a África, mais do que ajudar eles a resolver os problemas deles, no fundo estamos formando em nós a solidariedade e o internacionalismo.

É disso que se trata. É criar essas iniciativas numa perspectiva de formar uma nova geração com outros valores.

“O MST sempre esteve participando dos processos eleitorais apoiando aliados e aliadas na luta pela reforma agrária” – Foto: Matheus Alves/MST

Como o governo Lula poderia impulsionar essas práticas mais sustentáveis?

Estamos acertando uma nova reunião com o presidente da República. Tivemos uma um mês e pouco atrás e foi muito interessante, muito boa. Entretanto, ainda há uma deficiência em termos de políticas concretas para a pequena agricultura.

Na década de 1980, o Brasil enfrentou grave crise. Depois, o governo Fernando Henrique Cardoso teve que recorrer ao FMI. O Brasil não conseguia pagar a dívida externa.

Naquele momento, havia um processo de desindustrialização da economia brasileira. O fim de um ciclo. O que FHC irá fazer? Ele precisava vender, ter superávit comercial, ter dinheiro para pagar a dívida. Fez um programa voltado para a agricultura.

Com a Lei Kandir, em 1996, quem exportasse não pagaria impostos. Incentiva-se a exportação de commodities agrícolas.

Não é novidade na história brasileira. Nascemos exportando matérias-primas mas, a partir dos anos 1990, reprimarizamos cada vez mais a nossa economia.

Por que estou dizendo isso? Porque quem investiu na exportação de commodities é que foi beneficiado no campo brasileiro. E quem ficou produzindo para o mercado interno, principalmente comida para o povo, ficou alijado.

Vejamos: dos R$ 400 bilhões disponibilizados agora de financiamento para o grande agronegócio, foram R$ 400 bilhões públicos, com subsídio e equalização de taxas de juros.

Mas a iniciativa privada colocou um trilhão nesse tipo de negócio financeiro na agricultura. E R$ 70 bilhões para a agricultura familiar. Mas na agricultura familiar só 750 mil pequenos agricultores tiveram acesso. E temos mais de quatro milhões de pequenos agricultores.

Foram alijados, se endividaram, empobreceram no campo, e sequer têm direito a crédito. E olha a ironia. É quem defendeu o Lula nas últimas eleições.

Porque o agronegócio, e até certo setor da própria agricultura familiar, que aderiu à ideologia do agronegócio, acabou aderindo ao Bolsonaro. Veja a contradição.

Então, para nós avançarmos, e isso a gente falou na reunião com o Lula, é preciso Desenrola no campo, é preciso resolver pequenas dívidas.

Cinquenta por cento das dívidas dos pequenos agricultores não passam de R$ 10 mil. Tem um problema de score bancário que, mesmo que você tenha pagado a tua dívida, entra como uma espécie de mancha no banco. Isso é normativa interna do próprio Banco do Brasil e da Caixa.

É preciso crédito agrícola, é preciso colocar dinheiro no PAA, é preciso que cada pequeno agricultor tenha financiamento para plantar, ao menos, um hectare de agrofloresta na sua terra. Com isso elevamos a quantidade de árvores plantadas em todo o Brasil.

É preciso assentar as famílias acampadas, estimular a indústria de máquinas, de bioinsumos para substituir os insumos.

Estamos discutindo o campo para além da questão da produção. É uma espécie de pensar um plano diretor para cada assentamento, cada comunidade, que vai discutir como vai ser a agrovila, como vai ser a preservação das nascentes, como terá acesso à tecnologia, à internet, como que vai colocar teatro, vai colocar arte, vai colocar escola nesses lugares.

Uma perspectiva de transformar esses locais num lugar lindo para se viver, para morar em harmonia cada vez maior com a natureza mas numa perspectiva de qualidade de vida, como modelo, inclusive, para se pensar futuras cidades.

É o que achamos que o governo deve fazer. Infelizmente, tenho que ser honesto, não está acontecendo.

E o MST é um dos movimentos que não deixa de fazer a pressão no governo federal. Manuela D`Ávila, inclusive, disse que se um governo está em disputa, tem que ter disputa pelos dois lados, não adianta só o Centrão, o agronegócio, ficar disputando o governo e o outro lado não disputar.

