Lelê Teles, sobre a morte: O mistério é estarmos vivos

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Por Lelê Teles

Foto: Imagem gerada por inteligência artificial

Por Lelê Teles*

morremos todos, todos morreremos.

mais dia ou menos dia.

o mistério é estarmos vivos.

“prefiro morrer do que perder a vida”, diz o adágio.

biden, por exemplo, quer melhor exemplo de morto-vivo.

sócrates, o da cicuta, morreu pra não perder a vida.

tem gente morrendo de fome e gente morrendo de tanto comer.

uns morrem de medo.

outros morrem de inveja.

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“eu morro de vergonha,” diz a meretriz.

“eu morro no morro”, diz o favelado.

há quem morra de murro.

gente morre de frio, morre de calor…

morre de vontade.

uns morrem de morte morrida, outros de morte matada.

david carradine, o kung fu, morreu enquanto se punhetava.

tatu, o anão da ilha da fantasia, se matou com um tiro no peito.

o nanismo e o onanismo.

hitler morreu-se e mussolini foi morrido.

mais de seissentas mil pessoas escravizadas morreram na travessia forçada.

o brasil é o país do mundo onde mais pessoas trans são matadas.

morre quem se cuida e quem não se cuida.

quem dorme cedo e quem não dorme.

quem tá vivo, amigo, uma hora morre.

jesus, que é filho legítimo de deus, morreu.

sim, morreu.

mas ressuscitou, dirás.

digo mais, e elias e enoque que partiram dessa vivinhos da silva?

os sacanas passaram dessa para a outra sem nunca terem visto a cara da morte.

quem viu a cara da morte foi cazuza, e ela estava viva.

lázaro foi lá, apertou a mão do cara e voltou.

isaque, coitado, quase chega lá, sorte que o anjo tirou o cutelo da mão de abraão.

o papa tomou um tiro e sobreviveu, morreu de beber vinho e papar hóstia.

orfeu visitou a morada dos mortos e saiu de lá vivo.

dante alighieri entrou na barca de caronte e, vivo, viu os mortos agonizando na vida nova.

brás cubas, depois de morto, escreveu um romance.

julieta se fingiu de morta.

romeu se matou achando que ela morrera de verdade.

julieta acabou morrendo de verdade ao ver o cadáver de romeu.

ê romeu, erro meu, diria ela.

um fã matou john lennon, o câncer matou bob marley.

quem mandou matar marielle?

são pafúncio, quase morto, foi salvo por santo onofre, quase vivo.

buda morreu, morreu gandhi, também morreu alexandre, que se achava o grande…

morreram todos os faraós, tzares e imperadores.

morrem caciques, pajés, magés, xamãs e curadores.

maria da conceição tavares fumava como uma caipora, viveu até 94.

niemeyer viveu até os cento e quatro fumando cigarrilhas.

seo teodoro, do boi, fumava e bebia cachaça, passou dos noventa.

vi outro dia um jogador de futebol, jovem atleta profissional, cair morto dentro do campo.

do nada, catapimba: “tá lá o corpo estendido no chão”.

tem bebês natimortos e fetos já mortos no ventre.

tem quem morra cedo sem nunca ter fumado, comido agrotóxico ou bebido coca-cola.

tem cardiologista morrendo do coração.

e o trem do solano apitado na estação: tem gente com fome, tem gente com fome, tem gente com fome…

evitar é sempre bom, comer bem, não fumar e não beber, mas isso não garante nada.

de repente, do nada, vem um carro na contra-mão e pum.

pãn, pimmm.

chororô e epitáfio.

morre ciclista, corredor, nadador, crosfiteiro…

morre vegano, carnívoro e maconheiro.

morre fumante, não fumante, macumbeiro…

morrem velhos, jovens, crianças…

gays, machos, sapatão, travesti…

punks também morrem, como morrem coroinhas, dizimistas e quem se enfurna num seminário.

morrem chefes, entregadores, garis, galãs…

morrem pais, padres, padrastos, padrinhos, pms…

morrem ateus, espíritas, apóstatas…

morre quem ganha e quem não paga a aposta.

palhaços também morrem.

há quem morra de rir.

tem gente que morre de velha.

morrem anões, cangaceiros, profetas, pedintes, putas e coveiros.

o grande mistério é como você quer viver antes da morte.

quando e quanto não é contigo.

viver é opcional.

pra morrer, basta estar vivo.

palavra da salvação.

*Lelê Teles é jornalista, publicitário, roteirista e mestre em Cinema e Narrativas Sociais pela Universidade Federal de Sergipe (UFS)

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Lelê Teles é jornalista, roteirista e mestre em Cinema e Narrativas Sociais pela Universidade Federal de Sergipe (UFS).


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