Ângela Carrato: China rouba a cena e o tio Sam dá a volta por baixo
Tempo de leitura: 10 minPor Ângela Carrato*
Um novo modelo de inteligência artificial (IA) desenvolvido pela startup chinesa DeepSeek não só relegou as maldades de Donald Trump a segundo plano na mídia internacional, como impôs perdas de cerca de US$ 1 trilhão em valor de mercado às empresas de tecnologia dos Estados Unidos e da Europa.
As perdas aconteceram em um só dia, na segunda-feira (27) e se deram diante da disparada de downloads do assistente de IA da DeepSeek, que superou seus rivais ocidentais. O aplicativo, gratuito e de código aberto, rapidamente se transformou no melhor avaliado diante de todos os concorrentes.
O rombo por ele provocado foi calculado pela agência Bloomberg em US$ 1 trilhão. Em hipótese alguma, esta agência pode ser considerada simpática à China ou a empresas daquele país.
Não faltou quem comparasse o DeepSeek a um novo Sputnik, o primeiro satélite artificial produzido e colocado em órbita da terra em 1957, pela então União Soviética.
A comparação procede em parte, pois se o lançamento do Sputnik acirrou a disputa pela hegemonia mundial entre Estados Unidos e URSS, com o surgimento de dois grandes blocos de apoio a cada um deles, o DeepSeek apenas aprofunda o nítido declínio dos Estados Unidos como principal potência mundial.
Mentiroso e truculento, Trump não deve ter gostado nem um pouco da novidade, que veio a público quando completava uma semana de mandato e esperava que todas as atenções estivessem voltadas para as suas ações.
Além de dar início a uma verdadeira caçada a imigrantes ilegais e deportá-los com requintes de humilhação, como fez com brasileiros, anunciou e começou a impor pesadas taxas à importação de produtos de vários países, a exemplo do México e do Canadá.
Dois dias depois, foi a vez da Alibaba, gigante chinesa de tecnologia, lançar uma nova versão de seu modelo de inteligência artificial, o Qwen 2.5, afirmando que ele supera o DeepSeek.
A empresa aguardou o primeiro dia do Ano Novo Chinês, comemorado em 29 de janeiro, para fazer o anúncio e fornecer suporte de computação em nuvem para a transmissão ao vivo da abertura de gala do tradicional Festival da Primavera, programa anual que mistura música, dança, ópera, artes marciais e comédia, assistido por bilhões de pessoas.
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Esse novo anúncio, somado à informação de que está em andamento na China um programa que, em cinco anos, deverá dotar todo o planeta de internet de alta velocidade e acesso gratuito, simplesmente levou o Vale do Silício, na Califórnia, onde as big techs estadunidenses estão localizadas, ao desespero.
Desespero ampliado uma vez que o sucesso do DeepSeek e o anúncio da Alibaba desencadearam uma corrida não no Ocidente, mas entre as próprias empresas chinesas, para atualizar e buscar mais funcionalidades em seus modelos de inteligência artificial.
A ByteDance, dona do TikTok, por exemplo, anunciou uma atualização em seu modelo de IA, frisando que ele superou o modelo da OpenAI, apoiado pela Microsoft.
Até o momento, os normalmente tão falantes donos das big techs estadunidenses, como Elon Musk e Mark Zuckerberg, continuam mudos.
Possivelmente estejam com dificuldades para explicar os elevadíssimos gastos de suas empresas de IA em face do custo considerado baixíssimo do DeepSeek.
O fundador da empresa, Liang Wenfeng (40 anos), um entusiasta da tecnologia, que se formou na prestigiosa Universidade de Zhejiang, na cidade de Hangzhou, afirma ter investido apenas US$ 5,6 milhões para desenvolver o seu modelo. Uma quantia irrisória comparada aos bilhões gastos por empresas estadunidenses.
Por razões óbvias, Trump evitou comentar o assunto, concentrando-se no anúncio do seu pacote de maldades, que já provoca pesadas reações junto aos mais diversos setores da sociedade estadunidense.
