Flávio Sarandy: Muitas dúvidas sobre o negócio bilionário dos livros didáticos

Tempo de leitura: 9 min

Algumas perguntas sobre o PNLD

Flávio Sarandy*, na Revista Espaço Acadêmico

Por que o PNLD (Programa Nacional do Livro Didático) submete os livros didáticos à avaliação das instituições de ensino superior se o livro é destinado à educação básica?

Por quê, se serão os professores da educação básica que deverão escolher os seus livros didáticos?

Se aos olhos do MEC os docentes da Educação Básica não têm a competência para a avaliação dos livros, não deveriam ter de escolher entre os “livros aprovados” e, por outro lado, se se admite terem eles a competência para escolher, por que não participam da avaliação, em paridade de condições com especialistas acadêmicos, gestores dos sistemas de ensino, mães, pais, alunas e alunos?

Não deveriam todos os interessados ter a oportunidade, por direito e competência num sentido muito além da competência institucionalizada, de dizer o livro que almejam e de avaliar os livros que têm sido produzidos?

Como política pública de relevância nacional, o PNLD poderia ganhar em eficácia e eficiência se estruturado a partir de um marco regulatório que definisse, inclusive, os parâmetros de qualidade de um livro didático, a partir de ampla, inclusiva, participativa e paritária decisão de todos os interessados ou afetados pelo livro didático.

O marco regulatório para o setor deveria considerar ao menos três dimensões: qualidade pedagógica, científica e editorial do livro didático; transparência e normatização do processo de escolha; integração consistente com uma política para o mercado editorial, considerada a maximização da equanimidade nas condições de oferta, acesso e preço.

Pode-se alegar que a primeira dimensão abordada já está prevista na política do livro didático. Não é bem assim.

A fixação da qualidade do livro didático não está fixada num marco regulatório permanente – ainda que sujeito a mudanças, construída por processo coletivo inclusivo, em que se leve em conta a experiência acumulada de todos os sujeitos afetos, de editores e pesquisadores acadêmicos aos docentes e discentes da escola básica.

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A lacuna, no caso, é a inexistência de uma política participativa de avaliação, o que poderia elevar o seu grau de accountability e a sua efetividade.

O ideal seria que todos os sujeitos interessados participassem do Programa e da construção de seu marco regulatório a partir de sua concepção e não somente no momento da avaliação dos livros inscritos.

Algo similar se poderia dizer da segunda dimensão: o processo de escolha está fracamente institucionalizado, desde que os procedimentos burocráticos previstos, a despeito de sua normatização legal e gestão por sistema informatizado federal, peca no que diz respeito ao acesso à informação.

Uma política pública, ainda mais em se tratando de avaliação, não prescinde (ou não deveria prescindir) de ser acompanhada de um processo massivo de informação e treinamento para o próprio processo.

Se ao professor não está garantido o conhecimento necessário sobre o processo de escolha do livro didático, dado que sequer ele tem acento na avaliação dos livros inscritos no programa, o trabalho reduz-se à lógica mercadológica da publicidade editorial.

Por outro lado, a terceira dimensão sugere a integração da política de gestão do PNLD às demais políticas da área educacional (um exemplo seria a construção de parâmetros de qualidade do livro didático relacionados à BNCC), assim como sua integração com políticas de barateamento dos custos industriais do livro no Brasil.

Por exemplo, envolver “a ponta do mercado”, as livrarias, no processo distributivo, com rubrica própria no Orçamento da pasta educacional, em nível ministerial, talvez contribuísse para diluir custos relacionados à distribuição dos livros diretamente pelas editoras, além de permitir que outros agentes econômicos concorressem no processo e não somente as corporações de grande capital.

Outras medidas de interesse também poderiam ser avaliadas, como a exigência de percentual de capital nacional das corporações envolvidas, fixação de parâmetros para a divulgação das obras, centralizadas por gestão ministerial, em convênio com as secretarias estaduais de educação e tendo como operadores as livrarias, fixação de parâmetros e princípios para a publicidade do livro didático, emprego de material reciclável na produção gráfica etc.

Por que o PNLD, como política pública incide exclusivamente sobre a avaliação e não a distribuição?

Ora, a avaliação dos livros didáticos é objeto relevante de política pública nacional, porém, tem sua eficácia social comprometida quando, na distribuição dos livros didáticos obtém vantagem a grande editora (que no caso brasileiro é cada vez mais controlada por capital estrangeiro).

O MEC deveria compreender que se a distribuição não é acordada com escolas, agentes do mercado, professoras e professores, gestores dos sistemas de ensino e alunas e alunos, e controlada por regras de imparcialidade, publicidade e transparência, entra em ação a lógica da guerra de mercado, em que chegam às escolas somente os livros de editoras com capital suficiente para investir em publicidade, distribuidores nacionais (os “divulgadores”) e ações promocionais.

