Estela Scandola: A epidemia de Aids é desigual como a nossa sociedade. Precisamos voltar a falar sobre HIV em todos os espaços

Tempo de leitura: 8 min
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Por Estela Scandola

Ilustração: Unaids

Por Estela Márcia Rondina Scandola*

A epidemia de Aids trouxe para todos os mundos – tangíveis e intangíveis — diferentes e contraditórios sentimentos e realidades.

Foi desde a cooperação mundial econômica e tecnológica às discussões das sexualidades e direitos humanos – tudo ao mesmo tempo e com muita intensidade.

Acirrou preconceitos e discriminações e, ao mesmo tempo organizou gentes em movimentos por direitos…

Para mim, que me aproximei do assombro da infecção pelo HIV/Aids, no início de 1990, foi uma das escolas que mais frequentei… lidar com a perda de conhecidos e companheiros, um diagnóstico confirmado pela manhã e, às vezes, perder essa pessoa no mesmo dia.

Trem difícil, amedrontador.

Quem será o próximo?, perguntávamo-nos

A feminização da Aids não era nem discutida… era quase tudo no masculino. As travestis ainda eram os travestis.

No Brasil, entramos na quarta década da epidemia.

A série histórica do Ministério da Saúde, com os dados epidemiológicos até 2022, indica que, na média geral, as mortes diminuíram, mas as mulheres negras ainda são as que mais morrem. E mesmo com o estigma de peste gay, até agora, o boletim do Ministério da Saúde ainda não apresenta os dados estratificados por gênero/sexo.

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Em consequência, não sabemos quantas mulheres ou homens trans estão infectados, quantos morrem, quantos não estão fazendo o tratamento.

Certo é que, no Brasil, mais de 200 mil pessoas sabem que têm o vírus HIV da Aids e não fazem o tratamento.

Por quê?

Estarão vivendo sozinhas com essa notícia?

Será medo? Vergonha?

Ou simplesmente desconhecem que o SUS tem serviços especializados que podem lhes apoiar nessa nova condição de soropositiva?

E quantas pessoas sequer sabem que têm o HIV?!

O fato é que muitas, quando nos procuram, têm muitas perguntas e culpas, que precisam mesmo é de uma acolhida transparente e companheira.

Foi assim que, no início de 2010, Milene chegou até a minha sala.

35 anos, cabelos negros com escova progressiva, pele cor de jambo, olhos escuros e profundos e boca carnuda.

Eu trabalho em uma Escola de Saúde, em Campo Grande (MS). Uma colega dela, terceirizada da limpeza, foi quem a encaminhou para mim.

Milene olhava para todos os lados.

Como de costume nos atendimentos, fui ao seu encontro. Dei uns dois ou três passos na direção dela.

Esse pequeno caminhar é mais importante para mim do que para a pessoa que eu tenho que atender.

Gosto da ideia de acolher com os olhos, com o movimento do corpo… É um movimento meu que vai ao encontro da outra pessoa para que me acolha também.

— Olá, eu sou Estela. Tem alguma coisa que podemos fazer juntas?

—  A Vera falou pra eu vir falar com a senhora. Acabei de receber aquele diagnóstico… Eu acabei com a minha vida…

— Será? Talvez ainda não! Quer sentar ou conversamos de pé? Ou prefere sentar no banco lá fora?

—  Melhor aqui dentro.

Sentou-se, com o olho espichado para o laudo impresso que acabara de colocar sobre a mesa.

— Você quer ir falando ou eu vou perguntando?

Sem me responder, Milene começou a falar.

— Foi um deslize, um pecado e eu me ferrei. Agora não tem volta… Agora é ver tudo ir acabando até chegar a morte…

Comecei a falar de outras outras mulheres soropositivas.

À medida que fui contando essas histórias, percebi que Milene foi ficando aparentemente mais calma.

Concomitantemente, eu martelava com os meus botões: para onde a encaminharia para que pudesse conversar com iguais?

