Eliara Santana: JN sugere que “é melhor Jair se acostumando” fora do Planalto

Tempo de leitura: 8 min
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Por Eliara Santana

Fotos: Reprodução de vídeos, Catraca Livre e CDC

por Eliara Santana*

Ao longo desta semana, especialmente nas últimas três últimas edições, o JN marcou indelevelmente o caminho de desconstrução de Jair Bolsonaro.

Discursivamente, foram estruturados, um a um, os caminhos argumentativos para consolidar essa desconstrução, para que ela não se configure como “perseguição pessoal”, argumento que bolsonaristas já difundem amplamente em suas redes.

Lembrando fortemente Eni Orlandi, é o momento de observar que a linguagem, como prática, se relaciona às práticas sociais, ou seja, para fazer sentido, ela se inscreve na história, ela dialoga com os sujeitos e os momentos históricos.

E que a relação entre linguagem, pensamento e mundo é marcadamente mediada – onde entra então a ação decisiva e marcante dos meios de comunicação, no caso, o JN.

Antes de apresentar essa estrutura, vou retomar rapidamente as últimas edições.

23 de março

“Juntos, vamos derrotar o vírus”.

Esse é o mote que marca a edição, que começa com uma emocionante e reconfortante fala editorial de William Bonner, após as chamadas e antes de começar a edição.

O âncora do JN convida os telespectadores, angustiados diante da pandemia e das incertezas que rondam o pais e o mundo, a uma pausa:

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“Antes de começar a apresentar as notícias de hoje, a gente vai fazer uma pausa. Porque é muita informação. Todo dia, o tempo todo sobre o coronavírus, sobre o desafio que o coronavírus impõe ao mundo todo.

Então, você já ouviu as manchetes de hoje, já sabe quais são os destaques, e a gente vai fazer essa pausa, primeiro, para dizer simplesmente o que a gente fica repetindo um para o outro por aqui também: calma.

Não dá para começar o JN de hoje sem pedir calma. Mas olha o porquê dessa pausa aqui no JN hoje – a gente precisa RESPIRAR.

A gente precisa entender que essa crise vai ter altos e baixos, vai exigir sacrifícios, mas, no fim, o Brasil e o mundo vão superar.

Apesar da aflição, apesar da dor que muitas famílias estão enfrentando e outras ainda vão enfrentar, A GENTE VAI SUPERAR ESSE MOMENTO JUNTO. E vai ser mais fácil quanto mais a gente mantiver a calma”.

O texto prossegue com dicas, recomendações, reconhecimento aos vários profissionais que não podem ficar em casa, incluídos os jornalistas, com duração de 5 minutos.

O mais importante discursiva e simbolicamente é que existe um problema, que é mostrado, mas há também uma solução no horizonte. E o JN está ali, com os brasileiros, para mostrar essas soluções possíveis, para orientar quanto ao caminho a seguir.

A edição traz o costumeiro balanço bem detalhado do coronavírus – Brasil e mundo -, com alertas da OMS e algumas ações no Brasil (pacote econômico).

Estruturalmente e simbolicamente, os blocos são sempre bem marcados. Há também matérias de serviço, como o prejuízo das notícias falsas em tempos de pandemia – ou seja, é preciso buscar fontes com credibilidade.

24 de março

É a edição que vem logo após o inexplicável pronunciamento de Jair Bolsonaro.

E ela é estruturada para mostrar que o Brasil é maior e funciona apesar do Jair.

O Brasil está funcionando pela solidariedade, pelo protagonismo dos cidadãos, pela pesquisa de ponta, pelo SUS, pelas ações individuais dos governadores diante da crise. E sem um comando central…

A edição começou ignorando o pronunciamento de Bolsonaro, que só vai aparecer (sem dar pistas de que estava guardando o melhor para o final).

Durante todo o primeiro bloco, o Jornal Nacional não repercutiu o pronunciamento do Jair, que só vai aparecer no segundo bloco, após matérias que mostram o avanço do coronavírus e a importância do isolamento social – não é o JN quem “diz”, é a ciência, são os cientistas que pesquisam há décadas.

Nos diz Bonner:

“Em pronunciamento em rede nacional de televisão agora há pouco, na TV, o presidente Jair Bolsonaro contrariou TUDO o que especialistas e autoridades sanitárias do Brasil e do mundo inteiro têm pregado como forma de evitar que o novo coronavírus se espalhe.

O presidente criticou o pedido para que todos aqueles que possam fiquem em casa Bolsonaro culpou os meios de comunicação por espalhar a sensação de pavor e disse que se ele contrair o vírus, não pegará mais do que uma ‘gripezinha’”.

E a fala de Bonner foi entrecortada por trechos do pronunciamento, com ênfase nas falas em que Bolsonaro apresenta “dados” sobre a manifestação do coronavírus (obviamente sem nenhuma fonte).

