Carlos Vainer: Para que não se esqueça, para que nunca mais aconteça

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Museu da Memória e Direitos Humanos, em Santiago, capital do Chile. Fotos: @Nico Saieh

Para que não se esqueça, para que nunca mais aconteça

Por Carlos Vainer*

“Se o passado conta é pelo que significa para nós. Ele é o produto de nossa memória coletiva, é o seu tecido fundamental. (…) Ele nos ajuda a compreender melhor a sociedade na qual vivemos hoje, a saber o que defender e preservar, a saber também o que mudar e destruir. (…) O passado está presente em todas as esferas da vida social” (Chesneaux,1996, p. 22)

Qualquer visitante do Museo de la Memoria y los Derechos Humanos, em Santiago do Chile, ou do Espacio Memoria y Derechos Humanos, na antiga Escola de Mecânica da Armada, em Buenos Aires, principal centro de tortura sob a ditadura, certamente será impactado por duas coisas.

De um lado, o caráter pedagógico e esclarecedor das verdadeiras aulas de história que se recebem nessas visitas. E, de outro lado, tão ou mais importante, a admirável afluência de jovens, organizados em pequenos grupos de amigos ou conduzidos por seus professores e escolas.

Os guias e professores completam as informações que constam de fotos, textos, vídeos, áudios-depoimentos que estruturam as exposições.

O processo de democratização nestes dois países, como também no Uruguai, progressivamente, não sem obstáculos e resistências dos militares e seus cúmplices, foi capaz de promover, aperfeiçoar e implantar políticas de memória e verdade, com práticas consistentes e abrangentes de pesquisa, documentação e promoção da memória histórica dos trágicos tempos ditatoriais.

No Chile e Argentina, dezenas de antigos centros de detenção e tortura foram transformados em sítios de memória espalhados pelos territórios nacionais, concretizando o compromisso democrático de preservar e promover a memória das violações de direitos humanos ocorridos sob as ditaduras e prestar a merecida homenagem aos milhares de torturados, mortos e desaparecidos.

Em vários países do mundo, a preservação da memória das lutas pela democracia e contra a violação dos direitos humanos é parte constitutiva das políticas de Estado.

Quem circula por cidades francesas, encontrará repetidamente placas indicando que numa determinada casa viveu ou foi morto um integrante da resistência, a lembrar a cada passante que aqueles lugares e aqueles país têm uma história de luta contra o nazismo.

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Na África do Sul como no Vietnã esses lugares são espaços de aprendizado social coletivo da violência desatada contra seus povos e do heroísmo dos que resistiram.

Em Yerevan, capital da República da Armênia, se encontra o memorial que cultua a memória dos cerca de 1 milhão de armênios assassinados no genocídio promovido pelo Império Turco-Otomano e em várias cidades de diferentes países museus e memoriais relembram o holocausto promovido pelo nazismo de 6 milhões de judeus e muitas dezenas de milhares de ciganos.

A experiência espanhola merece especial atenção, pois em vários aspectos se parece com a brasileira. A transição democrática naquele país ao final dos anos 1970 esteve ancorada numa negociação entre forças democráticas e franquistas,

“baseada na ficção acordada de que a história da Espanha estava começando de novo após a morte de Franco. Aqueles que se beneficiaram do franquismo estavam satisfeitos em apagar seu passado antidemocrático, enquanto aqueles que sofreram com a ditadura ou o exílio estavam conscientes demais da fragilidade da nova democracia para exigir uma ruptura limpa com o passado.” (Junyent, 2024)

Esse Pacto do Olvido, como ficou conhecido, foi institucionalizado por uma Lei de Anistia em 1977, que, como entre nós, garantia a impunidade legal dos responsáveis pelos crimes do franquismo e pretendia dar por encerrada a transição democrática.

Com o avanço das forças democráticas, em 2007, apesar da oposição da direita, o Congresso espanhol tornou obsoleto o Pacto do Olvido espanhol e aprovou uma Lei da Memória Democrática, que invalidava julgamentos políticos de tribunais franquistas e ordenava a remoção de símbolos e nomes de logradouros políticos relacionados ao franquismo.

A lei também obrigou o Estado a financiar pesquisas e exumações de restos mortais nas valas comuns onde dezenas de milhares de republicanos foram enterrados, durante e após a guerra civil.

Mais recentemente, em 2022, novos passos foram dados, e o governo de coalizão liderado pelo primeiro- ministro Pedro Sánchez, socialista, aprovou nova Lei de Memória Democrática, com importantes progressos em relação à lei de 2007.

De um lado, o Estado passa a ser responsável por exumar, identificar e proporcionar um sepultamento digno aos republicanos que foram enterrados em valas comuns.

