
Os americanos que defendem a procriação seletiva
Organizadores e participantes de evento no Texas convergem para promover, senão a eugenia, algo muito próximo dela
Por Dorrit Harazim*, em O Globo
A cidade de Austin, capital do Texas, é um oásis liberal fincado num estado sulista majoritariamente conservador.
Sua respeitada universidade também — dois terços dos 52 mil alunos que ali estudam se declaram liberais, e apenas 10% conservadores.
Mesmo sem dados específicos sobre o corpo docente da bicentenária instituição, pode-se supor que os mais de 3,2 mil professores de suas 19 faculdades também espelham esse perfil arejado. Daí a estranheza com a realização, num dos 50 prédios do espaçoso campus, de um simpósio bastante exógeno ao saber acadêmico.
O evento anual que atende pelo nome de Natal Conference (ou NatalCon), agora em sua segunda edição, foi divulgado on-line até em português.
Ao longo de dois dias da semana passada reuniu “pró-natalistas” dedicados, em princípio, a buscar soluções para estancar e inverter o declínio das taxas de natalidade no mundo.
O tema não é novo, vem sendo debatido desde o pico dos anos 1960 por demógrafos, economistas e cientistas de várias vertentes.
O “novo”, no caso da NatalCon, é a naturalidade com que organizadores e participantes convergem para promover, senão a eugenia, algo muito próximo dela.
Apoie o VIOMUNDO
O preço do ingresso individual neste ano foi de US$ 10 mil (quase R$ 60 mil para um fim de semana ) e, mesmo assim, “sujeito à aprovação”, conforme constava da ficha de inscrição.
O site da conferência também avisava que os “debates francos e profundos” seriam a portas fechadas, com celulares proibidos, e que haveria algum tipo de filtro dos participantes.
Os solteiros receberam pulseiras amarelas indicativas de que procuravam futuras esposas para formar famílias de filhos múltiplos. Graças a uma reportagem da CNN americana, que obteve acesso parcial ao evento, foi fácil constatar o óbvio: a natalidade desejada é somente para brancos. Brancos americanos. Brancos americanos aptos. Brancos americanos aptos e extremistas.
Oradores martelaram mensagens subliminares:
— Isso é uma guerra da civilização, e vamos vencê-la passo a passo.
— Precisamos de mais crianças para nosso futuro.
— Pessoas marginais devem ser mantidas à margem.
— Enquanto a esquerda se preocupa em abrigar gatos, queremos multiplicar o nascimento de bebês.
O marido de uma palestrante em trajes coloniais e touca branca de algodão, com um dos cinco filhos amarrado às costas, queria saber “por que pessoas focadas em alta fertilidade são vistas como esquisitas?”.
Segundo o discurso oficial, a meta política ou ideológica da conferência era uma só: trabalhar para “um mundo em que nossos filhos podem ter a segurança de vir a ter netos”. Faltou explicitar “netos aptos”.
— Não é eugenia, não se trata de esterilizar pessoas inadequadas — garantiu a genitora da touca de algodão alvo.
Ah, bom.
— Poder escolher o melhor entre nossos próprios embriões não é fazer seleção — acrescentou, convicta.
Uma coisa deve ter ficado clara ao final da conferência com toques de cientificismo racial: o almejado aperfeiçoamento de futuras gerações não se destinava a contemplar bem-estar ou melhorias para a população em geral. Dane-se a humanidade.
Por que desperdiçar tempo com um evento de escopo tão limitado, quando comparado ao precipício global cavado por Trump na Casa Branca?
Porque a conferência em Austin e o poder em Washington têm dois cordões umbilicais de peso: um é o vice-presidente J.D.Vance, herdeiro natural do movimento Maga (se algum dia Trump sair do poder).
Vance é jovem (40 anos), além de celerado e oportunista. Já abraçou publicamente o “natalismo” e nele se embrenhará com afinco se e quando necessário.
O outro é ninguém menos do que Elon Musk, defensor radical do repovoamento seletivo do mundo. A maioria dos seus 13 filhos foi gerada por fertilização in vitro por quatro mulheres (o caçula tem 7 meses de idade), buscando, talvez, o DNA da genialidade.
(A exceção é a filha trans Vivian Jenna, de 21 anos, que do pai não quer sequer o sobrenome.) Musk não apenas apoiou e recomendou a realização da conferência, como tem fundos e mundos para multiplicá-la exponencialmente, onde quiser.
Caso, alguma vez, ele tenha lido algo do biólogo e paleontólogo Stephen Jay Gould, deve ter sido com a ajuda da ferramenta Blinkist, a preferida de CEOs e big techs para economizar tempo. Assim, deve ter passado batido por um dos ensinamentos mais bonitos do cientista que amava as espécies:
— Estou menos interessado no peso e nas convoluções do cérebro de Einstein que na quase certeza de que pessoas com talento igual ao dele viveram e morreram em campos de algodão e oficinas exploradoras.
*Dorrit Harazim é jornalista e documentarista.
*Este artigo não representa obrigatoriamente a opinião do Viomundo.
Leia também
Jair de Souza: A insuperável podridão das classes dominantes ocidentais
Paulo Capel: ”Todos somos netos de eugenistas, inclusive os acusadores do avô de Maria Rita Kehl”
Comentários
Nenhum comentário ainda, seja o primeiro!