Após o pronunciamento, matérias mostram decisão do COI de adiar as Olimpíadas, a importância, “comprovada pela ciência”, de conter ao máximo a circulação das pessoas como forma de evitar o contágio, a imposição de quarentena na Índia, país com mais de um bilhão de habitantes.

Rodrigo Maia aparece com destaque e protagonismo na edição, assim como os governadores, que adotaram medidas de restrição à circulação em seus estados – imagens das principais capitais brasileiras vazias.

E então Bonner retorna, cumprindo um importante papel social, para fazer um pedido:

“Agora a gente precisa fazer um pedido para quem tem 60 anos ou mais. Se existe uma certeza da comunidade médica MUNDIAL é que as pessoas nessa idade correm riscos maiores com o coronavírus do que as que têm menos de 60 anos.

O problema é que ainda tem muitas pessoas nessa faixa etária andando por aí quando deveria estar se protegendo dentro de casa. E isso é perigoso para essas pessoas e é perigoso para toda a sociedade porque os doentes da Covid-19 tendem a precisar de internação mais frequentemente quanto mais idade eles têm”.

E Renata completa:

“ A ciência mostra que ele é especialmente perigoso para quem tem a idade biológica de 60 anos para cima. E ponto”.

A CIÊNCIA mostra, meus caros amigos telespectadores. Portanto, como pede o Bonner, “fique em casa”.

Após esclarecimentos científicos, a edição retoma o pronunciamento do presidente para dizer que houve muitas críticas a ele, e pontua todas as falas. Na sequência, Renata diz que, durante o pronunciamento, houve panelaços em TODAS as regiões do pais. Cenas e sons pelo Brasil. Sem legenda.

25 de março

As chamadas de abertura do jornal dão o tom para a referenciação do presidente:

“O presidente Jair Bolsonaro volta a criticar as medidas de isolamento social decretadas por governadores e prefeitos”.

“Ele ignora a Organização Mundial da Saúde”.

“Contraria a recomendação de médicos e especialistas de todo o planeta”

“Contesta medidas adotadas por chefes de Estado em todos os continentes”

“E minimiza o perigo do novo coronavírus ao dizer que outros mataram mais sem provocar comoção”

A edição é impecável em mostrar, ponto a ponto, a total incompetência de Jair.

Para isso, se ancora em dois grandes blocos de sentidos tematizados pelas categorias CIÊNCIA e ECONOMIA.

Numa inversão da ordem que já vinha seguindo, de trazer no primeiro bloco um balanço do coronavírus no Brasil, o JN trouxe à cena o mundo e o combate à doença.

A primeira matéria mostrou em destaque o drama que os EUA (espelho de Bolsonaro) começa a viver.

Mas pela primeira vez no estado de NY surgem números de esperança, com o primeiro indício de que o isolamento social está funcionando para frear o avanço.

A matéria também mostra que, ao contrário de muitos prognósticos, quase metade dos infectados é de jovens em NYC – entre 18 e 44 anos.

Retomando os blocos de sentidos, no primeiro, CIÊNCIA, várias matérias mostram o grande problema do coronavírus pelo mundo, os alertas da OMS, as medidas de proteção e quarentena adotadas nos diversos países em todo o mundo (é importante dimensionar), o maior isolamento obrigatório do planeta que acontece na Índia, o drama das mortes na Espanha e na Itália (não é uma “gripezinha”), o perigo do colapso do sistema de saúde, manifestação de diversas associações médicas (marcação da voz de autoridade para falar da doença), recomendações de vários líderes globais para combater o coronavírus (vários países, de todos os continentes – menos o “líder” do Brasil, o que marca a contramão de Bolsonaro em relação a seus pares).

E antes de mostrar o protagonismo dos governadores, mesmo sem um comando central, Bonner pontua:

“O presidente Jair Bolsonaro repetiu hoje cedo a postura que assumiu ontem à noite num pronunciamento em cadeia de rádio e televisão e que motivou críticas em todos os setores da sociedade.

Bolsonaro voltou a criticas o isolamento social que virologistas, infectologistas, autoridades médicas e sanitárias, chefes de Estado e de governo do mundo INTEIRO defendem como forma de combater o espalhamento, vamos dizer assim, do novo coronavírus.

Como argumento, o presidente disse que o isolamento vai criar uma crise econômica e gerar desemprego, e que isso pode levar a conflitos sociais.

O presidente também afirmou que queria que esse vírus não matasse ninguém, mas que outros, que mataram mais, não provocaram, nas palavras de Bolsonaro, ‘essa comoção toda’”.

A fala de Bonner dá o direcionamento de interpretação para a fala de Jair, que vem na sequência.

Se antes o silenciavam para não expor sua estupidez, quando conveniente, agora escancaram e deixam o Jair falar.