Sabia que isso era essencial para Milene.

Nos anos 1990-2010, nós aprendemos que essas conversas, que aconteciam nas organizações não governamentais (ONGs) relacionadas à Aids, ajudavam muito.

Nesses espaços, as mulheres se reuniam, traçavam estratégias de luta, inclusive de pressão das gestões do SUS pela garantia de direitos.

Eram lugares também de cuidado coletivo e troca de experiências de autocuidado.

Porém, no início de 2010, o número dessas ONGs tinha diminuído muito e os encontros das Cidadãs Posithivas rareavam cada vez mais vez.

Liguei para as mulheres que tinha nos meus contatos. Todas cidadãs posithivas e militantes da causa.

Quem sabe um tereré com elas já agruparia a Milene em um novo mundo?

— Mas todo mundo vai ficar sabendo? –, ela indagou.

— Só vai saber quem você quiser que saiba. É um direito seu.

— Mas lá no laboratório onde fiz o exame, quando meu irmão pegou o resultado, ele olhou e viu que eu era positiva.

— O laboratório entregou o resultado aberto do seu exame?! Foi no SUS?

— Não foi no SUS, não. Foi num laboratório particular.

— Bem, depois, vamos conversar sobre isso… agora precisamos pensar como você pode encontrar outras mulheres posithivas, ok?

— Mas você tem Aids?– Milene me perguntou.

— Eu ainda não tenho o vírus HIV. Mas a epidemia me ”pegou” há mais de 20 anos.

Falei pra ela do Sebah… ele dizia que a epidemia de Aids ”pega” todo mundo que convive com pessoas HIV-positivas, inclusive quem trabalha com elas ou simplesmente pesquisa o tema.

— Mas como a epidemia te ”pegou” há mais de 20 anos e você não tem HIV???!!! — imagino já alguma leitora me cobrando.

Obrigada, leitora, por perguntar.

Eu explico.

1. Eu não me infectei pelo HIV, já que como profissional e cidadã sigo todas as medidas de prevenção recomendadas.

2. O ”pegar/pegou/peguei” aqui, por isso as aspas, é no sentido de marcar, carimbar de alguma forma quem atua ou convive com pessoas com HIV/Aids.

Apesar dos avanços da ciência e dos tratamentos, os preconceitos, discriminações e desigualdades seguem firmes.

Prometo que falarei sobre tema em uma das próximas colunas.

Hoje, temos que voltar à Milene, inclusive porque há muitas Milenes espalhadas por todo esse Brasil.

Bem, marquei um encontro com Milene no sábado seguinte no sindicato.

Esperei-a com café e sopa paraguaia comprada na padaria.

Coloquei a mesa com toalha, xícaras bonitas de louça, incenso e música boa.

Coei o café assim que ela chegou.

O sabor é sempre mais prazeroso quando vem junto com o cheiro bom, inebriante, do café.

Começamos falando de qualquer coisa…

Ainda na primeira xícara de café, Milene perguntou se tinha mais alguém na casa.

Falei que chegariam algumas pessoas e que isso seria bom pra conversarmos com as outras mulheres.

Notei um riso nervoso quando falei que eram duas héteros e uma travesti.

Ela disse que nunca ter visto uma travesti de perto. Rimos muito.

Quando a Elô chegou e deu dois beijos na Milene, ela ficou com riso pra dentro.

Elô sentou, comeu parte da sopa paraguaia e falou que não podia ficar muito, pois ia pra abordagem das casas de massagem.

Perguntou se a Milene iria também, se era nova estagiária… aí, já rolou conversa solta.

Pronto, já éramos vários mundos juntos. Falei que era uma amiga.

A presença da Elô foi providencial… havíamos entrado no mundo da conversa dos preservativos, gel, tamanho de camisinha, gestante sem pré-natal, parto cesáreo, cine pornô…

Eu via a Milene se perguntando: onde eu estou?

Quando a Cléo e a Rosana chegaram, Milene levou outro susto. Uma era do mesmo bairro que ela e a cumprimentou contente.