O que isso tem a ver com a tão festejada qualidade do livro didático, segundo o MEC?

Um mistério. A distribuição do livro didático deveria ser tratada como ponto crítico dessa política pública, justamente por tratar-se do momento do processo em que a disputa do interesse comercial compromete as bases e os princípios do programa.

Todo o trabalho – limitado, por estar restrito aos profissionais das instituições de ensino superior, é comprometido quando, no processo de divulgação e distribuição, abandona-se à coordenação do processo à esfera regional ou estadual, e permite-se que a escolha do livro por parte do docente da educação básica seja influenciada por ações de marketing.

Permitir que as secretarias estaduais de ensino gestem o processo de escolha do livro didático significa, na prática, o Ministério da Educação abandonar a condução objetiva da educação pública aos espaços de maior influência das corporações empresariais e de outros interesses privatistas no setor.

É recorrente e gritante a alegação de docentes da falta de informação suficiente do processo previsto no PNLD (e aqui nem estamos considerando alunos e famílias), assim como tem sido constante as alegações de práticas abusivas no processo de divulgação e promoção das obras.

Tudo isto poderia ser bem equacionado por uma revisão do processo de gestão, do tipo de convênio firmado entre a União e os Estados e Municípios e pela criação de um marco regulatório para o setor.

Não seria questão de justiça política, equidade, fair play comercial e elevação da qualidade das produções didáticas o MEC promover, com a participação incisiva do docente da educação básica, a criação de um marco regulatório para o setor?

Pelo qual editoras, autores, gestores, livreiros, professoras, professores, mães, pais, alunas e alunos pudessem se pautar em decisões curriculares e didáticas consistentes?

Afinal, a cada edição do PNLD há alterações no desenho do edital, ainda que mínimas, nos critérios de avaliação, nas exigências formais etc., de modo que as editoras e os autores necessitam de um grande esforço para ajustarem as suas obras, dedicando muito tempo em procedimentos burocráticos – para atender o edital! – e menos tempo do que poderiam para evoluir os seus livros.

Do mesmo modo, docentes frequentemente tem de alterar os seus percursos didáticos a fim de adaptarem-se às novas obras aprovadas.

Sem contar que a avaliação do PNLD, sendo avaliação cega que garante maior transparência (princípio constitucional) ao processo avaliativo, por vezes, se apresenta cega num outro sentido, pois que a universidade não é espaço homogêneo e os campos científicos e disciplinares não cultivam critérios exatos e consensuais no que tange à didática de suas disciplinas.

Disso decore que bons livros didáticos, ao olhar dos docentes da Educação Básica, são reprovados sob a visão do especialista da universidade, por vezes até pelo comportamento exclusivamente burocrático do avaliador ante a ausência de uma legenda numa imagem!

Um completo non sense, mas já ocorreu em avaliação do tipo aqui considerado.

Caso exemplar para a disciplina Sociologia é a reprovação do livro Sociologia para o Ensino Médio, dos professores Nelson Dacio Tomazi e Marco Antônio Rossi.

Os argumentos utilizados na justificativa da reprovação indicam desconhecimento da obra reprovada e pouca compreensão sobre o sentido do ensino da disciplina no Ensino Médio.

Isso apenas tem lugar, ao meu ver, porque se atribui ao pesquisador da universidade uma autoridade inconteste, na mesma medida em que se exclui a escola do processo.

Outro exemplo é a preocupação externada quanto a nova seção “Aprendendo com jogos”, do livro Sociologia para Jovens do Século XXI, de Luiz Fernandes de Oliveira e Ricardo Cesar Rocha da Costa.

O alerta diz respeito à inexistência de computadores em muitas escolas e às dificuldades em se fazer uso de jogos em sala de aula.

Entretanto, mais uma vez os avaliadores ou os colegas que elaboraram o Guia do Livro Didático (pois que o processo é bastante burocrático e os textos resultantes da avaliação podem passar por muitas mãos, revisões e reescritas) denotaram desconhecimento parcial do texto que avaliaram, pois que a proposta elaborada na seção é de uso e aplicação pedagógica da experiência de jogo, não de sua utilização em sala de aula.

Em muitos casos, as propostas de atividades apresentadas dispensam o uso de recursos computacionais em sala de aula. A preocupação externada fica ainda mais destoante quando se atenta para o fato de que ao menos 1/3 das propostas elaboradas não aplicam jogos digitais!

Ainda mais grave é um avaliador aparentar desconhecer as necessárias mediações, finalidades e limitações do ensino de qualquer disciplina científica em âmbito escolar.

Veja-se, novamente, o caso da preocupação com as propostas de aprendizagem a partir da experiência com jogos (com qualquer jogo, em suporte digital ou físico, como jogos de cartas, por exemplo): ao afirmar a inexistência de salas de informática nas escolas o alerta assume uma visão de escolaridade restrita ao espaço escolar e supõe que os jovens não jogariam por não acessarem computadores nas escolas.

