Nicolelis avalia atuação, impactos e principais descobertas do Comitê Científico do Nordeste
Tempo de leitura: 28 minDa Redação
Em 30 de março de 2020, o Consórcio Nordeste criou o Comitê Científico de Combate ao Coronavírus.
Os nove governadores da região tinham como objetivo obter recomendações e diretrizes científicas para combater a Covid-19.
Liderado pelo neurocientista Miguel Nicolelis e pelo físico e ex-ministro Sérgio Rezende, o comitê rapidamente se organizou em nove subcomitês, cada um dedicado a uma área crítica para o enfrentamento da pandemia.
De lá para cá, o comitê:
– criou uma plataforma de colaboração voluntária virtual (Projeto Mandacaru), que contou com a adesão de mais de 2 mil voluntários, atuando nos diversos campos científicos, nas áreas de comunicação, artes gráficas e digital e direitos humanos.
— Publicou 11 boletins científicos recomendando desde o uso de máscaras para toda a população e defesa da fila única para acesso a leitos de UTI à disseminação maciça de um aplicativo telefônico para rastreamento georreferenciado de novos casos de Covid-19, criação de brigadas emergenciais de saúde e uso de lockdowns nas principais capitais nordestinas.
O artigo abaixo, na realidade um ensaio, aborda a atuação do Comitê Científico na região Nordeste, os principais resultados e achados científicos obtidos durante o seu funcionamento.
É um dos capítulos de um livro sobre a pandemia que o Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass) está publicando.
O professor Nicolelis dedica-o à memória de Fábio Tadeu de Alcântara Guimarães, um dos idealizadores do aplicativo Monitora Covid-19.
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Fábio foi vítima da Covid-19, enquanto tentava ajudar a salvar vidas na linha de frente do combate à pandemia.
Nicolelis agradece:
— Aos nove governadores pela decisão histórica de criar o Comitê Científico de Combate ao Coronavírus.
— Ao ex-ministro da Ciência e Tecnologia, Sergio Rezende, pela colaboração inestimável e apoio incondicional como co-coordenador do comitê.
–a Carlos Gabas, Glauber Piva, Flávia Gianini, Hêider Pinto.
— a todos os membros do Comitê Científico, em particular ao valoroso grupo de modelagem matemática do subcomitê 9.
— Aos voluntários do Projeto Mandacaru pelo trabalho incansável e de altíssima qualidade profissional durante os sete meses de operação do Comitê Científico de Combate ao Coronavírus do Consórcio Nordeste.
— A Neiva Paraschiva e Conceição Lemes pelos valiosos comentários e sugestões oferecidas para este manuscrito.
Fábio Tadeu de Alcântara Guimarães, um dos idealizadores do aplicativo Monitora Covid-19
O COMITÊ CIENTÍFICO DE COMBATE AO CORONAVÍRUS (C4) DO CONSÓRCIO NORDESTE E A PANDEMIA DE COVID-19 NO BRASIL
Por Miguel A. L. Nicolelis*
1. INTRODUÇÃO
Na noite de 11 de outubro de 2020, o Ministério da Saúde do Brasil confirmou que mais de 150 mil brasileiros haviam perdido suas vidas em decorrência dos mais de 5 milhões de casos de COVID-19, oficialmente contabilizados em todo país desde o dia 26 de fevereiro de 2020, quando o primeiro caso de um paciente infectado pelo SARS-CoV-2 foi detectado na cidade de São Paulo.
Essa cifra de óbitos define a maior perda de vidas relacionadas com um único evento em toda a história do país, ilustrando o completo fracasso do governo federal em combater com eficiência o espalhamento da maior pandemia a assolar o mundo em um século.
Nessa mesma data, a região Nordeste atingiu 1.385.450 de casos de COVID-19 e 40.277 óbitos, colocando-se em segundo lugar entre as regiões brasileiras, abaixo da região Sudeste (1.783.204 casos e 68.341 óbitos), tanto em número de casos como de óbitos.
Ainda assim, o número de casos e óbitos poderia ter sido ainda maior, caso a região não tivesse optado por definir uma estratégica comum de combate ao novo coronavírus.
Parte dessa estratégica unificada consistiu na criação pelo Consórcio Nordeste, um mecanismo de cooperação político-econômico estabelecido em 29 de julho de 2019 pelos nove governadores da região, de um Comitê Científico de Combate ao Coronavírus (C4) no dia 30 de março de 2020.
Formado por representantes de todos os estados nordestinos indicados pelos respectivos governadores, bem como especialistas de diversas áreas médicas e científicas, o C4 recebeu a missão de oferecer sugestões e recomendações sanitárias e científicas que pudessem auxiliar os gestores públicos nordestinos na tomada de decisão, no que tange às medidas mais apropriadas para bloquear o espalhamento de casos de COVID-19 pela região, bem como reduzir o número de fatalidades induzidas pelo SARS-CoV-2.
Este ensaio enfoca a descrição detalhada das principais recomendações feitas pelo C4 durante os seus primeiros seis meses de operação, entre o início de abril e a metade de outubro de 2020, bem como no impacto que a implementação de algumas dessas sugestões teve no manejo da pandemia de COVID-19 no Nordeste.
2. AS PRINCIPAIS RECOMENDAÇÕES EMERGENCIAIS DO C4
Desde a sua primeira reunião, o C4 assumiu a postura de trabalhar como uma verdadeira força-tarefa científica emergencial, cujo principal objetivo seria identificar, discutir e compilar as melhores práticas sanitárias e científicas, implementadas em todo o mundo no combate à COVID-19, que serviriam como base para uma série de recomendações essenciais feitas aos governadores do Nordeste, bem como comunicadas à toda população nordestina e brasileira, por meio de boletins publicados regularmente e de um site próprio, criado imediatamente depois da posse do C4 [1].
Já no seu primeiro Boletim [2], publicado em 1º de abril de 2020, o C4 se posicionou fortemente em favor das medidas de isolamento social instituídas pelos governos estaduais e municipais da região Nordeste, bem como a necessidade de aumentar a testagem de passageiros em aeroportos e rodoviárias para diminuir a propagação do novo coronavírus em todo o território brasileiro.
O C4 também manifestou sua posição em defesa da criação de ações governamentais de “apoio material e financeiro às famílias mais necessitadas, moradores de rua e pequenos comerciantes”, bem como operacionalizar, em caráter emergencial, a ampliação de redes de colaborações científicas interestaduais no Nordeste, por meio de uma articulação das fundações de amparo à pesquisa dos estados nordestinos.