Se a deportação em massa de imigrantes tem o apoio da maioria da população, convencida por sua enganosa propaganda de que eles são os responsáveis pelos problemas econômicos do país, o mesmo não acontece com medidas como o fim da cidadania estadunidense para filhos de imigrantes, a perseguição aos apoiadores da cultura woke e ao segmento LGBTQIA+.
Possivelmente, Trump, do alto de sua arrogância, não tenha sequer avaliado o tamanho do problema em que se meteu.
Até o momento, 22 estados já anunciaram que não participam dos esforços determinados pela Casa Branca para localizar, prender e deportar imigrantes ilegais, uma caçada sem qualquer sentido.
Os imigrantes ilegais estão longe de provocar qualquer problema para a economia e a vida dos estadunidenses e tudo não passa de bravata de Trump para desviar atenção dos reais motivos para a decadência econômica e social em seu país.
Já setores das Forças Armadas não aceitam a proibição de que gays se alistem em suas fileiras e o segmento LGBTQIA+ saiu às ruas em Nova Iorque e outras metrópoles, para denunciar as semelhanças da ação de Trump com as adotadas por Hitler e pelos nazistas, cujas consequências são conhecidas.
A chamada cultura woke (do verto to woke, despertar), sinônimo de políticas que defendem a igualdade racial e social, o feminismo e as minorias, está profundamente enraizada nos Estados Unidos desde as lutas pelos direitos civis dos anos 1960. Lutas que tiveram como expoente o pastor batista e ativista político Martin Luther King Jr, assassinado em 1968, e nada indica que Trump conseguirá destruí-las.
A situação assumiu contornos mais graves ainda, quando Trump, sem qualquer prova, responsabilizou a “política de diversidade dos governos Obama e Biden” e os gays, pela colisão entre um helicóptero militar e um avião de passageiros em Washington, na quarta-feira (29) a poucos quilômetros da Casa Branca, deixando salto de 67 vítimas fatais.
O acidente chocou duplamente o país: ter acontecido no espaço aéreo supostamente mais monitorado do mundo e pela leviana acusação.
Trump que já tinha conseguido colocar contra si a maioria dos funcionários públicos, ao exigir que cumprissem ordens consideradas ilegais e denunciassem colegas que se recusassem a executá-las, acabou por comprar uma guerra, agora com os controladores de voos.
A categoria, que desempenha papel fundamental para a segurança aérea e se ressente do excesso de trabalho e baixos salários, assumiu a linha de frente no combate ao presidente.
Se em menos de duas semanas na Casa Branca, Trump desencadeou tamanhas batalhas internas, sua atuação no plano externo é ainda pior.
Exigiu dos aliados europeus da OTAN o aumento da contribuição de 1% para 5% do PIB, a fim de que banquem a segurança contra supostas agressões da Rússia. O problema é que a Europa está mergulhada em uma tremenda crise econômica e não há dinheiro para arcar com a exigência.
Alemanha e França, principais economias da União Europeia, estão à beira do colapso. A renúncia do primeiro-ministro alemão, Olaf Scholz, e a campanha eleitoral em processo naquele país dão bem a ideia da grave crise que se desenrola por lá.
Tecnicamente em recessão, a Alemanha assiste ao declínio de suas empresas. A antes poderosa Volkswagen, que já figurou entre as maiores fabricantes de carros do mundo, está em vias de demitir 30 mil operários em sua matriz e só escapará do fim se for socorrida pelo governo.
Tudo porque Scholz aceitou a pressão de Joe Biden, que exigiu que a Alemanha deixasse de comprar petróleo e gás da Rússia e passasse a comprá-lo cinco vezes mais caro dos Estados Unidos. Pressão que Trump está mantendo e ampliando.
Situação semelhante se repete na França, onde o governo de Emmanuelle Macron mostra-se cada dia mais instável e enfrenta crescente impopularidade.
Até no Reino Unido, a desilusão com o Tio Sam não para de crescer. Quatro anos depois de sair da União Europeia, os ingleses se mostram arrependidos. Mais de 63% deles consideram que apoiar a saída foi “um tremendo erro”, cuja consequência tem sido inflação alta e falta de investimentos.
