Lelê Teles: Ovo é uma ova. Galinhas e coelhos uni-vos, assumam o próprio negócio

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Por Lelê Teles

“quem nasceu primeiro foi o ovo. os dinossauros punham ovos muito antes de existirem as galinhas”, cacique papaku

Por Lelê Teles*

duas beatrizes entraram para a história, uma está imortalizada na divina comédia, de dante; a outra, a imortalizo aqui nesta crônica.

a primeira é uma mulher, a segunda, uma galinha.

beatriz de dante era uma papa-fina, milionária e parasita; a minha é uma pobre proletária.

conta o conto que dante se apaixonou por beatriz quando ele tinha nove anos de idade e ela oito; e o molecote, que deveria ser um canceriano, nunca mais se desapaixonou.

o diabo é que a bela florentina, que era filha de um rico banqueiro, casou-se com outro banqueiro mais rico ainda.

dante sentiu-se chifrado como um toureiro amador.

esse babado foi revelado por bocaccio, o leão lobo do medievo.

quando beatriz morreu, dante mergulhou até os infernos para encontrá-la, como um orfeu talarico e necrófilo.

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já a beatriz emplumada, coitada, que nada tem nesta vida além das penas que lhe vestem e da falta de pena que os outros sentem dela, morrerá sem nunca ter visto um pinto; gozará dessa vida sem gozar.

amanhecerá, como diz o outro, sem ouvir o galo cantar.

sim, temos que falar sobre a solidão da galinha de granja, e esse é o ponto.

a minha beatriz surgiu para o mundo em um meme, que é uma forma de propaganda e de protesto dos dias atuais.

nesse meme memorável, feministas encorajaram beatriz à rebeldia.

afirmavam que ela vendia muito barato a sua produção e que era hora de ela se valorizar e valorizar o esforço do seu trabalho.

“trinta ovos por dez reais, beatriz, francamente!”, alertavam, sororamente, suas amiguinhas bípedes depiladas.

o problema do identitarismo, todos o sabemos, é enxergar somente as identidades sexuais e de gêneros, sem fazer o devido recorte de classe.

essas bem intencionadas protestantes criam que beatriz era uma empreendedora, dona do seu próprio negócio, uma patroa sem patrão, uma anarcocapitalista vivendo da sua própria produção.

escarafunchando as internets, essas feministas descobriram, lendo matérias pagas pela indústria do ovo, que essa proteína, antes vilã de nutricionistas, converteu-se num alimento riquíssimo, fonte de vitaminas, proteínas e sais minerais; bom para o colesterol, para a inteligência e para a memória, seu consumo é indicado, inclusive, como preventor do alzheimer.

procurando argumentos, como quem procura pelo em ovo, no intuito de forjar uma narrativa matadora para jogar no zap, as ativistas digitais ficaram sabendo que no ano passado o ovo foi a proteína animal que mais teve o preço desvalorizado.

e mais, no mesmo período consumimos cinquenta e nove bilhões de ovos, duzentos e setenta e duas unidades per capita, obrigando as pobres aves a botarem mil e oitocentos ovos por segundo.

ora, era pra termos galinhas andando de ferraris por aí, ostentando champagnes em camarotes no carnaval, fazendo publi do tigrinho, morando e namorando em condomínios de galinheiros com pé direito altíssimo.

no entanto, sejamos francos, nunca vimos, onde vamos, essas galinhas dos ovos de ouro.

“ora, ora, ora”, penaram as ativistas digitais, “tem alguém metendo a mão nessa bufunfua.”

e por falar em bufunfua, a indústria do ovo contratou gracyanne barbosa para anabolizar a importância do ovo.

a marombada admitiu ser ovólatra e afirmou que aquela imponente e rija estrutura muscular se mantém firme graças ao pole dance e às dúzias diárias de gemadas e omeletes.

a partir da ex-bela, o ovo, que antes só era visto em marmita de pedreiro – apelidado de disco voador ou bife do zoião -, passou a ser item indispensável na tupperware de qualquer cavalona, ostentado em academias por dez entre dez saradões.

crossfiteiras passaram a encarar o ovo como uma iguaria, colocando-o na seleta cesta básica de fit foods.

o bife a cavalo virou uma celebridade masterchéfica.