Para fornecer subsídios ao C4 nas áreas consideradas mais críticas do manejo da COVID-19, no seu Boletim 2, publicado em 3 de abril de 2020 [2], o C4 anunciou a criação de nove subcomitês temáticos.
Formados por membros do C4, mas também por especialistas recrutados em todo o Brasil, estes subcomitês salientaram as seguintes áreas:
(1) sala de situação virtual para compilação de dados do Nordeste e todo o Brasil, incluindo dados do aplicativo telefônico Monitora COVID-19;
(2) protocolos de assistência médica e ambulatorial, estudos clínicos e desenvolvimento de drogas;
(3) equipamentos hospitalares, ventiladores e alternativas, equipamento de proteção individual, recursos hospitalares e de Unida- des de Terapia Intensiva (UTI);
(4) interação entre indústria, startups, laboratórios e unidades de pesquisa locais;
(5) fomento de redes de pesquisa, desenvolvimento tecnológico, fontes de recursos e novas linhas de financiamento;
(6) rede de contatos nacionais e internacionais;
(7) virologia, vacinas e diagnóstico laboratorial;
(8) políticas públicas de intervenção econômico-sociais;
(9) epidemiologia, modelos matemáticos e medidas de enfrentamento.
Imediatamente após o estabelecimento dos seus nove subcomitês, a coordenação do C4 sentiu a necessidade de ampliar tanto a massa crítica científica quanto o escopo temático do comitê.
Como nenhum recurso orçamentário foi destinado ao C4 pelo Consórcio Nordeste, optou-se pela construção de um programa de voluntariado.
Para tanto, foi realizado um chamado pelas redes sociais para que voluntários de todas as áreas relacionadas aos subcomitês do C4, bem como profissionais das áreas de comunicação, incluindo manejo de redes sociais, artistas gráficos e de mídias digitais, profissionais de ciências humanas, e pessoal técnico e administrativo se unissem ao trabalho do C4, via plataforma de colaboração virtual que recebeu o nome de Projeto Mandacaru [3].
Ao longo dos próximos dias e semanas seguintes, mais de 2 mil profissionais de todo o Brasil voluntariaram-se para trabalhar no C4, por intermédio do Projeto Mandacaru.
Em questão de dias, graças a esses voluntários, o C4 passou a ter um clipping científico e de mídia internacional, que contou inclusive com tradutores voluntários em várias línguas comissionados para traduzir artigos científicos e da mídia internacional para publicação no site oficial do C4.
Ao mesmo tempo que a plataforma virtual do Projeto Mandacaru passava a operar, o C4 estabeleceu como prioridade a criação de uma sala de situação virtual, em parceria com a empresa Inteligência de Negócios (SP), liderada pelos especialistas de gerenciamento de dados Rogério Ferreira e Hélio Okabe, para monitorar continuamente a evolução de casos e óbitos em todo o Nordeste, bem como nas outras regiões do Brasil.
Nesse momento, o C4 foi informado que a Secretaria de Ciência e Tecnologia do governo da Bahia estava em fase final de testes de um aplicativo (Monitora COVID-19) para telefones celulares que permitiria que pessoas informassem, por meio de um questionário padrão, a presença de sintomas e sinais (febre, tosse, dor de cabeça, dor no corpo, fadiga, dificuldade de respiração) a uma central de processamento de dados.
Depois de fornecer esses dados clínicos georreferenciados, o paciente seria classificado como tendo risco nulo, baixo, significativo ou alto de infeção pelo SARS-CoV-2.
Pacientes classificados como sendo de alto risco receberiam então uma consulta telefônica, via sistema de telemedicina criado pela Fundação Estatal da Saúde Família (Fesf) do governo baiano, que seria realizada por um médico da família ou outro profissional da saúde, visando identificar a real situação clínica do paciente e oferecer o melhor encaminhamento possível (isolamento e tratamento em casa, ou encaminhamento para a mais próxima unidade de saúde ou hospital).
Depois de analisar o funcionamento do Monitora COVID-19, o C4 recomendou a sua adoção imediata por todos os nove estados nordestinos, bem como a criação de um protocolo que permitiria que a recém-criada sala de situação virtual do comitê pudesse receber diariamente atualizações da localização dos novos casos de COVID-19 em todo o Nordeste, obtidas pelo fato de que o Monitora COVID-19 utiliza georreferenciamento dos seus usuários.
Dessa forma, a sala de situação do C4 adquiriu a possibilidade de monitorar diariamente o surgimento de novos focos de COVID-19 em todos os municípios nordestinos, com uma resolução espacial de aproximadamente 200 metros, possibilitando às secretarias de saúde criarem relatórios diários para os seus estados.
Ao todo, cinco estados nordestinos (Bahia, Sergipe, Paraíba, Piauí e Maranhão) seguiram a recomendação do C4 e adotaram o Monitora COVID-19 como o seu aplicativo oficial no combate ao novo coronavírus e implementaram seus sistemas de telemedicina.
Depois de algumas semanas de intensa divulgação do aplicativo nas redes sociais e na mídia tradicional, o C4 decidiu abrir a parte referente à coleta de dados para todo o Brasil.
A resposta em nível nacional foi imediata, levando o Monitora COVID-19 a se transformar no aplicativo telefônico de combate ao novo coronavírus mais utilizado e o mais bem avaliado em todo o país.
Até o dia 30 de setembro de 2020, um total de 101.772 usuários haviam se cadastrado e respondido integralmente ao questionário do Monitora COVID-19.
Esse contingente de pessoas, espalhadas por todo o país, foi responsável por um total de 255.651 mil downloads das diferentes versões do aplicativo.
No cômputo geral, um total de 159.089 consultas de telemedicina foram executadas nos cinco estados nordestinos que adotaram o Monitora COVID-19, beneficiando os usuários classificados como de alto risco de infeção pelo SARS-CoV-2 com um atendimento médico emergencial, poucas horas depois da realização do seu cadastro inicial.
Começando com a sua primeira Nota Técnica, publicada em 8 de abril de 2020, que recomendava a adoção obrigatória de máscaras de confecção caseira para toda a popu- lação, o C4 passou a emitir uma série de recomendações de caráter emergencial a todos os governadores do Nordeste.
Por exemplo, desde o seu Boletim 3 (9 de abril de 2020) [2], o C4 posicionou-se contra o uso de hidroxicloroquina, da cloroquina e de qualquer medicamento cuja eficácia clínica no tratamento da COVID-19 não estivesse plenamente comprovada por estudos clínicos apropriados.