Os ingleses caíram na mentira contada à época por Trump e seus assessores de que os seus problemas econômicos se deviam à presença maciça de imigrantes.
A mesma mentira que Trump repete agora em seu país.
Já o primeiro-ministro espanhol, Pedro Sánchez, imitou o slogan de Trump (“Make America Great Again”) e sugeriu que é hora de “retomar o controle” das redes sociais. Em sua fala durante o Fórum Econômico Mundial, em Davos, na semana passada, ele criticou as big techs estadunidenses e afirmou que elas “envenenam a sociedade”.
Já os governos do Canadá e do México prometem retaliar na mesma proporção os produtos estadunidenses, se Trump cumprir a promessa de taxá-los em 25%.
Especialistas alertaram a Casa Branca que a taxação pode sair pela culatra, pois os Estados Unidos importam do Canadá 80% da madeira e do níquel que consomem.
Quanto ao México, parte significativa da produção das empresas estadunidenses concentra-se lá, com a taxação atingindo diretamente os eleitores de Trump.
Reações igualmente negativas aconteceram em países da América do Sul, a exemplo da Colômbia e do Brasil. Cada um ao seu estilo deixou claro que se Trump investir contra a sua soberania e os seus produtos, haverá reação.
Enfático, o presidente colombiano Gustavo Petro, impediu que dois aviões estadunidenses entrassem no espaço aéreo de seu país, para desembarcar imigrantes ilegais. Ao mesmo tempo, publicou em suas redes sociais uma longa carta aberta a Trump denunciando o imperialismo do Tio Sam sobre a América Latina, citando como exemplo a própria história da Colômbia.
Alvo de guerra fomentada pelos Estados Unidos em 1904, a Colômbia perdeu o istmo que deu origem ao Panamá. O mesmo país que agora Trump ameaça tomar-lhe, sem qualquer motivo, o canal que liga os oceanos Atlântico e Pacífico, por onde a cada ano atravessam mais de 14 mil navios de diversas nacionalidades.
A dura reação de Petro levou a diplomacia estadunidense e a do seu país a entrarem em ação. A crise foi contornada. Trump voltou atrás e Petro enviou aeronaves para buscar os deportados.
Trump também recuou da decisão de taxar em 25% produtos colombianos como o café. Possivelmente tenha sido alertado por especialistas que a medida seria inócua e criaria problemas para empresas e alta nos preços para os consumidores estadunidenses.
A crise envolvendo os imigrantes fez a presidente de Honduras, Xiomara Castro, convocar uma reunião de emergência da Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (Celac), que acabou não acontecendo, dado ao recuo de Trump e de Petro.
Mesmo o Itamaraty tendo confirmado a presença brasileira nesta reunião, o presidente Lula, em relação à crise provocada pela deportação de imigrantes ilegais, preferiu adotar uma postura diferente de seu colega colombiano.
Qualquer país tem direito a deportar imigrantes ilegais. Mas nenhum pode submetê-los à humilhações como tem feito Trump. Daí a decisão do governo brasileiro de não admitir que os deportados sejam obrigados a usarem algemas ou estarem acorrentados em solo nacional, como aconteceu com o pouso de emergência do avião fretado pelos Estados Unidos em Manaus.
Mais ainda: o Brasil vai acionar as cortes e tratados internacionais, a fim de denunciar os abusos cometidos pelos Estados Unidos.
Em entrevista coletiva na última quinta-feira, Lula, quando perguntado sobre a possibilidade de Trump aumentar as taxas sobre produtos brasileiros vendidos nos Estados Unidos, afirmou que haverá “reciprocidade”, acrescentando que “quero respeitar os Estados Unidos e quero que Trump respeite o Brasil. É só isso.”
Ele também criticou as decisões de Trump de deixar de participar da organização Mundial de Saúde e de acordos internacionais sobre o clima, definindo-os como “uma regressão à civilização humana”.
Três dias antes, Lula e o presidente da Federação Rússia, Vladimir Putin, conversaram longamente por telefone sobre temas da agenda global e bilateral, com Lula expressando sua preocupação com o cenário internacional e reafirmando o compromisso do Brasil com a paz.
