Ângela Carrato: Os penúltimos golpistas

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O presidente Lula no encerramento da Cúpula do G20, em Nova Déli, na Índia. Ao centro, o ministro Alexandre Padilha (Relações Institucionais) aperta as mãos dos novos ministros do governo Lula: André Fufuca (à esquerda) e Silvio Costa Filho (à direita), Foto: Ricardo Stuckert/Presidência da República

De onde podem sair os próximos?

Por Ângela Carrato*

O cerco ao clã Bolsonaro está se fechando.

O tenente-coronel Mauro Cid, ex-ajudante de ordens do ex-presidente, teve sua delação premiada homologada pelo ministro do STF, Alexandre de Moraes. Cid recebeu liberdade provisória e a situação de Bolsonaro deve se complicar ainda mais.

Já o ministro do STF, Dias Toffoli, divulgou, na última quarta-feira, uma decisão que anula os atos decorrentes do acordo de leniência da força-tarefa da operação Java Jato com a Odebrecht.

Essas provas, que na realidade não provavam nada, foram utilizadas para embasar a prisão do então ex-presidente Lula em 2018.

Além de desmascarar a farsa que foi esta prisão, determinou investigações contra procuradores e demais agentes públicos que tenham atuado e praticado atos relacionados a este acordo.

A decisão coloca o ex-procurador federal Deltan Dallagnol e o ex-juiz Sergio Moro mais próximos da prisão.

Dallagnol já teve seu mandato de deputado cassado e Moro, por abuso do poder econômico na campanha eleitoral, também deve perder a vaga no Senado.

O leitor e a leitora atentos já perceberam: mesmo não sendo dito pela mídia corporativa, o STF está sepultando o golpe de 2016, que derrubou Dilma Rousseff e abriu espaço para todos os absurdos praticados contra o país e o povo brasileiro nos últimos seis anos.

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A mídia corporativa foge do assunto como o diabo da cruz, porque ela, junto com o Parlamento e a própria Justiça, estiveram à frente deste golpe.

Desde 2010, quando o Brasil se tornou o quinto maior PIB do mundo, o país passou a ser alvo dos Estados Unidos e aliados.

O motivo era simples: o Tio Sam não aceitava e nem aceita nenhuma potência na América Latina e estávamos nos tornando uma.

Toda vez que um país ao Sul do rio Grande ensaia sua efetiva independência, o Tio Sam, com apoio da classe dominante local, encontra forma de golpeá-lo.

Se antes os golpes se davam por intervenções militares e ditaduras, nas últimas décadas estes expedientes deram lugar às guerras híbridas, aquelas em que o parlamento, a justiça e a mídia fazem às vezes dos militares com o apoio deles e obviamente a tutela da Casa Branca.

Foi assim no Brasil em 2016 e se repetiu em 2018. Bolsonaro só se elegeu, porque Lula foi preso e impedido de disputar.

Bolsonaro só permaneceu no poder, mesmo tendo cometido os crimes que cometeu, porque o então e ainda presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira, não aceitou nenhum dos mais de 100 pedidos de impeachment, devidamente fundamentados, contra ele, respaldado por setores militares. A mídia corporativa não deu um pio sobre essa centena de pedidos.

Não foi fácil a vitória de Lula em 2022 e nem tem sido fáceis esses primeiros oito meses.

Golpes desmascarados não sinalizam que estamos livres dos inimigos da democracia e das pressões do Tio Sam. Nem é sinal de que todos os golpistas serão processados e pagarão pelo que fizeram.

Há por parte de setores militares muita pressão para que Bolsonaro e uns poucos sejam os responsabilizados por tudo. Se alguém ainda tinha dúvida sobre quem usou quem, não precisa ter mais.

As mesmas forças que derrubaram Dilma e encarceraram Lula continuam atuantes na cena nacional e contam com apoio externo.

A novidade é que os militares estão completamente desmoralizados e os Estados Unidos não têm mais o poder de antes para intervir.

É perceptível, no entanto, o cuidado com que Lula atua em relação aos militares, ao Congresso Nacional e à própria mídia.

No pronunciamento por rede de rádio e TV na véspera do 7 de setembro, ele lembrou que “a independência do Brasil ainda não está terminada”, pois precisa seguir os pilares de democracia, soberania e união.

Seu maior esforço em relação aos militares tem sido o de afastá-los de novas aventuras golpistas e trazê-los para o compromisso com a democracia.

Essa foi a simbologia maior contida no desfile deste ano, que não teve nenhuma pirotecnia, ameaças ou coisas que o valham, mesmo que alguns extremistas de direita, como os governadores de São Paulo, Tarcísio de Freitas, e de Minas Gerais, Romeu Zema, se esforçassem para manter presentes o “legado” bolsonarista.

Tarcísio desfilou, em São Paulo, em cima de um tanque de guerra, transformando-se numa figura patética e ameaçadora. Contra quem o governador utilizaria um tanque de guerra?

Zema, para fugir a um possível encontro com Lula, arranjou, sem qualquer necessidade, uma viagem ao exterior tão logo o Planalto divulgou que o presidente poderia vir a Minas Gerais.