Essa recomendação foi repetida em praticamente todos os boletins subsequentes.
Em 16 de abril de 2020, o C4 divulgou o seu Boletim 4, no qual, pela primeira vez, foi proposta a criação imediata de Brigadas Emergenciais de Saúde em todo o Nordeste [2].
O C4 definiu essas Brigadas como pequenos grupos de profissionais de saúde com a missão de realizar visitas domiciliares em busca de casos de COVID-19.
A proposta visava aumentar emergencialmente o número de médicos e profissionais de saúde para atender à população nos lugares onde o novo coronavírus nos ataca: nas casas das pessoas, nos lugares de trabalho, nas grandes periferias das grandes cidades e nos municípios do interior nordestino.
A proposta sugeria que todos os estados do Nordeste criassem as suas Brigadas Emergenciais de Saúde e provessem essas unidades com os relatórios analíticos produzidos pela sala da situação do C4, bem como um grande aporte de testes rápidos para diagnóstico de COVID-19.
Por dispor dos dados obtidos pelo aplicativo Monitora COVID-19, a sala de situação virtual adquiriu a capacidade de identificar potenciais novos focos de infecção pelo SARS-CoV-2, indicando os municípios e bairros que deveriam ser visitados em caráter emergencial a cada dia pelas Brigadas Emergenciais de Saúde de cada estado (Figura 1).
Figura 1. Exemplo de um dos mapas georreferenciados produzidos pela sala de situação virtual do C4, usando os dados de risco de COVID-19 gerados pelo aplicativo telefônico Monitora COVID-19. Neste exemplo, a localização dos casos de baixo risco (pontos amarelos), risco significativo (pontos laranja) e alto risco (pontos vermelhos) de COVID-19 pelos bairros de João Pessoa são ilustrados.
A proposta do C4 para a criação de Brigadas Emergenciais de Saúde também incluiu a recomendação de que os governos estaduais implementassem, por meio das suas universidades estaduais, seus próprios programas de revalidação de diplomas médicos de sorte a poder recrutar os mais de 15 mil médicos brasileiros, formados em faculdades de medicina estrangeiras, e que tivessem registro aprovados naqueles países, para a luta contra a COVID-19 no Nordeste.
Essa medida baseou-se na constatação de que enquanto o Brasil possui uma média de 2.2 médicos por mil habitantes, a região Nordeste conta com apenas 1,55 médico por mil habitantes.
Além disso, como o contingente total de médicos voltados à atenção primária no Nordeste era de apenas 15 mil profissionais, um eventual engajamento de todos os médicos brasileiros formados no exterior poderia duplicar emergencialmente o número de profissionais disponíveis para o enfrentamento da pandemia na região.
O C4 justificou as bases legais, éticas e morais do que pode ser considerada a mais profunda e audaciosa das suas recomendações iniciais da seguinte forma:
Considerando a necessidade imediata de provimento de profissionais em decor- rência da pandemia, o Comitê recomenda aos governadores a criação de pro- grama de adaptação formativa, com complementação curricular, na modalidade ensino-serviço, que assegure um processo rígido de avaliação ao longo do tempo a ser realizado pelas Universidades Públicas na região, e permita, ao final, a va- lidação dos diplomas daqueles que vierem a ser aprovados. Tal programa poderá ser parte da Brigada emergencial de saúde, tornando possível que os profissionais nele inscritos possam atuar sob supervisão, somando-se, assim, à luta contra o coronavírus. Nesse sentido, a recomendação de criação de programa de com- plementação curricular e de avaliação na modalidade ensino-serviço atende às normas legais (§2º, do art. 48, da Lei de Diretrizes e Bases da Educação – LDB, Lei nº 9.394/96 e na Resolução do Conselho Nacional de Educação nº 3, de 22 de junho de 2016) e, mais do que isso, viabiliza o regular funcionamento dos serviços de saúde em tempos de guerra, preservando, com isso, grande número de vidas humanas.
A proposta da criação das Brigadas Emergenciais de Saúde foi prontamente aprovada, por voto unânime, pela assembleia dos governadores do Nordeste ainda em abril de 2020.
A despeito da aprovação, o processo de implantação dessas Brigadas foi profundamente desigual entre os estados.
O Maranhão, por exemplo, por meio da sua universidade estadual, foi o primeiro a criar um programa de revalidação de diplomas para médicos brasileiros formados no exterior, bem como estabelecer brigadas emergências de saúde.
Da mesa forma, o Piauí, por intermédio do seu programa “Busca Ativa”, estabeleceu inicialmente um total de 160 Brigadas Emergenciais de Saúde por todo estado.
Por sua vez, a prefeitura de João Pessoa criou pelo menos 40 brigadas emergenciais para combater o SARS-CoV-2 nos bairros da cidade.
Outras Brigadas Emergenciais de Saúde foram criadas espontaneamente no sul da Bahia bem como em outros estados brasileiros, como, por exemplo, no Pará e em São Paulo.
Infelizmente, o processo de criação de um programa de revalidação de diplomas no estado da Bahia, implementado conjuntamente pelas suas cinco universidades estaduais, só conseguiu ser concluído, mediante publicação de um edital de convocação, na primeira semana de outubro, muito depois do período mais crítico da pandemia no estado.
No mesmo Boletim 4, o C4 alertou os governadores do Nordeste sobre um dos temas que viriam a ser objeto de estudo contínuo de um time de cientistas, recrutados para fazer parte de um novo subcomitê, focado em estudos estratégicos, sobre supervisão direta da coordenadoria do comitê: o controle do fluxo de tráfego não essencial (ônibus intermunicipais e interestaduais e veículos de passeio particular) pelas grandes rodovias federais e estaduais da região [3].
Desde esse momento, o C4 recomendou a todos os governadores nordestinos a criação de barreiras sanitárias nas grandes rodovias para testagem e avaliação de viajantes, bem como bloqueios temporários do tráfego não essencial em “hubs” rodoviários fundamentais da região Nordeste.
Em resposta a essa recomendação, barreiras sanitárias rodoviárias foram criadas principalmente nos estados do Piauí, Paraíba, Alagoas e Bahia.
Desde o Boletim 4, o C4 também alertou sobre a necessidade de proteger as equipes de saúde, por meio do fornecimento de equipamentos de proteção individual adequados, bem como de testagem frequente, por intermédio do uso preferencial e prioritário do teste RT-PCR nesse subgrupo da população.
Em 24 de abril, o Boletim 5 do C4 continuou a enfatizar a necessidade de implementar um programa de desinfecção de lugares públicos, bem como de veículos de carga e de passageiros nos lugares de maior circulação de pessoas nas cidades nordestinas [2].