Não fazemos luta porque achamos bonito. A luta de classe não surgiu conosco e nem terminará conosco, possivelmente, embora as lutas tenham o seu lado lúdico, de beleza, evidentemente, mas é porque é a única linguagem que as classes dominantes entendem. É no processo de luta que se forma o sujeito coletivo, é quando acontece o fenômeno da alteridade.

Eu me vejo em você, a ideia, meu companheiro, minha companheira, que, aliás, acontece na igreja também, minha irmã, eu e o irmão, é nesse processo que nos reconhecemos como classe trabalhadora.

Não dá para separar a luta econômica da luta política, não dá para separar a luta presente daquilo que a gente quer no futuro.

Se quiser uma sociedade solidária, tem que plantar solidariedade; se quiser uma sociedade justa, tem que plantar justiça; se quiser uma sociedade onde homens e mulheres tenham direitos iguais, é preciso plantar isso aqui e agora, inclusive, dentro das nossas casas.

No dia em que a esquerda e o movimento popular, o MST, deixarem de fazer luta é porque morreram. Não tem sentido.

Olha o paradoxo que vou colocar agora: somos os primeiros a querer acabar com o MST. Agora, para acabar com o MST, é preciso fazer a reforma agrária. E sabemos que, para fazer a reforma agrária, é preciso alterar a correlação de forças e essa tarefa não é só do MST. É de vocês e de toda a sociedade brasileira.

Qual é a expectativa com essa centena de candidaturas eleitas do MST?

Espero que seja uma experiência positiva. Mas temos que ter a clareza para, aí na frente, se a experiência for negativa, fazermos uma autocrítica e corrigimos os golpes.

Não é uma coisa… “Ah, o MST entrou de cabeça agora, não tem volta”. Não é assim. Tem uma expectativa positiva de colocar os nossos temas e de amplos setores das classes trabalhadoras nesses espaços municipais. Não é o indivíduo que está lá. É o projeto.

Aliás, tem um bocado de gente que se acha o maioral, lê os três livros, empina o nariz e se acha o grande que vai resolver tudo. Brinco com eles e digo ´Vai sozinho fazer uma ocupação de terra então, se tu é o bom`.

Acredito em processos coletivos, acredito na humanidade, mesmo com toda a crise que nós estamos vivendo. Quem perdeu a crença na humanidade de alguma forma morreu internamente.

O MST tem essa preocupação com o novo paradigma do ser humano. O próprio plano da reforma agrária popular também traz esses elementos das relações interpessoais. Che Guevara dizia que uma revolução tem que ser para trazer um novo homem, uma nova mulher, enfim, esse elemento da humanidade…

Temos que falar de revolução com um sorriso nos lábios. Fazer a revolução é algo fundamental para o Brasil e para o mundo. Parece que para falar de revolução tem que falar escondidinho. Se você esconde, a esquerda não ameaça.

Nós nem falamos aqui mas quanta gente está em depressão, o índice de suicídios, mundo afora, e na juventude em particular. É isso que a gente quer, francamente?

Então, temos que falar dessa nova sociabilidade. Vai doer para um monte de gente, não é? Falar de participação das mulheres. Romper com preconceitos mais diversos, seja o racismo, a LGBTfobia etc.

Queremos construir uma sociabilidade diferente. E isso não desarticula. Pelo contrário. Não dá para separar da luta econômica.

Você tem que disputar a terra. Não vai haver reforma agrária se não tiver desapropriação. Depois, você tem que ter um projeto de uso dessa terra. Aliás, a reforma agrária é uma bandeira burguesa da revolução francesa. Que se aliou ao campesinato porque precisava derrotar o feudalismo e criar mercado.

Mercado dos produtos da burguesia e matéria-prima. Então, criou-se essa ideia de reforma agrária dentro do capitalismo. Agora, hoje a reforma agrária não pode ser feita ao estilo clássico. Tem que ter um projeto. Por isso chamamos de reforma agrária popular. Que é distribuir terra mas também construir novas relações. Preservar, replantar, cuidar de nascente. Mas é também cuidar das relações, ter educação, ter saúde.

(*) Esta é uma versão reduzida de entrevista ao podcast De Fato.

 

 

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