Tarcísio e Zema disputam os votos da extrema-direita, depois que Bolsonaro se tornou inelegível.

Outra simbologia contida na ação desses dois governadores é o sinal de que estão aí para o que der e vier.

Zema, no entanto, deve ter ficado frustrado ao saber que a manifestação marcada pelos bolsonaristas para o 7 de setembro em Belo Horizonte foi um retumbante fracasso.

Uns gatos pingados compareceram à Praça da Liberdade com bandeiras, camisas da seleção brasileira e carregando melancias, numa referências aos militares que consideram traidores: “verdes por fora e vermelhos por dentro”.

Horas antes do desfile em Brasília, Lula concluiu a minirreforma ministerial, entregando duas Pastas ao Centrão de Arthur Lira: a dos Esportes e dos Portos e Aeroportos. Os novos titulares são o deputado André Fufuca (PP-MA) e Sílvio Costa Filho (Republicanos-PE) respectivamente.

Lula foi duramente criticado pela esquerda na demissão de Ana Moser da Pasta dos Esportes.

Possivelmente nem ele próprio tenha gostado das mudanças, mas elas só aconteceram em função da tentativa de obter maioria para as propostas do governo no Parlamento.

Se essas mudanças vão alcançar os objetivos desejados, não se sabe.

Lideranças do PP  dizem não ter compromissos com a pauta governista, mesmo no governo.

Já o Republicanos conseguiu superar-se. Em nota à imprensa, em 7 de setembro, sua direção afirmou que não fará parte do governo e que a indicação do deputado Silvio Costa Filho “tratou-se exclusivamente, de um convite pessoal e direto do presidente Lula ao parlamentar”.

Isso, quando qualquer pessoa minimamente informada sabe que este nome, bem como o do deputado André Fufuca foram indicações do presidente da Câmara dos Deputados ao presidente Lula, após acertos com os respectivos partidos.

Atitudes assim têm nome e sobrenome: golpismo explícito.

Enquanto isso, a mídia corporativa faz a sua parte no processo de manter o governo sob pressão.

Além de não reconhecer que 2016 e 2018 foram golpes, continua abrindo espaço para figuras da Lava Jato fazerem proselitismo e tenta transformar em heróis os que se confrontam com Lula.

É o caso de Arthur Lira, tratado como uma espécie de primeiro-ministro.

É também o caso do presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, aquele que faz de tudo para travar o crescimento da economia brasileira, mantendo os juros em patamares estratosféricos, e de representantes disfarçados e abertos do Tio Sam no Brasil.

Basta lembrar como essa mídia esconde a relevância da agenda externa de Lula que esteve em Nova Déli, na Índia, onde participou da reunião do G-20, grupo das 20 maiores economias do mundo, que terá a presidência do Brasil a partir de dezembro de 2023.

Já em 15 de setembro, Lula embarca para Cuba e Estados Unidos. Em Havana, participará do encontro do G77 + China, cuja importância é obvia: reúne 136 dos países que integram a ONU, aos quais se somou mais recentemente a China e agora a União Africana (OUA).

Na sequência, irá a Nova York, onde como tradicionalmente acontece, o Brasil abrirá a sessão anual dos trabalhos da Assembleia Geral das Nações Unidas.

Lula vai reiterar sua posição pela paz, defender a pauta ambiental, a transição energética e uma campanha mundial de combate à fome. Junto com o presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, lançará um plano para criação de empregos.

Possivelmente, Lula fará ainda uma escala no México, para encontrar-se com o presidente Lopes Obrador.

As 19 viagens internacionais de Lula neste primeiro ano de governo incomodam muito ao Tio Sam, especialmente por ele estar recolocando o país no cenário internacional, como deixando claro que é do interesse do Brasil se posicionar como um ator global e não apenas como uma potência média ou regional. E um ator global interessado e atuante no que diz respeito a rever a injusta ordem internacional.

Os prejuízos que os golpes causaram ao Brasil foram enormes. Em 1964, João Goulart foi derrubado, porque não aceitava a tutela das classes dominantes e do Tio Sam.

Deu no que deu: 21 anos de ditadura e autoritarismo.

Em 2016, Dilma foi derrubada, porque os Estados Unidos queriam se apoderar do pré-sal recém-descoberto. Regredimos 60 anos em seis, com a conivência e participação das instituições, inclusive da mídia.

O Brasil caiu da quinta posição no mundo para a 13ª e a mídia não viu nada de errado.

É preciso tirar esse atraso e é por isso que Lula tem pressa. É por isso, também, que os golpistas tentam, de todas as formas, entravar as suas ações.

Apesar de Lira, de Campos Neto, dos militares e da mídia, o Brasil voltou a crescer. Está superando todas as previsões feitas interna e externamente e o PIB deve crescer 3% em 2023, alta creditada à indústria.

É a reindustrialização, tão combatida pelos ruralistas e pela Globo (“Agro é pop. Agro está na Globo”) começando a tomar forma.