No Boletim 5, pela primeira vez o C4 recomendou medidas emergenciais para contrabalançar a crescente falta de ventiladores nos hospitais de todo o país.
Inicialmente, seguindo a recomendação do anestesista chefe do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP, Dr. Marcelo Abramides Torres (membro do subcomitê 3), o C4 recomendou o uso emergencial em UTI das máquinas de ventilação normalmente utilizadas em salas cirúrgicas dos hospitais brasileiros.
Mediante treinamento oferecido por anestesistas que normalmente utilizam esses ventiladores, os médicos intensivistas poderiam aprender as adaptações e os cuidados necessários para manter esses equipamentos operando continuamente por vários dias.
Da mesma forma, em caso de urgência extrema, e na falta de qualquer alternativa, o C4 sugeriu também a utilização de protocolos que permitissem dois pacientes que apresentassem quadros clínicos respiratórios semelhantes compartilhar um único ventilador.
Novamente, o C4 insistiu na recomendação de que os governos do Nordeste deveriam aumentar o aporte financeiro das fundações de amparo à pesquisa da região, por meio da criação de um Fundo Nordeste para Fomento à Ciência e Desenvolvimento Tecnológico para acelerar a descoberta e a implementação de novas tecnologias e terapias para o combate à COVID-19.
Ainda no Boletim 5, o C4 emitiu a sua primeira recomendação técnica para o trabalho das Brigadas Emergenciais de Saúde durante suas visitas residenciais, estimulando o uso de oxímetros portáteis para medida da saturação de oxigênio periférico, como forma de detectar o acometimento respiratório de pessoas infectadas pelo SAR- S-CoV-2 ainda num estado precoce.
O C4 também recomendou que oxímetros fossem deixados em posse de pessoas pertencentes a grupos de alto risco para que elas, ou seus familiares, pudessem monitorar frequentemente o grau de saturação de oxigênio periférico e, em caso de queda abrupta, entrar em contato com o programa de telemedicina do Monitora COVID-19 para encaminhamento do paciente a uma unidade de pronto atendimento ou hospital mais próximo.
A partir do Boletim 6, publicado no dia 5 de maio de 2020, ou seja, pouco mais de 35 dias após a sua criação, o C4 adotou pela primeira vez critérios quantitativos para recomendar o estabelecimento de medidas de isolamento social rígido (ou lockdown) em capitais e cidades nordestinas [2].
A partir dessa data, o C4 passou a recomendar periodicamente o lockdown caso uma cidade atingisse uma taxa de ocupação acima de 80% dos leitos hospitalares de enfermaria ou UTI, na vigência de uma curva ascendente de casos e/ou óbitos de COVID-19.
O C4 justificou sua decisão baseando-se na recomendação da Organização Mundial da Saúde que reconheceu ser o lockdown uma medida não farmacológica eficaz o suficiente para deter o avanço da COVID-19 numa fase de crescimento exponencial de casos.
O C4 fez questão de enfatizar que o lockdown deveria incluir também o bloqueio de estradas, com consequente controle rígido de tráfego.
Esta última recomendação se deu devido à constatação, feita pelo grupo de estudos estratégicos do C4, de que a pandemia de COVID-19 já estava se espalhando rapidamente pelo interior da região Nordeste: de 24 de abril a 4 de maio de 2020 o número de cidades nordestinas relatando casos confirmados de COVID-19 dobrou, atingindo 874 municípios, ou seja, 49% de toda a região. Considerando que o primeiro caso nordestino havia sido identificado em Feira de Santana em 6 de março de 2020, em apenas 60 dias praticamente 50% da região Nordeste havia sido infectada.
Na mesma data da publicação do Boletim 6 (5 de maio de 2020), o governo do Maranhão decretou o que viria a ser o primeiro lockdown oficial estabelecido no Brasil.
Por decreto do governo do estado, os municípios de São Luís, Paço de Lumiar, São José de Ribamar e Raposa entraram em lockdown por um período inicial de 10 dias, posteriormente prorrogado até o dia 17 de maio.
Ainda no Boletim 6, o C4 emitiu um posicionamento histórico, defendendo a criação de uma “fila única” para preenchimento de leitos de UTI, em todos os estados nordestinos, levando-se em conta tanto os leitos da rede pública como privada [2].
O C4 foi enfático ao recomendar que todos os estados contabilizassem a disponibilidade de leitos de UTI, tanto da rede pública como da rede pri- vada, e criassem protocolos para garantir o acesso de todos os cidadãos nordestinos que precisassem de cuidados intensivos a um leito de UTI, independentemente da sua condição econômica. No Boletim 6, foram repetidas as recomendações para criação de Brigadas Emergenciais de Saúde, bem como os mecanismos de revalidação, em nível estadual, dos diplomas de médicos brasileiros formados no exterior.
O início da operação da sala de situação virtual do C4, implementada em menos de 30 dias, também foi anunciado no Boletim 6.
No dia 20 de maio, em colaboração com a Fundação Estatal da Saúde da Família do estado da Bahia, o C4 realizou a sua primeira conferência virtual, transmitida para todo o Nordeste.
A palestrante, a professora livre-docente da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo e médica intensivista do Hospital Sírio Libanês, Dra. Elnara Negri, detalhou a eficácia de um protocolo criado por ela e sua equipe para o tratamento de pacientes de COVID-19 com queda repentina de saturação periférica de oxigênio, envolvendo o uso de heparinização precoce [4].
Tal protocolo reduziu significativamente a necessidade de uso de ventiladores, bem como a mortalidade em pacientes graves de COVID-19.
Presenciada por centenas de médicos intensivistas de todo o Nordeste, essa aula permitiu que o protocolo da heparinização precoce passasse a ser implementado em hospitais de toda a região. Embora estudos mais detalhados sejam necessários para comprovar essa tese, relatos de toda a região indicam que muitas vidas foram salvas com a atualização desse novo protocolo clínico.
Em 21 de maio de 2020, o C4 publicou o seu Boletim 7, no qual, pela primeira vez, recomendava o estabelecimento de lockdown imediato na região metropolitana de João Pessoa e Campina Grande, na Paraíba, nas cidades de Mossoró e Natal, no Rio Grande do Norte, em Arapiraca e São Miguel dos Campos, no estado de Alagoas [2].
O Boletim 7 registrou também a primeira vez que o C4 alertou as autoridades da Bahia de que, no dia 20 de maio, Salvador também havia chegado no limite máximo de ocupação de leitos (80%) recomendado pelo comitê científico como seguro.
