Berenice Bento: Eu vi o terror diante dos meus olhos. Como esse povo suporta?

Tempo de leitura: 5 min

Palestina, meu amor

Em Gaza, Israel monta seu Auschwitz. Washington e Paris são cúmplices. A mídia esconde o contexto do conflito, para pintar as vítimas como “terroristas”. Mas a desumanização não passará, enquanto David (hoje palestino) resistir a Golias

Por Berenice Bento*, no Outras Palavras

A imprensa repete: “Nada justifica matar civis!” para se referir aos ataques do Hamas nos últimos dias.

Eu concordo. Mas por que Israel nunca foi condenado e exposto a um massacre midiático por seus crimes contra os civis palestinos?

A cobertura sionista tem uma estrutura que se repete: corte cirúrgico para os fatos dos últimos dias.

Negam-se a fazer qualquer reflexão, qualquer enquadramento mais amplo.

O objetivo é claro: isolar os atos de um contexto anterior que o determina. E ao fazê-lo, o caminho está aberto para a patologização e a criminalização dos palestinos. Ou seja, mediante a absolutização do caso, se preserva a estrutura política, no caso, o colonialismo israelense.

Ainda assim, não há como escapar de alguns dados: 70% da população dos dois milhões e trezentos mil habitantes de Gaza, a maior prisão do mundo, é formado por refugiados.

O que isso significa? O Estado de Israel as obrigou a deixar suas casas, as expulsou e as entregou para colonos sionistas.

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Vamos tentar ligar as pontas, tentar contar uma história.

Só existem milhões de palestinos refugiados porque há uma política continuada de colonização e genocídio por parte do Estado de Israel.

O drama do povo palestino não começou há uma semana. São 75 anos de perambulação.

A ONU já determinou o direito dos palestinos que tiveram suas casas roubadas por Israel, em 1948, a voltarem para suas casas.

Essa e tantas outras Resoluções da ONU são letras mortas para um Estado que trata o povo palestino como barata, como lixo.

Matar civis configura-se com ato terrorista, foi isso que aprendemos ao longo dessa semana.

Se Israel tem matado civis palestinos há 75 anos, não nos resta outra alternativa que uma conclusão lógica: Israel é um Estado terrorista.

Agora mesmo está cometendo um crime de guerra, nos termos das leis internacionais, ao punir coletivamente a população de Gaza.

Para o Estado de Israel, no entanto, “palestinos” e “civis” são termos que não se encontram, são como água e azeite.

Os israelenses são civis, têm vidas que merecem viver, os palestinos… bem, como disse Ayelet Shaked, ex-ministra da Justiça israelense, são “pequenas cobras”, para se referir às crianças palestinas.

Não tenho dúvida: se alguém viver um dia, apenas um dia, como um palestino, seja em Gaza ou na Cisjordânia, se colocará a mesma questão que me perseguiu naquele inverno de 2017: como esse povo suporta?

Eram 5 da manhã e a fila para atravessar o controle militar israelense era enorme. São quase 800 quilômetros de muro de concreto, com 8 metros de altura. Trabalhadores/as que se amontavam em currais de metais para serem submetidos/as a mais um ritual de humilhação; do outro lado, o escárnio nos rostos dos/as soldados/as. Um senhor, diante da minha perplexidade e do meu choro, me fez um pedido: “Conte ao mundo o que você está vendo”.

É impossível entender a erupção da fúria dos palestinos no último final de semana sem contextualizá-la em marcos mais amplos.

Nas revoltas das pessoas escravizadas aqui no Brasil, era comum o assassinato do senhor, da família e do feitor.

Os jornais dos senhores escravocratas da época, antecipando o ministro da Defesa de Israel, Yoav Gallant, afirmavam: “Estamos lutando contra animais e agindo de acordo”.

Na mesma entrevista em que fez o diagnóstico da “não-humanidade” do povo palestino, o ministro Gallant determinou o “cerco total” à Faixa de Gaza: punição coletiva.

O único direito que o oprimido tem é não ter direito. Mas a fúria chega. Será que os dominadores não aprenderam nada com seus crimes e fracassos?

O mantra sionista de que a palestina era uma terra sem povo, transformou-se em estratégia política. Assim tem sido desde 1948: expulsar, matar, torturar, apropriar-se das vidas e dos bens palestinos.

As condições objetivas para produção da fúria foram sendo gestadas diariamente por Israel.

E, como uma barragem que está cheia de rachaduras no interior, mas que não aparece na dimensão externa, rompeu. Com ela, vemos emergirem todos os senhores e senhoras escravocratas. Apenas o/a senhor/a tem direito de vida. E os animais-palestinos? Morte total.

O processo de desumanização do povo palestino repete a mesma estrutura responsável pela manutenção de seres humanos na escravidão: não são pessoas, são animais, são terroristas.

