Lelê Teles: Estupro e aborto, o que nós, homens, temos a ver com isso

Tempo de leitura: 4 min
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Por Lelê Teles

Perseu exibe a cabeça da Medusa, morta por ter sido acusada de provocar o estupro do qual foi vítima. Foto: Wikipedia

Por Lelê Teles*

“el cuerpo que somos está efectivamente regulado, controlado, regularizado, normatizado por un sistema de género diferenciador y discriminador para las mujeres…” mari luz esteban.

o estupro é um assunto veladamente evitado por nós, homens.

o diabo é que somos nós, os homens, quem o cometemos.

o homem só fala sobre estupro quando o assunto envolve a cadeia.

ser estuprado é o maior medo de um homem quando vai preso.

ser estuprada é, justamente, o grande medo das mulheres estando em liberdade.

logo, a liberdade da mulher é a prisão do homem, é a cerca.

no entanto, nós, homens, falamos muito sobre aborto.

e nós, claro, não abortamos.

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no máximo somos nós quem obrigamos algumas mulheres a abortar.

e somos também nós, homens, quem mais lutamos para proibir as mulheres de fazê-lo por vontade própria.

ou é do nosso jeito ou não é.

somos contra, sim, que isso é crime, que se liberar o aborto toda mulher vai querer engravidar só para abortar…

é só fechar as pernas, é só tomar a pílula, engravida quem quer ou quem não se cuida.

a discussão do momento é sobre se meninas deveriam ter o direito de abortar depois de serem estupradas.

ainda assim, estamos evitando falar sobre o fato de que as meninas são estupradas por seus pais, padres, padrastos, padrinhos, pastores, pms…

irmãos, tios, cunhados, médicos…

geralmente, crianças são estupradas por homens que fazem parte do seu círculo íntimo, por alguém que ela deveria confiar.

para as mulheres, não importa a sua idade, os homens são, indiscutivelmente, inconfiáveis.

a cultura do estupro precisa ser desnormalizada.

e para que essa norma se desnormalize, é preciso falar sobre ela.

o estupro, como sabemos, não é um ato erótico.

é uma relação de poder e de posse.

estupro não é sexo, estupro é violação, invasão e violência.

estejamos conscientes de que o corpo da mulher, para o homem, é um território.

pronto pra ser invadido, cercado e explorado.

quem tem uma irmã aprende, desde cedo, sobre quais corpos se erguem cercas e quais corpos recebem as estacas e os arames.

é precisa domesticar os corpos femininos, cerceá-los, assustá-los com a ameaça do pecado¹ e puni-los.

estupros correcioanais são formas cruéis e covardes de exercer controle e domínio sobre esses corpos.

o feminicídio é o ato final destinado a corpos rebeldes, irrefreáveis e indomáveis.

por sua vez, o matrimônio, tal qual o conhecemos, não é sobre afeto, é sobre posse.

o casamento é concebido como um contrato de concessão de posse desse território-corpo.

contrato firmado por três homens: o pai, o padre e o pretendente.

até pouco tempo a mulher sequer era consultada sobre se queria ou não se casar.

uma vez que os casamentos, já no período colonial, eram arranjados.

o rito de transição de posse se dava com o pai entrando na igreja de braços dados com a filha.

lá, ele a concedia ao seu novo proprietário e o padre ratificava com um amém.

e uma nova cerca se erguia sobre aquele território-corpo.

lembremos que o amante de uma mulher, normalmente, é chamado de pula-cerca.

essa cerca invisível nós sempre a enxergamos, porque fomos nós que a colocamos lá.

o estuprador é um grileiro sempre pronto a devastar um território.

o pedófilo é aquele que encontra uma terra virgem e fresca.

o estupro foi criminalizado pela primeira vez ainda na idade média².

porém, era considerado um crime contra a propriedade, veja você.

lembremos que nesse período, a virgindade, a da mulher, era um valor.

uma mulher estuprada era um prejuízo para o pai.

ninguém queria casar com uma desvirginada.

o dote de uma não donzela deveria ser bastante elevado, isso se o pai encontrasse um pretendente.

o estupro contra uma mulher casada ia pelo mesmo caminho.

era crime contra a propriedade, dessa vez o lesado era o marido.

durante o período colonial, as mulheres negras e indígenas foram violentamente estupradas porque a elas faltavam-lhes uma cerca.

eram um território sem dono.

o corpo da mulher, voltemos, é um território onde os homens mandam e desmandam, matam e desmatam.

o brasil nasce sob o sigo de dois tipos de estupro: o do território-terra e o do território-corpo.

no congresso, a maioria dos nossos legisladores é formada por machos brancos que descendem de machos brancos que estupraram negras escravizadas e indígenas.

muitos são também proprietários de terras ou defendem os interresses de latifundiários.

Adriana Guzmán e Lorena Cabnal

sanadoras comunitárias como a boliviana adriana guzmán e a guatemalteca lorena cabnal estão despertando as mulheres indígenas da abya yala a defenderem seus corpos como defendem seus territórios.

porque sabem que a estaca que os homens fincam na terra tem relação direta com o falo que as estupram.

é preciso que nós, homens, falemos sobre isso.

palavra da salvação.

¹Eva e os Padres, Georges Duby.

²A História do Estupro, Georges Vigarello.

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Lelê Teles

Lelê Teles é jornalista, roteirista e mestre em Cinema e Narrativas Sociais pela Universidade Federal de Sergipe (UFS).


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