Lelê Teles: O metrô da minha infância

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Por Lelê Teles

Por Lelê Teles

deslizar por baixo da terra, feito um tatu ou uma toupeira, eis meu sonho de criança.

um sonho realizado.

eu inventei um metrô.

direi tudo, de uma vez, sem arrodeios.

quando criança, nunca ouvira falar em metrô, só na adolescência é que ele me apareceu.

mais tarde, eu já era um jovem publicitário quando a novidade chegou em brasília.

a minha agência ganhou a licitação do metrô/df e eu criei o primeiro slogan e a primeira campanha publicitária daquela companhia de transporte.

hoje, sentado na varanda do amigo jaburas, em águas claras, ouço o ruído da minhoca de metal lá embaixo e me lembro da minha infância feliz.

era um tempo em que os pais saíam pra trabalhar e as crianças cuidavam umas das outras.

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assim, ficava todo mundo descuidado.

eu era um molecote de nariz sujo, sempre com uma camisa curta e surrada, os pés descalços, o rosto magro, os cambitos ligeiros e a infinita sensação de alegria e liberdade.

botava bombinha no rabo de cachorro, mentia pra matar aula, jogava biloca e pelada na rua, brincava de quimado, bete, garrafão e enfinca.

meu pai, profissional da saúde, trabalhava no hospital de base de brasília e foi transferido pro hospital do gama.

inclusive, meu pai foi colega de trabalho do ney matogrosso.

eu nasci num bairro legal, na shis, que tinha uma bela floresta de eucaliptos a fazer sombra.

tinha água encanada, asfalto nas ruas e todas as casas eram de alvenaria.

lembro que o por do sol era colorido e magnífico e, pelas manhãs, as andorinhas brincavam no céu.

não sei porque diabos meu pai decidira, um dia, se mudar para a periferia da periferia.

chegamos como estranhos estrangeiros na nova quebrada.

todos os barracos eram de madeira, os lotes cercados de arame, não tinha iluminação pública e nem asfalto.

era um lugar semirrural.

idade da pedra.

os adultos trabalhavam e a molecada vivia solta na rua.

a vida era uma esfuziante brincadeira.

a quebrada era como uma aldeia comandada por curumins.

três ruas abaixo da minha casa tinha um córrego, o crispim, onde tomávamos banho e as mulheres lavavam roupa.

tinha também uma sombrosa floresta de buritis, jatobás, araticuns e muitas árvores e aves.

bicas com pequenas cachoeiras afluíam por todos os lados.

era um pequeno paraíso.

eu estava sempre trepado num pé de abacate muito alto que tínhamos no quintal.

era minha torre de comando, dali eu enxergava a quebrada inteira.

por baixo dos nossos pés corria uma rede de esgotos que vinha dos bairros urbanizados.

nós, crianças, fizemos daquele sistema de tubulação um meio de transporte.

era o nosso metrô.

com oito, nove anos, entrávamos naquelas manilhas, usando umas lanternas improvisadas, feitas de latas de óleo com uma vela dentro.

caminhávamos, curvados, com um fio de água de dejetos passando entre as nossas pernas abertas.

andávamos horas a fio dentro daquela tubulação fétida e imunda.

alegres e aventureiros, percorríamos toda a cidade pelos subterrâneos.

às vezes encontrávamos outras turminhas, de outras quadras, pelos caminho.

era como se cada boca de manilha fosse uma estação.

quando o ar ficava muito insalubre, subíamos para respirar um pouco.

em seguida, seguíamos.

até chegarmos no fim de linha que era o delicioso crispim.

aproveitávamos e tomávamos banho na parte de cima, onde o esgoto não era despejado.

sempre em fagueira alegria.

um dia, entramos com o tempo nublado.

não sabíamos, mas chovia muito em outra ponta da cidade.

de repente, ouvimos um estrondo assustador vindo de longe.

aquela tubulação, nossa rede de transporte e alegria, se convertera, do nada, na terrível garganta de um monstro endiabrado.

e ele rugia, grunhia, gritava, ameaçadoramente.

corremos desesperados.

percebemos que o volume da água debaixo de nossos pés estava aumentando.

uma enxurrada estava a caminho.

subimos com muita dificuldade os degraus da escada de ferro e forçamos a pesada tampa da manilha.

de repente, fomos surpreendidos por uma violenta explosão.

buuummm…

uma quantidade assustadora de água saiu da tubulação e caiu no fosso onde fica o respiradouro.

abrimos a tampa, subimos três, quatro, cinco moleques.

a chuva lá fora era torrencial, o céu estava negro e o vento ventava um vendaval.

eu fui o último a subir.

o resto da molecada, uns seis pelo menos, não teve a mesma sorte.

foram tragados pela lama.

uma água imunda, barrenta, cheia de lixo e fezes.

o barulho era terrivelmente assustador.

lembro de ter visto o rosto desesperado dos amiguinhos sendo levados pela correnteza.

os olhinhos miúdos aterrorizados.

os corpinhos frágeis sendo arrastados e triturados pela correnteza.

nunca mais os vimos.

depois disso, nunca mais brincamos de metrô nas manilhas de esgoto.

a imagem dos garotinhos agonizando e sendo arrastados não sai da minha mente.

nunca sairá.

palavra da salvação.

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Lelê Teles

Lelê Teles é jornalista, roteirista e mestre em Cinema e Narrativas Sociais pela Universidade Federal de Sergipe (UFS).


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