— Vocês sempre são assim? –, perguntou Milene.

— Assim como?

— Alegres, despachadas…

— Às vezes também choramos juntas, respondeu Cléo! Podemos falar horas do nosso sofrimento, mas quando a gente se encontra sempre falamos primeiro das alegrias.

Cléo e Rosana deram-se as mãos. Naquela semana havíamos perdido Neide que lutou grande e teve uma pneumonia oportunista. Elas se olharam e não era hora de falar disso pra Milene.

De repente, do nada, Milene se pôs a falar comigo, sem que fosse a hora para isso.

— Mas sabe, eu levei um susto com você lá no seu trabalho. Quando me falaram que eu ia falar com assistente social, logo me preparei pra responder um monte de pergunta, de falar dos meus erros, de como contraí HIV… me preparei pra tudo e quando você não perguntou, fiquei sem saber o que eu tinha que falar. Depois, quando você falou para conversarmos no sábado, aí não entendi nada. Afinal, você não trabalha aos sábados…

— Quando marquei aqui foi pra conversarmos mais tranquilamente. Lá estava muita correria por causa de um evento. E acho que poderíamos conversar sem muita gente olhando. Aqui funciona um sindicato e nós pedimos emprestado quando precisamos. Ao meio dia, vamos ter um almoço em uma casa de massagem e já fico pra isso. Não estou sendo boazinha, não… só estou juntando um trabalho com o outro… Isso é SUS, viu? Ah, e vou compensar as horas…

Aproveitei, então, o momento e perguntei-lhe:

— Por que, na nossa primeira conversa, você me disse que tinha acabado com sua vida?

Em resumo disse que tinha se separado do marido há menos de um ano. Não tiveram filhos e ele falava que ela não era mais atraente porque tinha engordado. Que há três meses, depois de ficar chorando e chorando, havia começado a sair de casa com amigas. Como gosta muito de dançar, acabaram indo bailar no Clube da Amizade.

Depois de umas duas horas dançando rancheira com vários parceiros tocou um bolerão.

Ela olhou para os lados e viu um rapaz. Fixou o olhar e ele veio em sua direção. Quando ele lhe apertou contra o corpo foi uma coisa tão diferente que só se lembrava daquele momento e do desejo que se apossou dela. Não havia mais nada. Não se lembrava de a música terminar, mas lembrava-se que foram para o carro dele e ela se sentiu a mais linda e desejada.

O nome dele era Moacir e não sabe ao certo o tempo que ficaram, mas quando retornou ao salão as amigas riam porque diziam que a pele estava exalando sexo. Ele também ficou sabendo recentemente da sorologia. Foi em busca dela pra conversar.

— Então, foi bom o dia do baile?

— Nossa, uma delícia! Só que daí aconteceu essa desgraça… Mulher que não é valorizada pelo seu homem fica à espera de um elogio… e, às vezes, se estrepa.

Eu havia achado um ponto que me ligava à Milene. Contei pra ela, Elô, Cléo e Rosana dos meus 4 minutos e oito segundos de paixão…

No final do ano, eu tinha sido destacada para aquelas comissões de patrimônio.

Éramos duas mulheres e dois homens. Havia na equipe o Miguel que eu acabava de conhecer.

Serviço chato, braçal, sem nenhuma aventura. Conferir placas de bens e lançar em uma planilha. E ainda tinha a poeira, os equipamentos quebrados… Um tédio!

Miguel perguntou se gostávamos de música… ufa! Daí, colocou uma playlist dele e a gente ficou ouvindo.

De repente, eis que os acordes me puxaram para o olhar dele. Era “My way”. Na primeira frase, ouvi a sensual magnificante voz do Elvis.