De outro lado, determina a inclusão nos currículos escolares a história dos crimes franquistas e reconhece uma gama mais ampla de vítimas do conflito de 1936-39 e da ditadura.

A direita, em defesa da Lei do Olvido, como em 2007, votou contra a lei.

Completam-se agora 60 anos do golpe de estado de 1964, no Brasil.

Este aniversário ocorre num momento em que cada vez ficam mais evidentes as ações promovidas pelo ex-presidente Jair Bolsonaro e número não desprezível de integrantes das forças armadas, inclusive sob a liderança de oficiais superiores, para levar adiante um golpe de estado e instaurar um regime ditatorial.

É como se fantasmas de nosso passado estivessem a assombrar o presente e o futuro do país.

São fantasmas de carne e osso, que ao longo de muitos anos cultivaram o golpe de 1964 como salvação da pátria.

São fantasmas de carne e osso que pretendem manter a impunidade e o silêncio de crimes de lesa-humanidade, ao mesmo tempo em que elogiam publicamente torturadores e a tomada do estado pelos militares.

Ao renovar, ou tentar renovar no presente, as violências que foram capazes de impor à nação há 60 anos e que os mantiveram no poder por mais de duas décadas, eles tentam transformar o passado recente em presente contínuo.

E, desta maneira, atualizam uma questão central: qual o significado e quais as consequências para nossa sociedade de uma ditadura que, instaurada há 60 anos, se prolongou por mais de duas décadas e cujo legado permanece na impunidade de crimes contra a humanidade, na tentativa de silenciar e apagar as provas das violações de direitos humanos, na busca incessante de impedir que familiares de desaparecidos possam encontrar e enterrar os restos mortais de seus pais, irmãos, filhos, esposos e esposas?

Como observou o filósofo Ernst Cassirer, “a memória como simples reprodução de um evento passado ocorre também entre os animais superiores”; nos humanos, porém, a memória

“não é simplesmente uma repetição, mas antes um renascimento do passado; implica um processo criativo e construtivo do passado (…) Não basta recolher dados isolados da nossa experiência passada; devemos realmente re-colhê-las, organizá-las e sintetizá-las em um foco de pensamento. É este tipo de lembrança que nos proporciona a forma humana característica da memória, e a distingue de todos os demais fenômenos da vida animal ou orgânica” (Cassirer, 1994, p. 88).

Lembrar é recriar, e este processo de recriação é sempre social, coletivo:

“a memória individual existe, mas ela está enraizada dentro dos quadros diversos que a simultaneidade ou a contingência reaproximam momentaneamente. A rememoração pessoal situa-se na encruzilhada das malhas de solidariedades múltiplas dentro das quais estamos engajados. Nada escapa à trama sincrônica da existência social atual, e é da combinação destes diversos elementos que pode emergir esta forma que chamamos de lembrança, porque a traduzimos em uma linguagem” (Halbwachs, 1990, p. 14).

Isto quer dizer também que muito do que re-memoramos é fruto não de uma memória estritamente individual, mas, antes, da internalização individualizada de uma memória coletiva.

E mesmo quando estas memórias parecem estritamente referidas a experiências individuais, elas estão imbricadas em relações sociais e são sobredeterminadas pelo contexto e condições do tempo (presente) em que são acionadas e narradas.

“Eu me lembro” é um ato cuja forma verbal é o presente, porque é um ato que se desenrola no presente.

Da mesma forma, as narrativas fundadas na memória são sempre atos no presente; o que faz, por exemplo, com que em diferentes momentos de nossa vida nos lembremos de maneiras diferentes do mesmo evento.

E, também, o que faz com que, em diferentes momentos da trajetória de uma sociedade, eventos determinados sejam lembrados e significados de diferentes maneiras.

A experiência espanhola, acima sintetizada, mostra como, ao longo do tempo, a maneira de lembrar e a determinação do que se deveria lembrar vão sendo reconfiguradas pelo avanço das lutas políticas… embora, diferentemente do que acontece na Argentina, Chile e Uruguai, permaneçam ainda impunes os crimes cometidos pelas ditaduras e seus agentes.

E para citar uma experiência coletiva brasileira, temos o caso das narrativas presentes sobre a escravidão, que já foi, em outros momentos de nossa história, apresentada e representada como paternalismo dos senhores brancos, e não como negação da condição humana e violência brutal contra os escravizados.

Esta compreensão do que está em jogo permite entender igualmente por que, em distintas conjunturas, a luta pela construção da memória ganhe centralidade nos embates sociais, políticos e culturais.

Lembrar, resgatar e construir o passado é um ato do presente, embora se refira a eventos e tempos que não voltam mais… a não ser como fantasmas.