Em outras palavras, o C4 estava alertando que, a qualquer momento a partir daquela data, Salvador deveria ser colocada num regime de lockdown para evitar uma explosão de casos e óbitos na cidade.
Essas recomendações de lockdown localizado se baseavam nos resultados muito positivos obtidos, em termos de contenção do crescimento de casos e óbitos por COVID-19, no período entre a publicação dos Boletins 5 e 6, nas cidades de São Luís, Fortaleza e na região metropolitana de Recife, que já haviam seguido as recomendações do C4 para adoção de um lockdown.
Cada uma dessas cidades utilizou uma versão própria de lockdown, na maioria das vezes evitando usar o termo para definir a ação implementada.
De qualquer forma, todas essas capitais claramente adotaram normas mais rígidas de isolamento social em vista do iminente colapso de seus sistemas hospitalares e do número exacerbado de casos e óbitos.
Como subsídio para os governadores nordestinos, o C4 publicou no Boletim 7 uma análise detalhada das microrregiões e principais fluxos de tráfego pelas rodovias nordestinas, bem como o primeiro mapa descrevendo o grau de isolamento social alcançado em todo o Nordeste, e uma atualização do número de casos e óbitos pela região (Figura 2).
O Boletim 7 também registrou o início das atividades das Brigadas Emergenciais de Saúde do Maranhão e Piauí [2], uma vez que, em ambos os estados, elas propiciaram a descoberta de novos casos de COVID-19 não registrados até então.
Tendo seguido à risca essa recomendação tão fundamental do C4, em meados de outubro de 2020, o estado do Piauí atingiu o número de 224 brigadas, espalhadas por 218 municípios.
Essas equipes foram munidas com um total de 53.338 testes rápidos de COVID-19, conseguindo identificar, ao longo de 6 meses, um total de 16 mil pessoas infectadas pelo novo coronavírus em todo o estado.
Figura 2. Gráficos ilustram quatro tipos de análise publicadas no Boletim 7 do C4. No topo, uma análise detalhada das microrregiões e principais fluxos de tráfego pelas rodovias nordestinas. Ao centro, mapa con- solidado descrevendo o grau de isolamento social alcançado em todo Nordeste. Na parte inferior, gráficos oferecem a atualização à época do número de casos e óbitos por COVID-19 da região Nordeste
O Boletim 7 também alertou para a necessidade de aumentar a testagem, tanto para COVID-19 como para dengue na região Nordeste, dada a dificuldade de diferenciar o quadro clínico das duas infecções na fase inicial de sintomas (2).
Novamente, o C4 adiantaria em vários meses um debate que se tornou ainda mais importante com a descoberta do seu subcomitê de assessoria estratégica de uma potencial correlação inversa entre a incidência de COVID-19 e dengue, observada para a totalidade dos 5570 municípios brasileiros [5].
O Boletim 7 inovou uma vez mais ao incluir uma sessão que visava à disseminação, tanto à população como aos gestores públicos, de uma lista completa de todos os programas assistenciais oferecidos pelo governo federal, preparada pelos membros do subcomitê 8.
Com o Boletim 8, publicado em 1º de junho de 2020, o C4 pela primeira vez utilizou gráficos produzidos pela sua sala de situação virtual para alertar os gestores nordestinos de que não era hora de relaxar quaisquer medidas de isolamento social, dado que as curvas de crescimento de casos e óbitos ainda eram claramente ascendentes em toda a região Nordeste [2]
No entanto, a maior inovação introduzida pelo C4 no Boletim 8 foi a divulgação da sua Matriz de Risco, unificada para todo o Nordeste (Figura 3), a partir do uso de 13 parâmetros, com valores de 0 a 100, além do uso do fator de reprodução da infeção (R).
Os três grupos de parâmetros utilizados foram os seguintes:
i. C1 – Tensão sobre o sistema de saúde (5 parâmetros);
ii. C2 – Situação local da pandemia (5 parâmetros);
iii. C3 – Isolamento social e influência geográfica (3 parâmetros).
Figura 3. Matriz de Risco criada pelo C4. Gráficos ilustram os 3 grupos de 13 parâmetros, bem com o código de cores usado para definir flexibilização (verde), alerta (amarelo) e trancamento ou lockdown (vermelho)
Idealizada depois de uma análise das matrizes de risco de vários países, a Matriz de Risco do C4 inovou ao incluir parâmetros voltados para a realidade brasileira, como, por exemplo, o aumento de casos de outras viroses (como a influenza) e endemias (como a dengue), bem como a fração de profissionais de saúde afastados por terem sido infectados pelo SARS-CoV-2, ou mesmo falecido como consequência da infeção.
A adição deste último parâmetro foi extremamente presciente dado o trágico número de profissionais da saúde brasileiros que foram infectados e perderam suas vidas nos primeiros seis meses da pandemia [7].
Outra inovação importante foi a inclusão no grupo C3 de parâmetros contabilizando o grau de isolamento social atingido por cada município, o seu grau de influência geográfica, bem como a taxa de casos suspeitos de COVID-19 relatados pelos usuários do aplicativo Monitora COVID-19.
Uma nota técnica, publicada logo a seguir pelo C4, detalhou o algoritmo para cálculo da Matriz de Risco, oferecendo formas de utilizá-la mesmo na ausência de alguns dos 13 parâmetros, bem como definindo um sistema simples de cores para determinação do risco total de uma localidade: verde (flexibilização possível), amarelo (alerta), vermelho (lockdown).
Para ilustrar a utilidade da Matrix de Risco, o C4 publicou a sua primeira análise global da região Nordeste, aplicando a matrix para todos os nove estados da região.
Essa análise foi complementada pela inauguração de uma nova sessão dos Boletins do C4 que passaria a oferecer um resumo da situação epidemiológica de cada estado da região Nordeste, como mapas detalhando novos casos nos últimos 14 dias.
Em 2 de julho de 2020, o C4 publicou o que viria ser o seu mais completo e detalhado Boletim sobre a situação da pandemia de COVID-19, no momento em que ela se aproximava da marca de 500 mil casos e 20 mil óbitos só na região Nordeste.
Com 47 páginas, contendo uma enorme variedade de análises quantitativas e gráficos, inicialmente, o Boletim 9 confirmou as previsões anteriores sobre o processo de interiorização da pandemia de COVID-19.