Miguel me olhou, vários móveis entre nós, as outras duas pessoas em missão e ele começou a sussurrar a letra… e em português…:

“Meu amigo, vou falar claramente, vou expor meu caso, do qual estou certo: Eu vivi uma vida completa, eu viajei por toda e qualquer estrada”

“E mais, muito mais que isso Eu fiz isso do meu jeito. Arrependimentos tenho alguns, mas por outro lado, muito poucos pra citar. Eu fiz o que eu tive que fazer.”

Milene, Elô, Cléo e Rosana, de olhos arregalados, olhando pra mim.  Entendi que nem elas nem eu conhecíamos a letra em inglês. Procurei a música e coloquei pra tocar. Procurei a tradução…

— Meninas, eu cantei com o Miguel… minhas mãos suavam, eu sentia até o cheiro daquele corpo marrom…

— Vocês ficaram perto? Tipo… cantaram juntos?

— Fisicamente, ficamos longe, mas eu entendi que ele me viu inteira, as bocas se beijaram, as mãos se tocaram… uma intensidade de desejos que não sentia mais naquele parceiro que dizia que eu estava gorda assim como você, Milene.

— E foi bom demais, hein? Conta, conta, conta…

— Vocês transaram?

— Nada, menina. A música acabou

Até hoje eu e Milene nos lembramos do nosso primeiro encontro na Escola de Saúde e depois no grupo de mulheres vhivendo.

Coisa de 13 anos atrás.

Milene se juntou com as outras mulheres.

Esporadicamente a gente se encontra mas sem ser “atendimento”.

Desde o final dos anos 80,  1º de dezembro é Dia Mundial de Luta contra a Aids.

Neste ano, 2023, caiu na sexta-feira.

Coincidentemente, na semana passada encontrei a Milene em uma feira da Praça do Preto Velho. Vinha toda trabalhada na negritude com turbante e cabelos imensos, boca brilhante e vestido afro.

— Mulher, que coisa linda que você está!!!!! Que delícia ver você!!!! Onde você anda?

— Agora sou do movimento negro. Soltei os cabelos e tudo que estava amarrado!

— Você ainda está no outro movimento?

— Só vou quando tem alguma novidade de tratamento… daí, vou lá escutar e me atualizar. As ONGs/Aids praticamente acabaram.

— E você está feliz no movimento negro?

— Ih, é a mesma brigaiada do outro movimento… Mas, você sabe, né… Depois que a gente bebe a água de ser de movimento, não larga mais… se não está em um, está em outro. Aqui, tem as feiras e eu tô vendendo as roupas, fazendo as tranças…  sempre planejando alguma coisa.

Entrei por trás da mesa da barraca em que a Milene estava, busquei uma cadeira e sentamos lado a lado.

— Mulher, tá sabendo do babado? Maior buchicho nos conselhos de Saúde.

— Tô sabendo de franjas e babados… muita gente orando e pouco SUS!

— Isso mesmo…Tá cheio de evangélicos na gestão… Estão tirando as camisinhas da vista das pessoas… precisa até preencher ficha pra pegar lá na UBS…estão causando um atraso imenso na educação, na prevenção…

— Que trem difícil que estamos vivendo, hein?

— Que bom que nos encontramos, né.

— Foi um encontro de mulheres, não foi?

E Milene me agracia com música aos meus ouvidos de assistente social:

— E que gostam de feira! Poderíamos fazer uma barraca de educação sexual, que tal?

*Estela Márcia Rondina Scandola, 61 anos de inteireza!

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Estela Scandola

Estela Rondina Scandola é assistente Social, Especialista em Saúde do Trabalhador e em Psicologia Social, Mestre em Saúde Coletiva, Doutora em Serviço Social. Feminista, educadora popular, integra colegiados e movimentos de políticas públicas e direitos humanos, produz conteúdos a partir da vida no centro da América Latina. Quadrivó.


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Comentários

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Zé Maria

Que História é essa Dra. Nísia Trindade?

Precisa “preencher Ficha pra pegar Camisinha
nas Unidades Básicas de Saúde (UBS)”?

Isso só pode ser nas Secretarias de Saúde de
Governos Reacionários de Estados e Municípios.

.

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