No entanto, eles jogam! Tais distorções quanto à natureza do ensino na educação básica apenas são possíveis devido à excessiva burocratização do processo avaliativo e a sua restrição ao especialista do campo científico acadêmico.

Por que, dado tratar-se de política pública, o PNLD não está integrado às demais dimensões do setor educacional?

Senão, vejamos: não é exigido para os sistemas particulares (algo incompreensível, por modo de dizer), não envolve as livrarias no processo de compra e distribuição dos livros (o que poderia contribuir para o seu barateamento se a distribuição ficasse sob a responsabilidade de livrarias, com rubrica orçamentária da pasta da educação, o que reduziria os custos das editoras e permitiria que outros agentes econômicos ingressassem num mercado altamente concentrado) e não estabelece ponte direta entre Ministério e escolas (onde a direção da unidade escolar deve inserir a escolha do docente, quando os próprios docentes deveriam proceder ao registro do livro selecionado).

Ao incluir as secretarias estaduais de ensino, o processo abre espaço para todo o tipo de manipulação e ingerência indevida, senão ilegal, sobre o processo de escolha.

Exatamente porque transfere uma política de Estado para a esfera da política regional ou local.

Uma política pública que tem por finalidade uma única dimensão de algo complexo não é eficaz para além da retórica.

O livro didático não se reduz a sua qualidade pedagógica intrínseca, por assim dizer, mas é objeto complexo inserido em estrutura de relações econômicas, culturais, semióticas, políticas, legais e pedagógicas diversas.

O PNLD deveria integrar mais preocupações que a qualidade técnica do livro sob o olhar de especialistas acadêmicos.

Por que somos aturdidos em todas as edições do PNLD com recorrentes alegações de que algumas secretarias de educação nos estados antecipam o período de escolha do livro didático sem que nenhuma ação de apuração ou controle seja esboçada pelo Ministério da Educação?

Chegou-se a dizer que secretarias de educação orientam os professores que preencham a lápis a ficha de seleção do livro didático?

Acaso isso seria a propósito de “corrigir” a escolha do livro segundo a conveniência da secretaria? Por quê?

Seria para facilitar a logística de distribuição dos livros?

Mas fica a dúvida: se a distribuição tem origem no MEC, que adquire os livros por meio de contratos de compra em quantidades compatíveis com as informações preenchidas em sistema online pelas direções das unidades escolares (por sua vez definidas pelas escolhas autônomas dos professores, que deliberam coletivamente por disciplina), e passa pelas editoras, que devem providenciar a impressão gráfica e o envio dos livros, restando às secretarias a (difícil?) tarefa de entregar os livros em cada escola sob sua jurisdição, ou melhor, a gestão, supervisão e coordenação do processo de distribuição (dado que são as editoras que têm de entregar os livros na quantidade especificada no contrato com o MEC), o que efetivamente gera problemas de logística, a escolha por parte dos docentes de livros distintos para as diferentes escolas ou a gestão administrativa das secretarias?

Porque a escolha de livros diferentes para contextos e propostas pedagógicas escolares distintas nada tem a ver com a operação de distribuição dos livros.

O problema da distribuição é questão administrativa do órgão gestor, que tem a obrigação de respeitar a especificidade dos contextos escolares e a prerrogativa de autonomia docente sobre o livro mais adequado ao perfil de suas alunas e de seus alunos.

Se admitirmos o argumento da facilidade de distribuição se somente um livro for adotado, então deveríamos esperar dificuldades do próprio Ministério da Educação no controle sobre diferentes obras e consequentes contratos com diferentes editoras.

Melhor seria a escolha do livro único ser definida em nível ministerial e o contrato, celebrado com uma única editora para todo o território nacional!

Algo, naturalmente, absurdo. Ocorre que nada disso se justifica.

Sobretudo, pelo violento desrespeito à autonomia de professoras e de professores.

Por fim, porém não menos importante: por que o MEC anunciou alteração na política de avaliação do PNLD, em direção a um modelo ainda menos transparente e nada participativo?

A notícia sugere que a avaliação será por equipe composta nem por edital público nem por concurso, mas por “escolha do Ministério”.

Sobre isso, creio que este texto já fornece elementos suficientes para o debate.

Essas são questões que julgo graves e que mereceriam de todos mais do que a repetição pura e simples do lugar comum da importância do PNLD.

Aos que festejam acriticamente o programa recordo que porque o PNLD é de grande importância mereceria de nós um olhar mais discreto e crítico sob a intenção de garantir-se que seus objetivos acumulem eficácia e eficiência, seja em termos de resultados pedagógicos seja em termos de resultados de sua gestão como política pública.

*FLÁVIO SARANDY é professor na Universidade Federal Fluminense

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