No final do mês de junho, esse processo já havia se completado, depois de progredir com uma velocidade impressionante. Assim, enquanto, em 15 de abril, 112 microrregiões nordestinas (de um total de 188) possuíam cada uma menos de 50 casos de COVID-19, no dia 24 de maio, esse número já havia caído para 48 microrregiões, e em 20 de junho de 2020, para apenas 6 microrregiões (Figura 4).
Desde 24 de maio de 2020, todas as 188 microrregiões nordestinas já haviam confirmado a ocorrência de casos de COVID-19.
Dada a gravidade da situação, o Boletim 9 recomendava a adoção imediata do lockdown nas cidades de Salvador, Feira de Santana, Itabuna e Teixeira de Freitas (Bahia), Maceió (Alagoas), Aracaju (Sergipe) e Caruaru (Pernambuco).
Figura 4. Três painéis ilustram a evolução temporal do número de casos confirmados de COVID-19 pelas 188 microrregiões nordestinas. No topo à esquerda: 15 de abril. No topo à direita: 26 de maio. Na parte inferior: 20 de junho de 2020
No Boletim 9 o C4 também informou os governadores e a população nordestina sobre a descoberta de um fenômeno extremamente preocupante, que recebeu o nome de “efeito bumerangue”.
Basicamente, depois de chegar ao Brasil pelos aeroportos internacionais [6], o SARS-CoV-2 começou a se multiplicar pelas capitais dos estados onde estão localizados esses aeroportos.
Depois de infectar um grande número de residentes dessas capitais, como não houve um bloqueio rodoviário eficaz e o espaço aéreo brasileiro permaneceu aberto com voos nacionais e internacionais em plena operação, pessoas infectadas começaram a levar a COVID-19 para o interior do Brasil [5].
Uma vez que esse processo de interiorização começou a gerar casos graves de COVID-19, pacientes em estado crítico tiveram que ser transferidos para as capitais dos estados (ou, em alguns casos, cidades de grande porte do interior) em busca de leitos de UTI que simplesmente não existem na maior parte do interior brasileiro.
A esse fluxo recíproco entre capital e interior em cada estado, formado pelo deslocamento de pessoas infectadas da capital para o interior, seguido do retorno de pacientes graves do interior para a capital, deu-se o nome de “efeito bumerangue” [5].
Detectado no Nordeste no final de junho, esse efeito bumerangue ocorreu em todo o Brasil [5], materializando-se independentemente da via de transporte de pa- cientes, fosse ela rodoviária (na maior parte do país), ou pelos grandes rios da região amazônica (5).
Um estudo completo, realizado por membros do subcomitê de estudos estratégicos do C4, não só confirmou a ocorrência do efeito bumerangue em todo país como quantificou a enorme dimensão do fluxo humano que migrou de centenas de cidades interioranas para as capitais dos estados brasileiros, com consequências trágicas, tanto em termos de espalhamento do SARS-CoV-2 como para os sistemas hospitalares das capitais que, em alguns casos – como Manaus, Fortaleza, Recife, Natal, Rio de Janeiro e São Paulo –, ou atingiram um colapso hospitalar completo, ou estiveram muito próximos dele [5].
O estudo realizado pelos pesquisadores do C4 demonstrou categoricamente que a distribuição de leitos de UTI, favorecendo as capitais brasileiras, estava altamente correlacionada com a distribuição geográfica de óbitos por COVID-19 em todo Brasil, graças ao efeito bumerangue [5].
Assim, enquanto em julho cada leito de UTI alocado para o tratamento de pacientes de COVID-19 em estado grave originou 1.23 óbitos, em setembro de 2020, essa taxa alcançou a marca de 3,88 óbitos por leito de UTI disponível para COVID-19, como consequência, entre outros fatores, do efeito bumerangue [5].
O mesmo estudo supracitado também revelou que, nas primeiras três semanas da pandemia de COVID-19 no Brasil, a cidade de São Paulo foi responsável pelo espalhamento de pelo menos 85% dos casos de COVID-19 por todo o país [5]
Quando a contribuição de 16 outras capitais brasileiras foi somada à da capital paulista, foi possível explicar a origem de mais de 98% de todos os casos de COVID-19 nos primeiros meses da pandemia no Brasil [5].
Além disso, o mesmo estudo revelou que essa doença se espalhou rapidamente por todo o país por meio do fluxo de pessoas pela sua vasta malha rodoviária.
Numa análise detalhada, esse estudo demonstrou que as 26 maiores rodovias fede rais brasileiras foram responsáveis por 30% do espalhamento de todos os casos de COVID-19 nos primeiros três meses da pandemia (março-junho 2020) [5].
Claramente, esse estudo corroborou a tese inicial do C4 de que, se um lockdown nacional, e especialmente da cidade de São Paulo, tivesse sido implementado desde o início de março, utilizando bloqueios rodoviários com testagem e avaliação de caminhoneiros e viajantes particulares, e um controle mais rígido do tráfego não essencial (ônibus interestaduais, intermunicipais e carros de passeio), e se o espaço aéreo brasileiro tivesse sido fechado nos primeiros dias, e não no final de março para voos internacionais e nacionais, tanto os casos como os óbitos ocorridos no Brasil, como consequência da pandemia de COVID-19, teriam sido significativamente menores.
Em outras palavras, provavelmente, dezenas de milhares de vidas poderiam ter sido salvas com a implementação dessas medidas no início da pandemia.
Também no Boletim 9, o C4 ofereceu propostas concretas e objetivas para prevenção e combate da violência contra crianças e adolescentes no Nordeste durante a pandemia, bem como uma série de sugestões para combater o impacto socioeconômico da COVID-19 em toda a região.
Essas propostas contaram com a participação de um grande número de colaboradores voluntários do Projeto Mandacaru.
Dessa forma, o Boletim 9 expôs de forma clara a enorme diversidade multidisciplinar, capilaridade de atuação por todo Brasil, bem como o extremo grau de excelência científica e técnica alcançadas pelo C4, seus subcomitês e pelo Projeto Mandacaru.
Portanto, esse documento pode ser considerado peça-chave para uma eventual caracterização da magnitude do impacto alcançado pelo C4 na sua tentativa de mitigar o impacto humano da pandemia de COVID-19 tanto na região Nordeste como no Brasil.
Os Boletins 10 e 11, publicados em 11 de agosto e 17 de setembro de 2020, respectivamente, mantiveram a tônica de recomendações feitas aos governadores nordestinos, ampliando consideravelmente o escopo das análises matemáticas e de cenários, graças ao trabalho do subco- mitê de modelos matemáticos que criou um relatório padronizado para descrever a situação da pandemia de COVID-19 em cada um dos estados nordestinos.
