Lelê Teles: “Quero assistir ao sol nascer, ouvir os pássaros cantar”

Tempo de leitura: 4 min
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Por Lelê Teles

Sobre gaiolas e varandas 

“sem a música, a vida seria um erro” nietszche.

Por Lelê Teles*

quando eu era criança, correndo descalço e com nariz sujo pelas ruas empoeiradas de uma periferia em brasília, tínhamos um vizinho, delegado de polícia, que mantinha um curió preso a uma gaiola.

incomodava-me ver aquele animalzinho condenado a um crime que, eu sabia, era impossível ele ter cometido.

incomodava-me ainda mais o fato de que o pobre passarinho cantava; porque eu jurava, de pés juntos, que o canto dos pássaros era uma ode à liberdade e uma expressão genuína e alada de um ser integralmente feliz.

ainda infante, todos os finais de tarde eu chegava da escola e corria sozinho para a mata virgem, cerrado adentro, e passava horas macerando folhas e gravetos com os pés descalços a ouvir o piar da avifauna: gorjeios, trinares, assobios, silvos, chilreios, grasnares…

o encanto daqueles cantos era pra mim a expressão genuína da felicidade. penso isso ainda hoje, porque a ave nem sabe que é feliz, uma vez que desconhece a felicidade.

a felicidade é que se sabe ave.

como aforisma o quintanar do poeta de alegrete: “eles passarão e eu passarinho”.

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por isso, quando me embrenhava no cerrado, eu gostava de assoviar, numa passarinhação imitativa, na tentativa de transmigrar pra mim um pouco daquela álmica euforia fagueira que os passarinhos emanavam afoitos.

porém, analfabeto na língua pássara, estava surdo para o que aquela criatura da gaiola tentava dizer na sua expressiva expressão musical.

“talvez”, eu refletia, empático, “o passarinho esteja contente por receber alpiste todos os dias e com hora marcada; deve gostar de saber que tem alguém que se importa com ele e lhe trate como um filho caçula”.

só os enfermos em uma enfermaria, os bandidos aprisionados em calabouços públicos e os filhos caçula têm a primazia do alimento na boca sempre à hora marcada.

aliás, como um ornitólogo da ave-gente posso afirmar que somos todos curiosos curiós, engaiolados em escritórios, repartições, clínicas, departamentos, puteiros, botecos e casas de massagem.

e a gente canta todo dia, como diria o renato russo, “parece cocaína, mas é só tristeza”.

pensei isso e senti o vento voar ao meu redor como se um anjo sussurrador tivesse esfregado em mim as suas plumas leves e levitantes.

alaram os anjos bíblicos para lhes dar ares de passarinhos humanos, incutindo neles uma felicidade de paraísos.

o diabo é que os anjos não cantam, são pseudo-aves que tocam arpas e trompas.

a ave maria sempre foi pra mim uma pássaro mitológico.

lembro de uma provocação que fiz um dia: “papai, todo pássaro canta, mas nem um pássaro compõe, quem compõe as músicas pássaras?”

” deus”, ele respondeu, deísticamente.

achei uma saída fácil, falsa e mentirosa.

até que um dia eu tive um estalo.

na vitrola do meu pai tocava um samba do cartola.

quando ouvia cartola, meu pai, que era um casmurro carrancudo, sorria e cantarolava com um copo de cerveja na mão; às vezes, pegava minha mãe pela cintura e valseavam pela sala, salientes.

mamãe era uma espécie de passarinha, uma ave canora, engaiolada nos braços daquele velho rabugento.

passou-se o tempo, eu cresci e, crescendo, cresceu em mim uma curiosidade inquieta e investigativa.

tornei-me um perdigueiro empertigado.

notei que a música do cartola era um canto cheio de tristeza e melancolia; compreendi que papai sorria enquanto cartola chorava porque ele era analfabeto na língua lírica, surdo para a poesia alada.

foi, então, que identifiquei meu coroa naquele delegado, e pensei: e se o passarinho fosse uma espécie de cartola em pluma e prantos?

então, peguei um gravador e gravei o encanto daquela cantante passarinha; depois da analogia com mamãe, passei a acreditar que aquele passarinho era mesmo uma passarinha.

e percebi, nas mínimas minúcias, que o canto do pássaro cativo diferia um pouco do cantar das canoras aves livres.

guardei por anos aquele canto-pranto enigmático.

e sempre o ouvia, sempre ao pôr do sol; intrigado.

a roda continuou girando, cresceram-me asas nas costas e eu voei da casa dos meus pais.

