A esquerda deve elevar o debate ambiental ao patamar da ação política marxista, diz Joaquim Monteiro
Tempo de leitura: 5 minA esquerda deve elevar o debate ambiental à práxis marxista
A atual situação no Rio Grande do Sul é, possivelmente, uma das piores catástrofes climáticas da história brasileira. Isso é consequência direta dos efeitos das mudanças climáticas causadas pelo capitalismo por meio do agronegócio e políticas de austeridade, que além de gerar o problema, desmonta os instrumentos públicos que permitiram algum poder de resposta à emergência
Uma entrevista de Hugo Albuquerque com Joaquim Monteiro *, na Jacobina
A catástrofe ambiental no Rio Grande do Sul já desalojou mais de cem mil pessoas, deixando centenas de mortos e desaparecidos nas inundações que varreram muitas cidades gaúchas, inclusive a região metropolitana de Porto Alegre – que segue inundada e, praticamente, isolada do resto do Brasil, com o aeroporto sem previsão de receber voos pelo próximo mês. É, possivelmente, um dos piores eventos climáticos da história brasileira.
Enquanto organizações como o Movimento dos Trabalhadores Sem-Terra (MST) se mobilizam para prover comida e água a esses refugiados ambientais, a extrema direita segue entre o negacionismo climático ou, até mesmo, tentando recolher doações para ONG’s sem qualquer relação com resgates – dando uma mostra do que consiste a atual “polarização” da política brasileira.
O presidente Lula defendeu um orçamento especial para a reconstrução do Estado, o 6º maior em população e o 4º maior PIB, prefigurando uma luta árdua, inclusive interna no governo.
Essa tragédia vem acompanhada de anos de negacionismo climático dos governos liberais de centro direita do Estado e da capital gaúcha, que repetem as políticas de negacionismo climático que aturdiram o Brasil nos últimos anos.
Para compreender melhor toda a situação, conversamos com Joaquim Monteiro, que está em Porto Alegre agora, onde reside – tendo sido afetado pela catástrofe.
Ele é monge budista e possui um longo currículo de militância política no Brasil e no Japão, participando ativamente dos debates e das atividades práticas na reconstrução da esquerda revolucionária atualmente.
HA: Nos conte sobre sua experiência em meio a essa verdadeira catástrofe? Como está agora e quais as perspectivas para os próximos dias?
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JM: Eu soube que a catástrofe era inevitável apenas na quinta-feira, dia 2. Fiquei sem eletricidade e internet, portanto ilhado, até domingo dia 5. Dois amigos conseguiram me tirar do meu apartamento, no centro de Porto Alegre, que fica no terceiro andar, e só por isso eu não tive perdas materiais.
Mas as pessoas que moram em casas, nas vilas, nos quilombos ou nos andares mais baixos sofreram danos irreparáveis – a média da população passou por coisas horríveis, perdeu parentes, teve suas casas destruídas, teve sua base de vida destruída e teve muito pouco apoio em meio a tudo isso.
Eu não tenho dúvida alguma de que há uma revolta muito grande, tudo por causa da violência com que isso aconteceu, com a situação de abandono, a completa falta de planejamento dos assim chamados poderes públicos. O sentido político que essa percepção pode vir a ter ainda não está claro, mas existe sim uma atmosfera de revolta.
HA: Reportagens mesmo da mídia tradicional, como o Zero Hora, já apontavam os riscos de uma enchente em Porto Alegre. Pesquisadores já apontavam o risco de uma grande inundação na capital gaúcha no final do ano passado, mas nada disso mudou os planos — ou falta de planos — do governo estadual gaúcho e de muitas prefeituras. De repente, todos foram atropelados pela realidade da pior maneira. O que será de agora em diante?
JM: A grande ironia da nossa situação histórica é que o Rio Grande do Sul é onde nasceram os movimentos ambientalistas e ecológicos no Brasil. Podemos citar o movimento Roessler, que foi um grande pioneiro dessa luta há 45 anos; ou, antes, José Lutzenberger que liderou a fundação da Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural (Agapan) em 1971.
Esse movimento teve uma influência bastante positiva nos governos populares pós-ditadura – ou em eventos como o Fórum Social Mundo.