Para facilitar a análise cronológica das propostas do C4, o Quadro 1 sumariza todas as medidas emergenciais recomendadas pelo C4, ao longo dos seus sete primeiros meses de operação.
Quadro 1. Cronologia dos onze Boletins publicados pelo C4, de abril a segunda semana de outubro, com as respectivas recomendações e ações executadas pelo Comitê Científico de Combate ao Coronavírus do Consórcio Nordeste.
3. TRANSPARÊNCIA E DIVULGAÇÃO NACIONAL E INTERNACIONAL
A pandemia de COVID-19 mostrou de forma muito evidente que, além de uma batalha sanitária, o mundo todo foi imerso numa enorme “batalha de informação”; uma disputa ferrenha por narrativas semióticas antagônicas, que incluiu desde a disseminação de uma enorme quantidade de informações falsas sobre a origem e propriedades do SAR- S-CoV-2 até a defesa do uso, sem qualquer base científica ou clínica, de uma série de me- dicamentos ou terapias que provaram ser totalmente inócuas no tratamento de qualquer fase da COVID-19.
Além disso o “negacionismo científico” se tornou lugar comum, sendo propagado impunemente e em grande volume pelas redes sociais, e até mesmo pela mídia tradicional.
Ciente desse desafio, desde o início das suas atividades, o C4 reconheceu a necessidade imperiosa de estabelecer uma estratégia de comunicação capaz de atingir todos os setores e segmentos da sociedade nordestina e brasileira.
Como um dos primeiros comitês científicos criados no Brasil para o combate ao novo coronavírus, o C4 criou múltiplas formas de comunicação, incluindo: (1) um website próprio atualizado constantemente; (2) canais em todas as mídias sociais, alimentados diariamente pelos voluntários do subcomitê de comunicação do Projeto Mandacaru; (3) divulgação pública em várias mídias de todos os seus boletins oficiais e notas técnicas; (4) uso das mídias tradicionais (rádios, televisão, jornais e outras publicações).
Por meio desses canais de comunicação, o C4 procurou disseminar dados, boas práticas e fatos científicos comprovados pela comunidade científica brasileira e internacional, bem como os dados, análises de risco, cenários futuros e recomendações derivadas do trabalho dos seus subcomitês e das equipes do Projeto Mandacaru.
De entrevistas a pequenas rádios do interior nordestino, gravação de áudios para carros de som do interior e vídeos para as redes sociais, até a participação de debates e entrevistas nos grandes veículos de mídia do Brasil e do exterior, o C4 ocupou um espaço midiático raramente conquistado por qualquer iniciativa científica de porte realizada no Brasil.
Como resultado dessa verdadeira “blitz de comunicação”, o C4 se tornou o comitê científico brasileiro mais reconhecido dentro e fora do Brasil, com seus membros sendo frequentemente requisitados pelos grandes veículos de mídia internacional, como os jornais New York Times e The Guardian, a BBC de Londres, as agências Reuters, a AFP, e revistas americanas como Times e Foreign Affairs, para análises da situação da pandemia de COVID-19 no Brasil.
O impacto jornalístico obtido pelo C4 foi quantificado pela equipe de comunicação do comitê, a partir da mensuração do que seria o custo teórico de publicação (em reais, baseado no número de linhas publicadas sobre o trabalho do comitê) de todo o material jornalístico produzido pelos órgãos de mídia (excluindo-se rádios e estações de TV) sobre o C4, durante os primeiros 60 dias da sua atuação.
O valor resultante dessa análise foi de R$ 54 milhões, um valor que dá a dimensão clara da penetração obtida pelo C4 nos meios de comunicação brasileiros e estrangeiros.
Uma das provas de que a estratégia de comunicação foi um enorme sucesso é o fato de que pesquisadores da região oeste do Panamá, depois de tomar contato com as realizações e boletins publicados pelo C4, decidiram criar o seu próprio comitê científico naquela região do país.
Desde então, o C4 panamenho continua a adotar as recomendações e sugestões do C4 brasileiro.
Além disso, a experiência do C4 foi compartilhada em inúmeras palestras aca- dêmicas, como uma plenária para membros da Universidade de Buenos Aires e um Fórum Internacional de COVID-19, organizado pela Nova Zelândia, no qual um representante de cada continente foi convidado a expor a situação da pandemia na sua região.
Nesse debate, o C4 representou não só o Brasil, mas toda a América Latina.
4. REALIZAÇÕES DO PROJETO MANDACARU
Durante os primeiros sete meses de trabalho, as diferentes ações realizadas pelas centenas de voluntários do Projeto Mandacaru foram inestimáveis, contribuindo decisivamente para a missão do C4.
Desde o manejo das redes sociais; a criação de campanhas durante os diversos feriados nacionais, encorajando a população a manter o isolamento social; a elaboração de conteúdos e propostas inovadoras nas áreas de educação, segurança alimentar infantil, direitos humanos; aformação de redes de colaboração de pesquisadores por todo o país; até a organização de uma “live” científico-artística, envolvendo os maiores cantores nordestinos e televisionada para todo o Brasil num domingo à tarde, para arrecadação de fundos para aquisição de equipamentos e insumos para as Brigadas Emergenciais de Saúde.
Com todas essas ações, o Projeto Mandacaru proporcionou ao C4 um grau de agilidade, poder de reação e multidimensionalidade, que jamais seria possível de ser realizado se o C4 tivesse optado por utilizar apenas a sua estrutura original.
Por exemplo, foi graças às ações de voluntários do Projeto Mandacaru que uma parceria com a empresa Jonhson&Jonhson foi negociada, resultando numa doação de 160 mil máscaras cirúrgicas para uso no combate ao novo coronavírus na região Nordeste.
Essa doação foi processada por meio da Fundação Estatal da Saúde Familiar do estado da Bahia e revertida para as Brigadas Emergenciais de Saúde do Piauí, o estado que mais de perto seguiu as recomendações do C4 e obteve um dos melhores resultados no manejo da COVID-19 em todo o Brasil.
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Indubitavelmente, a iniciativa de estabelecer, nas primeiras semanas da pandemia de COVID-19 no Brasil, um comitê científico de combate ao novo coronavírus deve ser saudada como um ato de grande ousadia e visão estratégica por parte do Consórcio Nordeste.