onde vais, meu filho, ele me perguntou.

eu me voo, respondi, ávicamente.

e fiz como o diabo do conto de machado de assis, recolhi as asas e mergulhei no abismo.

já adulto, estudando línguas vernáculas na universidade de brasília, deparei-me com a linguística, a disciplina mais apaixonante do mundo.

li as observações estruturalistas de saussure e estudei a gramática gerativa criada pelo chomsky .

estudei fonética e fonologia da língua xhosa, da áfrica do sul, com o seu musical, lindo, percussivo e indefectível click sound, e a morfologia da língua tupi e a variação das línguas nativas com o professor arion rodrigues.

então, num certo pôr de sol colorido na capital federal, ouvindo pela enésima vez o canto daquele curió, tive um insight.

fiz como naquela fábula farsesca do champollion diante da pedra de rosetta, revelando o enigma dos hieróglifos egípcios.

peguei meu bloco de anotações e fui decifrando as cifras do canto ávico: fififi, fafafá, furi furi, fará fará…

ia anotando as repetições, as mudanças de entonação e de respiros e percebi um padrão, enxerguei uma sintaxe, montei um léxico, compreendi a estrutura frasal, a composição de sintagmas e, bingo, champolinhônicamente transcrevi a música que a ave cantava.

ei-la:

“quero assistir ao sol nascer /
ver as águas do rio correr/
ouvir os pássaros cantar /
eu quero nascer, quero viver /
deixe-me ir, preciso andar/
vou por aí a procurar/
rir pra não chorar…”

isso foi tão libertador.

como uma ave numa árvore, eu chorei sorrindo.

palavra da salvação.

*PS: ave e pássaro não são sinônimos.

*Lelê Teles é jornalista, publicitário, roteirista e mestre em Cinema e Narrativas Sociais pela Universidade Federal de Sergipe (UFS).

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Lelê Teles

Lelê Teles é jornalista, roteirista e mestre em Cinema e Narrativas Sociais pela Universidade Federal de Sergipe (UFS).


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Maria Madalena

Fiz quase tudo o que você fez. Sofri, sorri e cantei quando havia galos, noite e quintais. Quando os 3 tiros entraram no peito da coleguinha de ginasial, ainda sem seios, ferida pelo policial e bom pai de família criminoso sexual, morri pela primeira vez. Feito gata selvagem peguei minhas seis vidas e mudei para a capital para fugir da vida de boia fria e ajudar minha família. Na capital, o monstro do machismo escondido no bom moço de família, depois de dois anos de relacionamento feriu meu corpo e minha alma para terminar o namoro. Sem conseguir me manter na sua gaiola me estuprou para contar aos amigos que havia sido o primeiro na vida da garota boia fria que cantava feito passarinha. Morri de novo e não mais cante. Resolvi experimentar minhas asas saltando do prédio mais alto da cidade. No dia marcado encontrei o passarinhão de bigode, voz e sotaque que arranhava carinhosamente corpo e alma e desisti de trocar de vida. Como todo suicida eu não queria morrer! Eu queria parar de sofrer. Anonimamente na praça onde foi decidir se aceita ser candidato a deputado federal, ele me deu um convite para vê-lo na maior gaiola da cidade. Não ia. Que roupa nem tinha. Fui. E na neblina das noites dos vampiros do Dalton Trevisan, escapamos das festas dos ricos e fomos dormir no colchão da sala sem cortinas, onde a lua cheia entrava inteira e tingia de dourado o rapaz latina que cantava feito todos os pássaros. Nas paralelas da janela da área de serviço ele pendurava suas meias vermelhas sob olhar espantando dos vizinhos. E cantando me explicou ao lado dos amigos da banda inglesa que paixão é droga, amor romântico é invenção e para amar de verdade é preciso tempo. No encontro dos dois pássaros feridos, renasci feito fênix. Entendi que os carniceiros da ditadura com suas gaiolas cheias de sangue, roubavam cadáveres por covardia. Tinham medo de serem condenados por crimes contra a humanidade. Encontrei Rubens Paiva, Stuart Angel, Zuzu… no canto torto que falava do “purão” cheio de sangue a serviço do Tio Sam, em troca de cargos, poder e denares. Vivi para ver o General que não é de banda ver o sol nascer quadrado na gaiola das feras que levaram a vida das Annas, Marielles, Aracellys, Mariquinhas…

AINDA ESTOU AQUI E HOJE EU CANTO MUITO MAIS!
Não sei.
Tive vontade de dizer o que já cantei. Quem sabe outro dia.

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