E aqui está o motivo pelo qual a imprensa não fala, não televisiona, não entrevista as mães que perdem seus filhos, suas crianças, para o terror israelense: não são seres humanos.

Não tenho dúvidas de que se fosse possível para as mães brasileiras (principalmente aquelas que perdem seus filhos executados pelo terror do Estado brasileiro), olharem nos olhos das mães palestinas, elas diriam “eu também sou palestina”.

Não entenderam nada do sentido da fúria do/a oprimido/a?

Quantas intifadas serão necessárias para que o mundo ocidental e Israel entendam que o povo palestino não irá desistir, que o pulso ainda pulsa?

Quando um palestino diz: “eu não aguento mais”, não é voz uma isolada. São gerações que falam, são ecos que chegam ao presente, é o passado tornando-se “agora”. Então, não nos peçam o impossível.

Nós, apoiadores da luta palestina pelo direito ao retorno dos/as refugiados/as às suas terras e à autodeterminação, seguiremos contando a história da mais longa ocupação militar da história moderna, seguiremos fazendo o passado falar no presente.

Me recuso a discutir o Hamas sem enquadramentos históricos mais amplos. Me recuso a fazer um recorte histórico que aponta Netaniyahu como o princípio do mal absoluto.

A solução parece simples: bastaria eleger um israelense de esquerda e a situação do povo palestino seria resolvido.

O atual governo não é antítese dos anteriores. Ele não existiria sem a Plano Dalet, sem Levi Eshkol Shkolnik, sem Golda Meir. Os assentamentos ilegais não foram uma invenção de Benjamin “Bibi” Netanyahu. Nada nele é original. Tudo é cópia e continuidade.

Ilan Pappé, um historiador israelense, concluiu: “depois do início da Operação ‘Chumbo Fundido’, em 2009, optei por chamar à política israelita ‘genocídio gradual’”.

O respeitado jornalista israelense Gideon Levy, do Haaretz, afirmou em 8 de outubro de 2023: “Pensávamos que tínhamos permissão para fazer qualquer coisa, que nunca pagaríamos um preço, tampouco seríamos castigados. Prendemos, matamos, maltratamos, roubamos, protegemos colonos massacradores, disparamos em pessoas inocentes, lhes arrancamos os olhos e destruímos seus rostos, os deportamos, confiscamos suas casas, terras, saqueamos, os sequestramos em suas camas e praticamos uma limpeza étnica…”.

A fúria desses últimos dias foi alimentada com os banhos de sangue dos massacres de Tantura, de Deir Yassim, Dawayima, de Sabra e Chatila, pelos gritos dos 800 mil palestinos expulsos de suas casas.

Teve a presença das almas dos que perderam suas vidas nos 31 massacres que acontecem em 1948, dos moradores das 511 aldeias destruídas para construir casas para os colonos sionistas.

A fúria tem o sangue que jorrou da cabeça da jornalista Shireen Abu Akleh, da morte dos 230 palestinos civis esse ano, da morte de 2.410 civis em 2014 em Gaza.

O mundo ocidental já perdoou Israel. Mas os crimes contra civis não são imperdoáveis?

A fúria, ao contrário, do que os sionistas querem, não é algo desumano. É o não-inteligível na gramática do colonialismo.

Fúria é aquilo que senti naquele checkpoint em Qalandia e que tive uma vontade imensa de, aos berros, com pulso para o alto, clamar por “Free Palestina!”. Afinal, não gritei, fiquei com medo. Mas, sigo contando o que vi. Eu vi o terror diante dos meus olhos.

* Berenice Bento é doutora em Sociologia e professora do Departamento de Sociologia da UnB

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Zé Maria

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As Mentiras Propaladas e a Verdade Inconfessada
dos Senhores da Guerra

https://youtu.be/NYCPf4CJEPU

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Cortinas de Fumaça

“Com a tese da legítima defesa, tenta-se negar o que é óbvio a qualquer aluno de direito:
Israel viola diversas normas internacionais”

Por Salem H. Nasser*

É possível ver, aqui e ali, os corpos que se acumulam e fazer as contas: mais de 750 mortos, um terço deles crianças, e mais de 3.000 feridos, metade deles mulheres e crianças.

Somos, no entanto, os que estamos fora de Gaza, bombardeados com discursos que pretendem essencialmente nos fazer esquecer que os cadáveres existem e se multiplicam.

Uma após a outra, são desfraldadas as cortinas que, se não fizerem desaparecer os mortos, nos farão vê-los com outras cores e, eventualmente, justificar o massacre.

A afirmação de que os ataques israelenses são uma resposta aos foguetes palestinos e constituem o único remédio possível é tão falsa que não deveria resistir a um instante de reflexão.