inicia-se a febre do ovo e o brasil se torna um dos países que mais consomem ovos no mundo.

do nada, começaram a surgir oólogos por toda parte, cacarejando em podcasts e programas de entrevistas.

a indústria do entretenimento inventou a galinha pintadinha para conquistar o coração das crianças, que passaram a exigir ovo cozido na merenda escolar.

a indústria cultural, que não perde uma, já prepara um novo gênero musical: o cacarejo universitário.

um filósofo e um juiz, ambos cabeças de ovo, foram alçados ao posto de celebridades.

não param de falar em um, e o outro não para de falar.

um linguista quase ovulou na tevê afirmando que o ovo é um palíndromo, tanto se pode lê-lo indo quanto voltando.

toda essa grita chamou a atenção das feminizap, a falta de galinhas milionárias levou-as a imaginar que beatriz e suas colegas de poleiro andavam a entregar a sua força de trabalho por uns poucos bocados.

jornalistas formadas pela unizap diziam que beatriz vendia sua produção diretamente pro carro do ovo.

ocultando que esses atravessadores, em verdade, são tão explorados quanto as beatrizes.

beatriz, vamos logo às verdades, é uma escrava do capitalismo.

a miserável trabalha de sol a sol, uma vez que na fábrica de ovos onde ela bica o ponto, a noite inexiste.

como disse o presidente lula: “alguém tá sacaneando as galinhas… elas ficam trancadas, coitadas, só comendo, bebendo água e pondo ovo…”

descoladas da realidade, as ativistas de zap, brancas e burguesas, viram as beatrizes apenas como colegas de gênero, sem ligar pra sua condição social.

por isso não enxergaram o óbvio apontado por lula da silva. 

ao invés de exigirem o fim da desumana e desávica escala 24/7, acreditaram que a melhor forma de valorizar as ciscantes beatrizes era valorar melhor o suor do seu cloáquico trabalho.

as raposas velhas, os parasitas que exploram as galináceas, farejaram aí uma grande oportunidade.

pensaram eles, “é chegada a hora de diminuir a oferta e aumentar o preço”.

essa é também uma forma de conseguir publi gratuita na rede globo, porque fará com que ana maria braga use um colar de pérolas de ovos caipira.

nos esteites, a estratégia foi gripar as galinhas e, em vez de dar a elas um chazinho de limão e uma canja de galinha pra curar o resfriado, decidiram abater trinta milhões delas de uma vez só, no maior galincídio da história.

resultado, o ovo sumiu das prateleiras e reapareceu a preço de pitaya.

sim, o ovo tá mais caro que a ova.

como aqui não faz o frio que faz lá, os empresários brasileiros, antes negacionistas, decidiram colocar a culpa na mudança climática, afirmando que tá muito calor e por isso as galinhas botam menos ovos.

resultado: diminuiu a oferta e o preço subiu.

e o que a beatriz ganhou com isso?

absolutamente nada, como acontece com qualquer trabalhador, o aumento da lucratividade do patrão não se reveste em melhores salários.

se antes eram trinta ovos por dez reais, hoje são dez ovos por trinta reais.

a pobre beatriz e suas amigas de interior, bem como suas colegas imigrantes da coreia, da venezuela e da bolívia, continuam no mesmo alojamento, comendo a mesma ração barata e seguem trancafiadas no mesmo galpão, de onde nunca sairão com vida.

com o sucesso da inflação do ovo de granja, os empresários passaram agora a inflacionar o ovo da páscoa, alegando o alto preço do cacau.

o diabo é que o que menos tem em um ovo de páscoa de supermercado é cacau.

é hora de coelhos e galinhas se juntarem, montarem cooperativas e assumirem o próprio negócio.

quero ver um empresário botar um ovo.

quando os explorados e as exploradas deste mundo descobrirem que sem a sua força de trabalho o patrão morre de fome, descobrirão o quão forte realmente são.

palavra da salvação.

*Lelê Teles é jornalista, publicitário, roteirista e mestre em Cinema e Narrativas Sociais pela Universidade Federal de Sergipe (UFS).

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Lelê Teles

Lelê Teles é jornalista, roteirista e mestre em Cinema e Narrativas Sociais pela Universidade Federal de Sergipe (UFS).


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