Como se sabe, Brasil e China propuseram, há quase um ano, solução para o fim do conflito na Ucrânia.
Solução que os Estados Unidos insistem em desconhecer, mesmo diante do fracasso do anúncio de Trump de que acabaria com o conflito tão logo tomasse posse, chegando a mencionar que iria conversar com Putin.
O BRICS, cuja presidência em 2025 cabe ao Brasil, foi outro tema importante na conversa entre Lula e Putin.
Como Trump, desde o mandato anterior, havia definido a China como principal inimigo e agora estende a designação a todos os membros do bloco, o assunto obviamente foi alvo de conversa entre os dois presidentes.
Dito de outra forma, toda atenção aos passos de Trump, às suas ações abertas e também aquelas por debaixo do pano, que sempre caracterizaram os ocupantes da Casa Branca, precisam estar no radar brasileiro e internacional.
Possivelmente a Casa Branca e os militares estadunidenses ainda não tenham se refeito do anúncio russo, em novembro do ano passado, sobre o míssil supersônico Oreshnik, considerado o mais veloz e letal em atividade, desbancando similares ocidentais.
Eles sabem que Putin não está brincando e, menos ainda, blefando.
Vale a pena recordar que Putin chegou a avisar a então presidente Dilma Rousseff que o governo Obama, além de espioná-la, preparava golpe contra ela. Pelo que se sabe, Dilma não acreditou. Deu no que deu.
Lula, que passou 580 dias preso, sem culpa, por interferência direta dos Estados Unidos na Justiça e na política brasileira, sabe que não pode descuidar, especialmente quando a maioria dos golpes atualmente fomentados pelo Tio Sam são híbridos.
Aqueles que começam com manifestações sobre um assunto qualquer, como os contrários ao aumento de R$ 0,20 nas passagens do transporte coletivo em São Paulo, ganham apoio de parlamentares de extrema-direita, do mercado financeiro, e são insuflados pela mídia corporativa e por redes sociais a serviço do Tio Sam.
Foi assim no passado recente e continua sendo assim nos dias atuais. Prova disso é a tentativa desta mídia de minimizar a truculência de Trump e rapidamente desaparecer com as notícias positivas sobre a China, como a de ter assumido a dianteira em aspecto tão estratégico como o da inteligência artificial.
Dito de outra forma, essa mídia, que funciona como uma espécie de agente subimperialista a serviço dos interesses da Casa Branca acredita que ainda pode dar as cartas e tapar o sol com a peneira.
Todos os ingredientes do golpe contra Dilma continuam presentes, mas o cenário é outro. A mídia corporativa brasileira está cada dia mais desmoralizada.
As redes sociais, na realidade grandes empresas estadunidenses, ao aderirem em massa à truculência de Trump, deixam claro a quem servem.
A notícia de que o democrata Joe Biden tinha plano para assassinar Putin quase não repercutiu por aqui, graças a essa mídia, que, igualmente, não deu qualquer relevância aos planos dos golpistas de 8 de janeiro de 2023 para matarem Lula, o vice Geraldo Alckmin e o ministro do STF, Alexandre de Moraes.
Nos Estados Unidos, a denúncia sobre o plano para assassinar Putin gerou um tremendo reboliço, com o governo russo pedindo explicações ao Capitólio e enviando comunicado sobre o assunto à ONU. O comunicado pode ser acessado no site das Nações Unidas.
Se Trump está comprometendo os republicanos, a situação dos democratas, depois desta denúncia, não é muito diferente.
A grande novidade no cenário internacional é que sem qualquer gesto de violência ou agressão, a China mostrou para Trump que não será fácil tornar os Estados Unidos grandes de novo. Pelo menos grandes à custa da violência e da exploração de outros países e povos.
O slogan, que pretendia sintetizar a volta por cima do Tio Sam, tem tudo para se transformar em epitáfio.
*Ângela Carrato é jornalista. Professora do Departamento de Comunicação Social da UFMG. Membro do Conselho Deliberativo da ABI.
*Este texto não representa obrigatoriamente a opinião do Viomundo.
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