No bloco de sentidos ECONOMIA, a receita sobre como fazer melhor.

A matéria ouve diversos economistas de renome – “O Jornal Nacional ouviu alguns dos mais importantes economistas brasileiros”, portanto, nada daqueles consultores mequetrefes de empresas (quase todos com passado no ninho tucano, mas isso não é mencionado, claro.

E esses economistas dizem, de forma clara, didática (observem bem), que

“quem tem o poder para proteger os cidadãos das consequências econômicas dessa pandemia é o próprio presidente Bolsonaro. Porque é ele quem tem o controle dos recursos da União para amparar quem perder seu sustento. Os economistas afirma que numa crise dessas proporções, com tamanha gravidade, preservar vidas é um dever que se sobrepõe a metas fiscais anuais”.

Ou seja, Jair não tem argumento viável para justificar sua fala, pois a solução existe.

E os economistas falam livremente sobre tudo o que pode ser feito para minorar as agruras da economia e amenizar os problemas das pessoas mais pobres.

E dá-lhe ação do Estado, ao melhor estilo de políticas econômicas de centro-esquerda.

A matéria dos economistas tem 10 minutos. Gustavo Loiola, Armínio Fraga, José Roberto Mendonça de Barros, Maílson da Nóbrega, Monica de Bolle, Marcelo Neri, Alexandre Schwartzman, Henrique Meirelles, todos são unânimes em ressaltar a necessidade de uma efetiva ação do Estado para proteger os cidadãos. Tudo o que Jair não faz…

Após a aula dos economistas, que não tem apresentação nenhuma do atual ministro, Paulo Guedes, matéria informa que até agora o governo não apresentou nenhuma medida ao Congresso…

OBS: Ao final das edições, que têm sido bem pesadas por conta dos acontecimentos, Bonner sempre retorna com alguma boa notícia, com algum alento, e chama os amigos telespectadores a relaxarem com a programação da Globo.

Credibilidade e legitimidade para informar – e para estar nos lares de milhões de brasileiros – você vê por aqui…

Feito o resumo, vamos ao processo de desconstrução. Ele está se consolidando a partir de algumas linhas argumentativas:

1. A ciência deve ser soberana – as pesquisas científicas, assim como os especialistas das diversas áreas, promovem bem-estar, o conforto, o crescimento dos países. É ela que está procurando e dando respostas no cenário da pandemia de coronavírus. Ir contra os dados científicos é demonstração de ignorância.

Jair, como vem sendo mostrado nas edições do jornal, contradiz dados científicos, cita outros que não se comprovam, se opõe às pesquisas, aos fatos,, aos especialistas, sem mostrar argumentos plausíveis.

2. Um Brasil solidário e que age a despeito da inação do Estado mostra que o país é maior que o eventual ocupante do Planalto – que se cacifa exatamente como diz o adjetivo: eventual. Ações nas favelas ganham destaque.

3. Há caminhos possíveis, uma vez que o problema é Bolsonaro. Os economistas mais importantes do país apontam caminhos, mostram soluções, encaram o problema de frente e apresenta um cenário possível. Por que Jair não escuta?

4. Protagonismo de outros atores a despeito da falta de coordenação nacional, que deveria reger a orquestra. Os governadores ganham cada vez mais espaço, com destaque para João Doria, do PSDB.

5. Referenciação do presidente – quem é Jair?

Aquele que, sendo capitão, IGNORA um órgão como a OMS.

CRITICA as medidas de isolamento social decretadas por governadores e prefeitos.

CONTRARIA a recomendação de médicos e especialistas de todo o planeta.

CONTESTA medidas adotadas por chefes de Estado em todos os continentes.

MINIMIZA o perigo do novo coronavírus.

Sendo quem é, o que o qualifica para dizer o que diz e, sobretudo, para ocupar o cargo que ocupa?

Sobre isso, a fala em destaque de FHC, sempre ouvido, revela muito: “É melhor que se emende e cale”.

É melhor JAIR se acostumando…

Os caminhos da desconstrução do mito…

*Eliara Santana é jornalista e doutoranda em Estudos Linguísticos pela PUC Minas/Capes.

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Eliara Santana

Eliara Santana, jornalista, doutora em Estudos Linguísticos, pesquisadora do Observatório das Eleições.


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Comentários

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valentim

O Jn não faz jornalismo e sim militantância para defender seus interesses.

João Maurício da Silva Pimentel

Muito bom.

Zé Maria

“Começa a leitura agora na Câmara do projeto #seguroquarentena.
Um auxílio de um salário mínimo p/ que a população mais pobre e vulnerável
consiga se proteger em casa com comida na mesa.
Isolamento social e proteção social é a receita p/ combater a COVID-19.”

https://youtu.be/NzxpADGoPzE
https://twitter.com/gleisi/status/1243270590313771008

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