Como a mídia não explica nada disso ao público, setores bem intencionados e outros nem tanto dentro até da esquerda, acabam fazendo coro com os que criticam Lula.

É o caso da campanha dos “identitários” para que Lula indique uma mulher ou um negro para a vaga no STF e em demais postos de relevância.

Acredite se quiser, mas essa campanha foi parar em outdoors em Nova Déli, no trajeto de Lula do aeroporto ao hotel.

Como Lula tem um histórico de empoderamento dos setores populares – mulheres, negros, índios – sendo ele mesmo uma figura do povo, o objetivo é desgastá-lo junto à sua base.

Feito isso, a etapa seguinte seria dar início a “manifestações populares” como as de 2013, que começaram questionando o aumento de 20 centavos no preço das passagens do transporte coletivo em São Paulo e, “do nada”, se voltaram contra o governo de Dilma Rousseff.

Claro que esse “do nada” não é bem assim. Aquelas manifestações foram, em grande medida, apoiadas pela classe dominante e financiadas por ONGs estadunidenses.

O objetivo era depor uma presidente que incomodava à Casa Branca. Alguém ainda acredita na admiração que Obama, um presidente negro, dizia ter por Lula?

Alguém se lembra que o vice de Obama era Joe Biden?

Alguém ainda acredita que ONGs e think tanks pensam apenas no bem da humanidade?

Os tempos são outros. O mundo passa por uma profunda transformação. A atual ordem global, capitaneada pelo Tio Sam, não se sustenta mais.

Mesmo assim, o golpismo no Brasil mantém enormes conexões com os interesses do Tio Sam e está longe de ter sido totalmente derrotado.

As pressões sobre o governo Lula tendem a aumentar na medida em que avançarem pautas como a da taxação de fortunas nos paraísos fiscais (off shores) e medidas envolvendo desenvolvimento e parcerias internacionais ganharem corpo.

Os penúltimos golpistas estão próximos da cadeia e da desmoralização total, mas nada de ilusões.

Os próximos golpistas podem surgir de onde sempre saíram, mas também de onde menos se espera, a exemplo de uma suposta esquerda oportunista e identitária, para a qual basta ser mulher, negro ou índio para ser democrata.

Se fosse assim, o Brasil não teria sofrido os horrores que sofreu nas mãos de mulheres como Janaína Pascoal, Rosa Weber e Cármen Lúcia. Janaína vendeu para os tucanos por R$ 45 mil parecer criminalizando, sem provas, Dilma Rousseff.

As ministra do STF, Rosa Weber e Cármen Lúcia, foram votos fundamentais contra o habeas corpus para o então ex-presidente Lula.

Se a pauta identitária, por si só, significasse alguma coisa, o ex-presidente do STF, o negro Joaquim Barbosa, não deveria ter tido o lamentável papel que assumiu no episódio do mentiroso Mensalão Tucano.

Barbosa condenou os petistas, livrou a pele dos tucanos e, num passe de mágica, saiu de cena alegando problemas de saúde. Curiosamente, ele nunca disse nada sobre a mansão que comprou, na mesma época, em Miami. E a mídia também não quis saber, como não quis saber nada sobre as falcatruas de Bolsonaro ao longo de quatro anos.

Só em “presentes” ele se apropriou indevidamente de 111 objetos de elevado valor comercial, que deveriam ter sido incorporados ao Patrimônio da União.

Alguém se deu conta de que o jornalismo investigativo simplesmente inexistiu durante os seis anos do golpe?

Alguém pode objetar que a TV Globo agora é “chapa branca”.

Ledo engano.

Como em toda grande empresa de mídia, no Grupo Globo uns veículos batem e outros assopram, para melhor alcançar o que interessa à família Marinho.

São dois esses interesses no momento: garantir a aprovação do projeto 2370, que torna obrigatório a remuneração da mídia tradicional pelas big techs, e uma mudança na legislação ampliando a participação do capital estrangeiro na mídia brasileira. No momento, esta participação está fixada em 30%.

Essas mudanças possibilitariam o aumento de poder da velha mídia, num país onde a democratização da comunicação não saiu do papel, mesmo presente na Constituição de 1988. Além disso, permitiria à família Marinho avançar em possíveis negociações para a venda da TV Globo.

Por tudo isso, os golpistas desmascarados estão longe de serem os únicos e muito menos os últimos.

*Ângela Carrato é jornalista e professora do Departamento de Comunicação Social da UFMG

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Respeito profundamente sua análise. Mas, discordo. Lula e Dilma erraram profundamente em suas escolhas para o STF. Faltou-lhes, até o momento, visão histórica do significado de construir uma corte suprema contramajoritária aos donos de poder do país. Sua argumentação peca nos nomes citados: nem Joaquim nem Cármen, nem muito menos Rosa Weber atuaram, em qualquer momento de sua história pregressa como juristas públicos na defesa de quaisquer teses próximas ao campo progressista ou identitário. O único dos atuais STFs que assim procedeu foi Barroso. Na verdade, Lula/Dilma procuram desde sempre um “gilmar mendes” para chamar de seu e nunca encontraram ou, se encontraram, não tiveram a coragem de indicar.

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