No entanto, o mantra é repetido com tamanha calma e com tamanha insistência que se transforma tanto em discurso oficial da imprensa, dos diplomatas e dos estadistas quanto em ponto de partida para qualquer leitura dos fatos.

O simples fato de que esse discurso encontra um lugar e as pessoas se permitem sustentá-lo com ares de grande seriedade é suficiente para embaçar a visão de quem porventura pensasse questionar a legalidade das ações israelenses e as de seus líderes.

Com a tese da legítima defesa, tenta-se negar o que se faz evidente a qualquer estudante de direito internacional:
que Israel viola inúmeras normas internacionais e que os líderes israelenses e seus comandantes militares estão cometendo diariamente crimes de guerra e crimes contra a humanidade e que, num mundo em que o direito fosse menos refém da política, seriam todos julgados pelo Tribunal Penal Internacional.

O direito internacional avançou muito durante o último século, ao longo do qual manteve em seu cerne a preocupação com a paz e com a segurança internacionais.

Suas normas incorporaram valores tais como a proteção dos inocentes e o combate à impunidade.

Instituições foram criadas para preservar a paz e para julgar os criminosos.

Mas esse mesmo direito traz em si os traços de sua própria fraqueza e, nestes dias, se faz pequeno, se faz ausente, junto com suas instituições.

Acompanhar a crônica dos eventos e contar os mortos e as tragédias tampouco basta para enxergar claramente.

É preciso levantar o olhar e lembrar o contexto em que se inscrevem os ataques do momento.

Israel há muito trabalha para tornar impossível um Estado palestino viável e para forçar os palestinos a renunciarem a seus direitos históricos e legítimos.

Ao longo do tempo, com o apoio incondicional dos EUA, com a aceitação complacente da Europa, adquiriu o apoio dos líderes do Fatah e de vários governos árabes.

Resta agora impor aos palestinos uma liderança e um caminho diferentes daqueles que eles elegeram, derrubar o Hamas e extinguir a resistência ao esvaziamento dos direitos palestinos.

O que está em jogo agora é mais do que a capacidade dos palestinos de lançar foguetes contra Israel.

O que se está desenrolando é um capítulo decisivo do jogo geopolítico no Oriente Médio.

Israel precisa dar uma demonstração cabal de sua força e de sua capacidade militar e pretende eliminar um dos últimos obstáculos à capitulação palestina.

Se, ao final dessa campanha, os palestinos ainda tiverem a capacidade de resistir, Israel terá sofrido uma derrota relativa.

Para enxergar, é preciso também decifrar e não se deixar hipnotizar pelo circo da diplomacia oficial.

Para entender, é preciso aceitar que discursos vazios nas cúpulas ensaiadas e abortadas, nas discussões do Conselho de Segurança e nas entrevistas são apenas isto:
discursos vazios.

As posições dos Estados e das instituições se fazem conhecer pelos atos e omissões e pelas suas consequências.

Para além da encenação, deve-se perceber que, na prática, a comunidade internacional está dando a Israel tempo para levar a cabo a missão.

Assim como o direito se apequena porque a política o remete a um canto escondido, falta à diplomacia uma coluna vertebral moral.

A verdade, inconfessada, é que a comunidade internacional há muito desistiu de encontrar uma solução justa para a questão palestina e busca agora apenas um fim para essa questão.

E, ao que parece, se esse fim vier pela via dos massacres e dos crimes, então que assim seja.

É preciso não se deixar anestesiar nem aceitar os véus como uma bem-vinda cegueira.

É preciso não se render à opressiva sensação de impotência diante dos números que contam as massas ensanguentadas e inertes.

É preciso enxergar os cadáveres e, para além deles, os seres humanos.

*Salem Nasser é Doutor em Direito pela USP; Coordenador do Centro de Direito Global e Desenvolvimento da FGV – Direito SP; e Professor de Direito Internacional da Escola de Direito da Fundação Getulio Vargas (FGV).

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https://www.instagram.com/reel/CyOkWnrxBvO
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Nelson

Impactante e impressionante por demais este texto da socióloga Berenice Bento.
Um testemunho que deveria ser lido por todos os brasileiros, pois trata-se de uma mostra a mais de como os órgãos da mídia hegemônica manipulam os fatos e forjam verdades na defesa dos interesses dos poderosos capitalistas deste mundo.

Ibsen

Sempre tenho dito da falsidade da afirmação de que nada justifica a violência contra civis. Ora, como é possível eximir civis das decisões desastrosas que seus governos eleitos caíram a outros povos. Como um povo pode se comportar racionalmente e com “humanidade” diante de tanta opressão e do massacre dos seus. Como diz uma sobrinha minha: Tema quem não tem nada a perder.

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