Mesmo levando-se em conta que, possivelmente, no momento da tomada dessa decisão, não havia muita clareza de como seria a dinâmica de interação dos membros do Consórcio Nordeste com o comitê científico, uma vez que gestores públicos no Brasil não têm qualquer experiência em interagir com a comunidade científica e o seu modo de operar, a experiência desses seis meses pode ser avaliada como um grande sucesso, tanto em termos do impacto obtido, no que tange à redução do nú- mero de casos e óbitos por COVID-19, como pela criação de um mecanismo inédito no Brasil: o aconselhamento científico de gestores públicos durante uma crise de caráter nacional e mundial.
Entre os maiores sucessos do C4, podemos citar:
(1) a incorporação do aplicativo telefônico Monitora COVID-19 a uma rotina de telemedicina por cinco estados do Nordeste;
(2) a criação de uma sala de situação virtual;
(3) a constituição de Brigadas Emergenciais de Saúde por todo o Nordeste;
(4) o uso de lockdown e barreiras sanitárias rodoviárias como ferramenta de contenção do espalhamento da COVID-19, com resultados altamente favoráveis nas capitais nordestinas de São Luís, Fortaleza, Recife, e João Pessoa;
(5) a elaboração de uma plataforma virtual de colaboração científica (Projeto Mandacaru);
(6) a disseminação rápida de dados e previsões de cenários para os gestores, levando inclusive à reversão de editais de abertura prematura das economias, como no caso de Sergipe em meados de maio;
(7) o posicionamento claro e independente em defesa da ciência e das boas práticas da medicina; e, finalmente,
(8) o oferecimento a todo o Brasil de um caso de excelência em que a ciência de ponta foi definitivamente incorporada ao arsenal de combate da pandemia de COVID-19 por um grupo de gestores públicos, gerando um raio de esperança para todos os brasileiros que discordaram frontalmente da atitude negacionista, incompetente e irresponsável adotada pelo governo federal durante toda a pandemia de COVID-19 no Brasil.
Em última análise, o trabalho realizado pelo C4, muito provavelmente, será alvo de estudos futuros como uma referência pioneira no âmbito da gestão pública de crises humanitárias de grande porte e da criação de políticas públicas médico-científicas emergenciais no Brasil.
Com todos os problemas enfrentados, principalmente em termos da falta de um apoio minimamente adequado por parte do governo federal, dada a magnitude da crise humanitária enfrentada pelo país, pode-se concluir, portanto, que a região Nordeste sai desta primeira fase da pandemia numa posição claramente mais favorável do que, por exemplo, a região Sudeste.
Evidentemente, não resta dúvida que o desempenho da região Nordeste poderia ter sido ainda melhor caso:
(i) um diálogo mais rotineiro entre o C4 e os gestores públicos tivesse ocorrido;
(ii) mais recomendações feitas pelo C4 tivessem sido adotadas de forma mais imediata e abrangente por toda a região; e
(iii) uma dotação orçamentária mínima tivesse sido alocada pelo Consórcio Nordeste para a operação cotidiana do C4 e para os eventuais projetos emergenciais de pesquisa organizados ou recomendados pelo C4.
Notadamente, as enormes dificuldades enfrentadas pelo C4 em convencer os gestores da necessidade imperiosa de implementar as Brigadas Emergenciais de Saúde em todos os estados, em paralelo à principal estratégia de manejo utilizada (criação de leitos de enfermaria e UTI), garantir a adesão de todos os nove estados ao aplicativo Monitora COVID-19 e a um sistema de telemedicina único, instituir bloqueios rodoviários nos estágios iniciais da pandemia, recorrer ao lockdown de forma mais ágil e resistir por mais tempo às pressões dos setores produtivos para relaxar o isolamento social contribuíram para que um resultado ainda melhor não fosse alcançado.
Essas são lições claras que devem guiar o aprimoramento futuro da interação entre o C4 e os governadores da região Nordeste, bem como de futuros comitês científicos criados no Brasil para assessorar gestores públicos.
De qualquer forma, o fato de que o C4 conseguiu manter a sua independência científica sem jamais sofrer nenhum tipo de pressão política e, apesar de servir como órgão consultivo, sem qualquer função operacional, ter conseguido disseminar amplamente, com total transparência, o teor das suas recomendações e as bases científicas que as motivaram deve ser comemorado como uma conquista histórica e de grande significado, tanto da comunidade científica brasileira quanto o setor público do país.
* Miguel A. L. Nicolelis — Departamento de Neurobiologia, Departamento de Engenharia Biomédica, Departamento de Neu- rologia, Departamento de Neurocirurgia, Duke University Medical Center, Durham, NC, USA, Departamento de Psicologia e Neurociência, Duke University, Instituto Internacional de Neurociências Edmond e Lily Safra, Natal, Instituto Santos Dumont, Brasil, Instituto de Estudos Avançados, Associação Alberto Santos Dumont para Apoio à Pesquisa (AASDAP), São Paulo, SP, Brasil. http://lattes.cnpq.br/4925407922379562. [email protected].
[1] Comitê Científico de Combate ao Corona Vírus. Relatório de Novembro – Subcomitê 09 – Grupo de Modelagem Matemática Estocástica [internet]. [local desconhecido]: C4NE; 2020 [acesso 2020 jul 20]. Disponível em: www.comitecientifico-ne.com.br.
[2] Comitê Científico de Combate ao Corona Vírus. Imprensa [internet]. [local desconhecido]: C4NE; 2020 [acesso 2020 jul 20]. Disponível em: https://www.comitecientifico-ne.com. br/imprensa.
[3] Comitê Científico de Combate ao Corona Vírus. Projeto Mandacaru [internet]. [local des- conhecido]: C4NE; 2020. [acesso 2020 jul 20]. https://www.comitecientifico-ne.com.br/ mandacaru.
[4] Negri EM, et al. Heparin fterapy Improving Hypoxia in COVID-19 Patients – A Case Series. Front Physiol. 2020;11:573044. doi: https://doi.org/10.3389/fphys.2020.573044.
[5] Nicolelis MA. How super-spreader cities, highways, hospital bed availability, and dengue fever influenced the COVID-19 epidemic in Brazil. MedRxiv [internet]. 2020 [acesso 2020 jul 20]. Disponível em: https://www.medrxiv.org/content/10.1101/2020.09.19.20197749v1. full.pdf+html.
[6] Candido D, et al. Routes for COVID-19 importation in Brazil. J. Travel Med. 2020;27(3):1-7.
[7] Duprat IP, Melo GC. Análise de casos e óbitos pela COVID-19 em profissionais de enfer- magem no Brasil. Rev. bras. Saúde Ocup. 2020;45(30):1-7.
Comentários
Fabricio
Valorizo o empenho da matéria, mas desse tamanho ninguém lê.
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