Mas eles nunca conseguiram mudar, de forma cabal, a postura das autoridades públicas sobre o meio-ambiente, embora sempre tenham conseguido influenciar as políticas públicas de alguma maneira.
A tragédia aconteceu nos últimos governos gaúchos.
O governador Eduardo Leite (PSDB), que está no poder desde 2018, e o prefeito de Porto Alegre Sebastião Melo (MDB), desde 2020, ignoraram todas as advertências dos ecologistas, que já há alguns anos apontavam a necessidade de reconhecer um estado de calamidade climática no Estado.
Isso teria que ser feito e resultar em uma série de medidas. Mas Leite e Melo não só ignoraram essas advertências como destruíram a infraestrutura gaúcha com políticas neoliberais que só podem ser classificadas como criminosas.
Por exemplo, a CEE, que era a companhia pública de energia, tinha algum nível de capacidade de resposta. Só que ela foi privatizada e se tornou a Equatorial.
Com isso, surgiu uma empresa sem capacidade de atender a população em uma situação de emergência.
Então, vemos uma postura dos órgãos ditos públicos que ignora todas as advertências e demandas do movimento ambiental, enquanto promovem a destruição do aparato público estadual.
HA: Qual o papel possível para a esquerda diante dessa catástrofe no Rio Grande do Sul?
JM: Isso me parece bastante claro. A esquerda precisa abandonar as ilusões eleitorais, que pensa só em termos do processo e do calendário eleitoral, retomando a organização popular.
Outro aspecto é que hoje já temos noção dos méritos e dos limites do movimento ambientalista, portanto, a esquerda deve elevar o debate ambiental à práxis marxista e há três pontos fundamentais nisso:
— a esquerda precisa desenvolver uma forte interação com as bases, por meio de campanhas de mobilização e esclarecimento popular, pois isso seria a única forma de se contrapor ao nosso estado de barbárie;
— o segundo ponto é que existe uma tarefa teórica da esquerda, pois mesmo que todo o legado dos ambientalistas seja precioso, ainda mais aqui no Rio Grande do Sul, hoje já passou do tempo de apenas tentar persuadir as autoridades a fazerem algo.
Aí entraria o papel de uma esquerda marxista de elevar o nível dessa reflexão e desenvolver uma política concreta – e eu não sei se aí as contribuições de pensadores como John Bellamy Foster ou Kohei Saito teriam alguma coisa de fundamental a contribuir, mas eu acredito que a esquerda deva politizar todas as temáticas ambientalistas;
— e por fim, é preciso desenvolver uma estratégia concreta de ruptura com o capital, que é a única possibilidade de enfrentar essa situação ou mitigar seus piores efeitos.
HA: Esse evento não seria um marco para o Brasil sobre o processo de degradação climática?
JM: Sem dúvida. Embora tenha acontecido no Rio Grande do Sul, trata-se de um marco para todo o Brasil. Ela não é pura e simplesmente uma questão regional, embora a radicalidade da situação seja mais visível por aqui. É preciso entender que não se pode enfrentar a atual crise climática com medidas pontuais.
Existe, em primeiro lugar, a necessidade de um estudo científico abrangente da situação ecológica do Brasil hoje e, depois, é preciso definir marcos estratégicos para lidar com a tragicidade dessa situação.
E, por fim, é preciso dizer que isso só pode ser possível com a total abolição de políticas de austeridade, como o arcabouço fiscal, uma política totalmente absurda que converge na direção desse genocídio que se avizinha.
*Joaquim Monteiro possui graduação em psicologia pela Universidade Santa Úrsula RJ (1983) e mestrado e doutorado em filosofia budista chinesa pela Universidade de Komazawa, Tóquio, Japão (2000). Foi professor da Universidade I-Show em Kaohsiung, Taiwan, (2003-2005) e professor visitante na UFPB (2013-2017).
*Hugo Albuquerque é publisher da Jacobin Brasil, editor da Autonomia Literária, mestre em direito pela PUC-SP, advogado e diretor do Instituto Humanidade, Direitos e Democracia (IHUDD).
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