E assim como existe uma luta para lembrar, são muitas e poderosas as forças para instaurar o esquecimento. No Brasil, Fernando Henrique Cardoso queria enterrar a “era Vargas”.

Na França, às vésperas das eleições que o levariam à presidência, Sarkozy afirmava que os franceses estavam chamados a decidir se a herança de 1968 deveria ser perpetuada ou deveria ser liquidada de uma vez por todas.

Assim, soa descabida, e mesmo ingênua, a pretensão expressa pelo Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em entrevista recente ao jornalista Kennedy Alencar, na qual afirmou:

“Eu estou mais preocupado com o golpe de 8 de janeiro de 2023 do que com 64. Eu tinha 17 anos de idade, estava dentro da metalúrgica Independência quando aconteceu o golpe de 64. Isso já faz parte da história. Já causou o sofrimento que causou. O povo já conquistou o direito de democratizar esse país. Os generais que estão hoje no poder eram crianças naquele tempo. Alguns acho que não tinham nem nascido ainda naquele tempo. O que eu não posso é não saber tocar a história para frente, ficar remoendo sempre, remoendo sempre, ou seja, é uma parte da história do Brasil que a gente ainda não tem todas as informações, porque tem gente desaparecida ainda, porque tem gente que pode se apurar. Mas eu, sinceramente, eu não vou ficar remoendo e eu vou tentar tocar esse país pra frente.” (ênfase do autor. Entrevista do Presidente da República, Luiz Inácio Lula, 01/03/2024)

O presidente confunde a tarefa política e cultural de construção da memória coletiva de um povo com sua experiência e memória individuais.

O que parece escapar-lhe é que o golpe de 1964 e as violências do regime ditatorial foram experiência coletiva, que devem ser resgatadas e fazer parte da memória nacional.

Preocupado em não “remoer” um passado que julga remoto, mas que é bem recente, o que parece escapar-lhe é que a conspiração golpista de Bolsonaro e seus asseclas, assim como os eventos de 8 de janeiro de 2023, mostram que o passado é que está remoendo o presente, e não aqueles que querem que o país adote uma clara política de memória, verdade e justiça.

Não será possível coletivamente ao povo brasileiro, nem a ninguém individualmente, “tentar tocar esse país para frente” sem pensar seu passado – feito de extermínio de povos originários, de captura e escravização de homens e mulheres da África, de monopólio latifundista da terra, de racismo e machismo, de exploração e miséria de milhões de trabalhadores, e, não esqueçamos, de repetidas intervenções militares contra a democracia.

Como advertia Marx:

“os homens fazem a sua própria história, mas não a fazem segundo a sua livre vontade; não a fazem sob circunstâncias de sua escolha e sim sob aquelas com que se defrontam diretamente, legadas e transmitidas pelo passado” (Marx, 1852).

Um povo sem memória, que não for capaz de interpelar seu passado, não terá condições de enfrentar os desafios do presente e inventar qualquer futuro.

Somente o resgate e o enfrentamento – histórico, político, cultural e moral – do passado, somente políticas decididas de memória, verdade e justiça poderão nos livrar de que os fantasmas do passado nos espreitem e assombrem para sempre. Para que não se esqueça, para nunca mais aconteça.

*Carlos Vainer é professor emérito da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

Referências bibliográficas

Cassirer, Ernst (1994). Ensaio sobre o homem: introdução a uma filosofia da cultura humana. São Paulo; Martins Fontes.

Chesneaux, Jean (1996). Devemos fazer tábula rasa do passado, São Paulo, Ática.

Entrevista do Presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, à RedeTV!. Disponível em https://www.gov.br/planalto/pt-br/acompanhe-o-planalto/entrevistas/ entrevista-do-presidente-da-republica-luiz-inacio-lula-da-silva-a-redetv, 01/03/2024)

Halbwachs, Maurice (1990). A Memória coletiva. São Paulo, Editora Vértice/Editora Revista dos tribunais ltda.

Marx, Karl (1852). O 18 Brumário de Louis Bonaparte. Disponível em https://www.marxists.org/portugues/marx/1852/brumario/index.htm.

Junyent, Martorell Junyent. Na Espanha, Lei da Memória Democrática não baniu os fantasmas do franquismo. 18/01/2024. Disponível em https://jacobin.com.br/2024/01/na-espanha-lei-da-memoria-democratica-nao-baniu-os-fantasmas-do-franquismo/, 01/03/2024)

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Zé Maria

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Roberto Bertholdo
Advogado de Parlamentares.
Em Entrevista na TV Fórum:
https://youtu.be/Lffdz50Gaj4
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